Anna Clara Leroy, Giulia Simmons, Klaucius Ricardo, Maria Clara Vale, Mateus Te�filo*
Voc�, com certeza, j� ouviu algu�m falar que existe uma linha t�nue entre o amor e o �dio. Quando somos crian�as e brigamos com um coleguinha da escola, por exemplo, algum tio ou tia nos fala que tudo aquilo aconteceu porque h� muito sentimento escondido. Contudo, dificilmente ouvimos coment�rios sobre a grande proximidade entre amores saud�veis ou t�xicos.
At� quando o ci�mes � bom, se � que isso existe? At� quando aquele pedido para n�o sairmos com os amigos passa a revelar sinais de possessividade? Qual � o limite para que a rela��o deixe de ser boa para voc�?
Casal brigando entre si
Voltemos um pouco no tempo: 1984, Brasil. Sobre tal per�odo, o jornalista e m�sico J�lio Ettore contou, em seu canal no YouTube, detalhes acerca da composi��o de um dos hits da banda Os paralamas do sucesso, a m�sica “Meu erro”, al�m de comentar a rela��o da can��o com a banda Kid Abelha e com outro hit, “Como eu quero”.
No livro "Os paralamas do sucesso: vamo bat� lata", de 2003, Jamari Fran�a diz que Herbert Vianna, vocalista da banda, comentou que, � �poca, estava se envolvendo com a empres�ria do Kid Abelha, que desejava que ele fosse algo que, na verdade, n�o era. “Ela tinha vergonha do meu Fusca, n�o queria que eu fosse m�sico. A�, n�o deu certo. Eu sofri pra caramba”, disse o cantor, em entrevista para o livro.
Dessa desilus�o amorosa, nasceu a m�sica “Meu erro”, na qual, se analisarmos um pouco, � poss�vel perceber que trata de um relacionamento t�xico: “Voc� diz n�o saber / O que houve de errado / E o meu erro foi crer / Que estar ao seu lado bastaria”. Ou seja: o eu l�rico pensava que ser apenas ele seria o suficiente para a rela��o, mas n�o foi.
Pouco tempo depois, a mesma empres�ria se envolveu com um integrante do Kid Abelha, e a situa��o n�o foi diferente. De novo, o relacionamento serviu de inspira��o para a m�sica Como eu quero: “Longe do meu dom�nio, ‘c�’ vai de mal a pior / Vem que eu te ensino como ser bem melhor”. Aqui, � poss�vel interpretar que a pessoa t�xica conversa com o eu l�rico, e n�o o deixa sair da rela��o.
Perceber que se est� em uma rela��o t�xica, muitas vezes, n�o � algo f�cil para a v�tima.
Os anos passam, e os sentimentos de ang�stia e tristeza se acumulam. A compreens�o de que se trata de um relacionamento abusivo, por�m, pode n�o acontecer, at� que uma terceira pessoa aponte o fato.
� o caso de in�meras v�timas ao redor do pa�s, dos m�sicos citados acima a Taciana Monteiro, que, por 23 anos, conviveu numa rela��o dessa natureza, at� assistir a uma transmiss�o, ao vivo, em que uma psic�loga debatia o tema. Naquele momento, Taciana percebeu todo o contexto em que se encontrava.
Divorciada h� tr�s anos, ela, hoje, segue uma vida livre, mas se lembra de que, no come�o, as coisas eram mais complicadas: "Antes, n�o compreendia nada. Eu percebia a tristeza e ang�stia, mas n�o as nomeava como abuso. Para mim, era t�o normal viver dessa forma que eu n�o enxergava assim. Aquele era o jeito dele, e nosso casamento era assim e ponto”.
Ela contava certas situa��es para algumas amigas, que ficavam muito preocupadas, pois as pessoas percebiam seu afastamento de todos, inclusive, da fam�lia. “Elas percebiam, mas ningu�m perguntava, porque eu n�o dizia nada”, relata Taciana.
Perceber-se num relacionamento abusivo � muito dif�cil; sair dele � ainda mais. Afinal, depois de tudo, v�m a culpa e as d�vidas: “O que vou fazer agora? � isso mesmo que quero?”.
“Voc� sente um al�vio t�o grande! � como se, antes, estivesse respirando de nariz entupido, que vai melhorando. Como � bom!. O ar passa a entrar, e chega uma hora em que voc� respira t�o livremente que acaba por se pergunta: ‘Como consegui viver a vida inteira com o nariz entupido?’”, ilustra Taciana.
Sair de um ciclo abusivo, seja ele f�sico, seja psicol�gico, emocional, financeiro etc., � uma forma de reestrutura��o, um modo de recuperar a posse de sua vida, de sua liberdade. “Crio meus hor�rios e fa�o o que quero, sem me preocupar se algu�m vai me julgar. � inacredit�vel, �s vezes. Tem momentos em que paro e penso: ‘Que paz � essa? ‘T�’ estranho”.
