
Voc� ter� dificuldade para encontrar algum animal que n�o tenha caracter�sticas in�teis ou rudimentares: olhos atrofiados, asas descartadas ou seios nos machos s�o apenas alguns exemplos.
S�o sinais da hist�ria, legados de parentes distantes, estruturas sem uso que a evolu��o tolera por algum tempo ou que reutilizar� mais tarde se for necess�rio - como no caso dos olhos encontrados embaixo da pele de algumas toupeiras, das asas de pinguins usadas como nadadeiras ou das asas de insetos que agora servem de balancins.
� claro que nem tudo no nosso corpo tem um prop�sito, sen�o ter�amos que nos perguntar por que n�s temos queixos e os neandertais n�o tinham. Procurar uma fun��o a todo custo seria rid�culo.
Na verdade, apesar das belas propor��es do Homem Vitruviano de Leonardo da Vinci, inscrito em um c�rculo e em um quadrado, nosso corpo � basicamente um comp�ndio de disparidades, digno de Homer Simpson.
Incongru�ncias reprodutivas
Veja os homens, por exemplo. Qual � a necessidade de a uretra passar exatamente atrav�s do centro da pr�stata, que n�o tem nenhuma fun��o ligada ao ato de urinar?
O resultado � que, quando a pr�stata fica inflamada e aumenta de tamanho com o passar dos anos, surgem muitas dores desnecess�rias. N�o faz absolutamente nenhum sentido, exceto porque, at� recentemente, as pessoas n�o viviam por tempo suficiente para sofrer desse mal.
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Pode n�o fazer sentido, mas assim � a evolu��o. A imperfei��o surge na natureza devido � necessidade de fazer concess�es entre diferentes necessidades e caminhos seletivos antag�nicos. Isso significa que uma caracter�stica vantajosa pode evoluir e prosperar, embora seus usu�rios paguem o pre�o na forma de perturbadores efeitos colaterais.

Outro bom caso de estudo � o ap�ndice. Estudos recentes indicam que ele pode ter vantagens secund�rias relacionadas ao sistema imunol�gico ou agir como dep�sito de bact�rias ben�ficas no caso de infec��es. Mas existem in�meras solu��es anat�micas poss�veis que teriam sido mais eficientes e menos dolorosas do que o ap�ndice.
Hoje, quando necess�rio, podemos resolver a quest�o com uma opera��o de emerg�ncia, mas ter um ap�ndice que parece uma minhoca na nossa barriga, decididamente, � uma m� ideia.
Outro exemplo � o escroto externo. Ele est� presente em muitos mam�feros, incluindo os seres humanos, e sabemos que desempenha um papel importante, resfriando os test�culos para a produ��o de espermatozoides.
Mas muitos mam�feros - incluindo os elefantes, os hiracoides, os tamandu�s, os peixes-boi, os musaranhos-elefante e as toupeiras-douradas - t�m test�culos dentro do corpo, onde s�o muito menos vulner�veis. Ou seja, o escroto externo � �til, mas n�o � essencial.
�vulos ocultos
Outra estranheza que quase s� os seres humanos t�m � a ovula��o oculta. Os humanos machos n�o percebem o momento em que as mulheres est�o prontas para conceber.
J� os babu�nos, mandris, chimpanz�s e bonobos s�o mais razo�veis. Nestas esp�cies, a f�mea no cio pode ser reconhecida pela sua apar�ncia, intumescimento e colora��o dos seus genitais, al�m da exala��o de odores espec�ficos.
Isso significa que at� o macho mais obtuso, cedo ou tarde, compreender� quando � a hora de fazer a sua parte, o que n�o acontece na esp�cie humana. Para n�s e para algumas outras esp�cies, como o langur-cinza do sudeste asi�tico, a ovula��o � oculta.
Tudo isso produz forte sensa��o de inseguran�a nos machos, que n�o sabem se a sua copula��o, muitas vezes conseguida com alto pre�o, foi ou n�o bem sucedida.
A coluna vertebral e o bipedalismo
A lista de esquisitices evolutivas � muito grande. Se voc� consegue mover sua aur�cula como fazem os elefantes, � porque voc� tem m�sculos nas suas orelhas que s�o in�teis, mas ainda funcionam.
As v�rtebras caudais que s�o unidas embaixo da p�lvis s�o, na verdade, os restos da sua cauda. O c�ccix ainda serve de ponto de liga��o para alguns m�sculos. Pergunte para algu�m que tenha ca�do da escada e atingido violentamente a ponta de um degrau.

A coluna vertebral humana n�o evoluiu do nada. A coluna flex�vel dos quadr�pedes ou dos braquiadores (animais que se movem pendurados em galhos) foi esticada, fazendo com que o peso de todo o corpo humano agora repouse sobre um �nico eixo e fique apoiado sobre as duas pernas.
Como resultado, a coluna vertebral � curva e as v�rtebras s�o submetidas a press�o excessiva. Os nervos e m�sculos adaptaram-se ao m�ximo poss�vel, mas n�o o suficiente para evitar dores ci�ticas, h�rnias e p�s chatos.
Se, depois de todos os esfor�os para ficar de p� sobre seus membros inferiores, os b�pedes passam todos os seus dias sentados em frente a uma mesa ou no carro, estamos caminhando a passos largos rumo �s dores da imperfei��o.
Por que nos tornamos b�pedes, afinal? Esta pergunta, na verdade, � mais dif�cil de responder do que parece.
Afirma-se que a postura ereta nos permitiu correr por longas dist�ncias e forneceu maior flexibilidade de locomo��o. Um quadr�pede nos destruiria em centenas de metros, mas n�s corremos com bom desempenho atrav�s de um pa�s inteiro.
E, como b�pedes, podemos escalar, se for necess�rio, al�m de andar, correr e transpor rios.
Tudo isso pode ser verdade, mas permanece o fato de que, nos espa�os abertos da savana, quase todos os outros animais s�o quadr�pedes e, at� agora, eles se sa�ram muito bem.
Tamb�m se afirma que o bipedalismo ofereceu aos nossos ancestrais a possibilidade de exibir-se para os predadores em posi��o vertical e n�o horizontal (muito mais vis�vel para o felino m�dio), al�m de erguer-se acima da grama para melhor visualizar os predadores � dist�ncia.
E, � claro, a posi��o ereta liberou nossas m�os e bra�os da fun��o locomotora e pudemos us�-los para manipular ferramentas e carregar alimentos e filhotes. Mas ser� que n�s nos tornamos b�pedes para liberar as m�os ou nossas m�os ficaram livres porque nos tornamos b�pedes?

Infelizmente, a conta n�o fecha porque as primeiras tecnologias l�ticas surgiram na �frica 3,3 milh�es de anos atr�s - 700 mil anos antes do surgimento do g�nero Homo. E, at� onde sabemos, apenas os australopitecos e os Kenyanthropus, com suas muitas caracter�sticas de quem vive nas �rvores, ainda vagavam pela regi�o do lago Turcana - hoje, norte do Qu�nia.
Por que ent�o as tecnologias vieram primeiro e o bipedalismo total, depois? O que � a causa e o que � a consequ�ncia?
Considerando que o bipedalismo nos custou todas as imperfei��es que mencionamos acima, � claro que, para come�ar, deve ter valido a pena, caso contr�rio nossos primos que vivem nas �rvores teriam prevalecido.
Melhor controle da temperatura corporal
Outros especialistas em evolu��o humana defendem que o impulso inicial para o bipedalismo teve rela��o com a termorregula��o.
Quando as esp�cies que vivem nas regi�es lim�trofes entre a floresta e a vegeta��o rasteira exploram �reas abertas e ensolaradas, sem sombra, elas enfrentam s�rios problemas para manter a temperatura do corpo dentro de certos limites fisiol�gicos. Isso se aplica especialmente ao c�rebro, que n�o tolera bem o superaquecimento.
Os quadr�pedes da savana desenvolveram medidas de controle apropriadas que os homin�deos como n�s n�o temos. Aparentemente, a nossa tribo adotou a redu��o da superf�cie exposta ao sol como solu��o para garantir que a nossa temperatura corporal ficasse sob controle.
Ao mesmo tempo, nossos ancestrais podem ter gradualmente perdido seu pelo e desenvolvido gl�ndulas sudor�paras. Neste caso, a adapta��o termorregulat�ria poder� ter ent�o acionado uma s�rie de usos vantajosos (a locomo��o flex�vel e a libera��o dos membros superiores, por exemplo) que tornaram o bipedalismo uma boa estrat�gia, apesar do seu custo.
Tamb�m � prov�vel que, devido a essas concess�es e adapta��es graduais e apesar dos seus inquestion�veis m�ritos, o bipedalismo tenha evolu�do lenta e timidamente ao longo de um per�odo de quatro milh�es de anos, ap�s diversas tentativas fracassadas e experimentos mal sucedidos.
Um desses exemplos � o Ardipithecus, que foi um b�pede da floresta que andava ao longo dos ramos das �rvores.
Por dois ter�os da hist�ria natural dos homin�deos (seis a oito milh�es de anos atr�s), nossos ancestrais, primos e outros parentes preferiram claramente uma solu��o h�brida: uma vida nas �rvores, para que pudessem proteger-se dos predadores (com caracter�sticas ancestrais remanescentes, como dedos curvos e bra�os longos), e ao mesmo tempo explorando com prud�ncia as clareiras abertas como b�pedes, em busca de alimento.
Esta foi, de longe, a estrat�gia mais inteligente da �poca para aqueles que viriam a se tornar bravos ca�adores, mas eram uma presa deliciosa para felinos e �guias gigantes. Ainda hoje, os babu�nos e muitos outros primatas vivem desta forma.
Por isso, podemos esquecer a hist�ria da evolu��o humana que come�a com a heroica "descida das �rvores" para conquistar a savana de p�.
N�s nos tornamos b�pedes completos somente nos primeiros dias do g�nero Homo. E muitos dos nossos companheiros ainda amaldi�oam aquele dia.
As dificuldades para nascer
Andar ereto sobre as pr�prias pernas � um grande risco se, ao mesmo tempo, sua alimenta��o mudar, seu c�rebro come�ar a crescer e voc� precisar dar � luz.
A p�lvis n�o consegue se expandir muito. Se pudesse, n�o conseguir�amos andar eretos. Por isso, a cabe�a do beb� passa com grande dificuldade durante o parto.
Se pud�ssemos voltar atr�s, a solu��o de engenharia ideal seria dar � luz diretamente do abd�men, o que n�o � poss�vel porque o nosso canal de nascimento � uma vers�o modificada do canal dos r�pteis, que p�em ovos, e dos primeiros mam�feros, que t�m filhotes min�sculos pela p�lvis.
Por isso, foi improvisado um meio-termo, definindo a gravidez em nove meses e dando � luz beb�s indefesos, com apenas um ter�o do c�rebro desenvolvido e os dois ter�os restantes sendo completados mais tarde.
Mas esta � uma solu��o verdadeiramente imperfeita, se pensarmos em quantas m�es e beb�s morrem durante o parto e na dor que sofrem as mulheres, no melhor dos casos.

A transi��o para o bipedalismo gerou consequ�ncias negativas em quase todas as partes do corpo. Os p�s humanos, com sua locomo��o sobre a planta, precisam suportar alto n�vel de tens�o. Nosso pesco�o, com aquela bola de boliche oscilante equilibrada no topo, torna-se um ponto fraco.
O abd�men, com todos os seus �rg�os internos, � exposto a todo tipo de trauma. O perit�neo � empurrado para baixo pela gravidade, predispondo o organismo a h�rnias e prolapsos.
Voc� pode sentir as consequ�ncias at� mesmo no seu rosto. Na pr�xima vez em que voc� tiver um resfriado e sentir o muco pressionando cada orif�cio do seu rosto, lembre-se de que os seus seios maxilares constipados t�m canais de drenagem apontando para cima, em dire��o �s cavidades nasais - contra a gravidade! Isso faz com que eles sejam totalmente ineficientes e sejam facilmente obstru�dos pelo muco e outras subst�ncias viscosas.
Tudo isso parece falha de projeto, mas o fato � que, em um quadr�pede, a abertura dos seios maxilares fica para a frente, o que funciona bem. Em ex-quadr�pedes como n�s, nossos rostos adotaram a posi��o vertical apenas recentemente - e este � o resultado.
O arque�logo Andr� Leroi-Gourhan estava certo ao afirmar que a hist�ria da humanidade teve in�cio com bons p�s, antes dos grandes c�rebros.
Mas isso era uma prova��o, principalmente no in�cio. At� que acabamos gostando deles e, com aquelas pernas, passamos a ser primatas migrantes, com forte senso de curiosidade, sem fronteiras que nos restringissem.
* Telmo Pievani � professor pleno do Departamento de Biologia da Universidade de P�dua, na It�lia, onde ocupa a primeira cadeira italiana de Filosofia de Ci�ncias Biol�gicas. � autor de diversos livros, incluindo Imperfection: A Natural History (Imperfei��o: Uma Hist�ria Natural", em tradu��o livre), que deu origem a este artigo.
Este artigo foi publicado originalmente em The MIT Press Reader e republicado pelo site BBC Future mediante autoriza��o. Leia aqui a vers�o original em ingl�s.
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-64008823