Os abusadores t�m um padr�o. Eles sempre veem as outras pessoas como objetos de posse. Al�m disso, revelam ci�mes e sede por controle. Por isso, Taciana alerta: “Se voc� tem d�vidas se est� em um relacionamento bom ou t�xico, com certeza, n�o � saud�vel. A rela��o boa n�o te deixa com d�vida alguma, pois voc� tem espa�o para ser quem, e para crescer junto ao outro”, diz, ao ressaltar que � preciso perceber que o relacionamento t�xico tira, da v�tima, o sorriso e a vontade de fazer as coisas e de se cuidar. “Se voc� est� perdendo coisas em sua vida, pode ter certeza de que seu relacionamento n�o � saud�vel. A�, j� est� tudo errado”, completa.
Sinais
Outra pessoa que, ao perceber o que vivia, livrou-se de um relacionamento t�xico foi a escritora Stephanie Land, que publicou sua hist�ria no livro que deu origem � miniss�rie Maid (2021), de dez epis�dios. A obra conta a hist�ria de Alex, que resolve sair de casa, com a filha de dois anos, para sair de seu relacionamento abusivo com Sean, o pai da crian�a. Logo no come�o, os desafios de Alex s�o vis�veis: ela n�o tem para onde ir, nem emprego, casa, rede de apoio ou conta banc�ria em seu nome.
A realidade da personagem, infelizmente, n�o se limita � miniss�rie, pois existem muitas mulheres que compartilham da situa��o. Na fic��o, Alex ainda se torna v�tima da famosa pergunta feita �s v�timas de relacionamentos abusivos: “Mas ele nunca te bateu. Como poderia ser abusivo?”. Apesar de se mostrar um bom pai para Maddy, Sean bebia e perdia o controle, gritava e abusava psicologicamente de Alex, at� que ela resolve dar um basta.
Atualmente, � muito comum normalizarmos atitudes t�xicas dentro dos relacionamentos. A psic�loga Maria Clara Marques, cujo foco de estudo s�o as rela��es de g�nero, nos conta que muita gente n�o sabe que vive um relacionamento abusivo. “As pessoas, por vezes, n�o conseguem reconhecer certas atitudes do outro como t�xicas e/ou abusivas”, explica.
Para quem vive a situa��o � dif�cil perceber algo, mas � necess�rio estar atento, pois a viol�ncia e os exageros se iniciam de forma s�til. � muito importante prestar aten��o na atitude de seu parceiro, contar com o apoio das pessoas ao redor, e, realmente, entender o que se transmite na rela��o. Atente-se � famosa frase: mantenha o desconfi�metro ligado!
E n�o deixe que sinais claros passem diante de seus olhos. “A pessoa abusiva vem sempre com aquele discurso do cuidado: ‘Eu s� t� cuidando de voc�, pelo seu bem. Eu s� quero te proteger’. � tanta prote��o que a pr�pria pessoa n�o sabe, nem mesmo, o que tanto protege, n�?”, comenta a psic�loga.
S�o muitos exemplos vividos no dia a dia, e muitas pessoas feridas por conta de atitudes obsessivas, tanto psicologicamente quanto fisicamente, muitas vezes, por n�o perceber os sinais que lhe foram transmitidos.
Neste sentido, a psic�loga indica uma s�rie importante, para que todos vejam o ponto de vista do abusador: You (2018), da Netflix. A produ��o, com quatro temporadas, tem in�cio quando Joe se apaixona por Beck, uma cliente da livraria onde ele trabalha, e por quem se torna obcecado. Ao longo dos epis�dios, enquanto se desencadeia a paix�o doentia, emergem os tra�os de stalker e abusador de Joe, que sempre usa a pr�pria paix�o como desculpa para seus atos.
Al�m disso, a s�rie aborda o machismo na sociedade, o que tanto Maria Clara quanto F�bio Belo, psicanalista, dizem ser o ponto de partida para os relacionamentos abusivos. “Sempre existem sinais", comenta F�bio, acerca das manifesta��es de relacionamentos abusivos. Os sinais podem ser variados, mas sempre come�am com certos comandos sobre a v�tima, como se a pessoa fosse posse do agressor.
O psicanalista destaca que as pessoas que t�m tal tipo de comportamento abusivo tenham presenciado situa��es violentas ao longo da vida, com os pais, quando crian�a ou na adolesc�ncia, per�odo no qual o car�ter � formado. “� o mais prov�vel. Romances familiares refletem a base a partir da qual a gente replica algo. S�o padr�es emocionais e afetivos”, comenta.
O psicanalista destaca, ainda, que os homens tendem a ser mais violentos e t�xicos nos relacionamentos. Tal n�vel � estabelecido gradativamente, por conta da sociedade patriarcal e machista em que vivemos. “Isso n�o quer dizer que a gente n�o tenha que conversar sobre a viol�ncia das mulheres. Elas tamb�m abusam seus filhos e violentam maridos e parceiros, mas os casos e os dados de homens violentos � muito maior no Brasil”, analisa.
Neste sentido, F�bio recomenda que as pessoas com dificuldades para se expressar com o parceiro, que acabam por manifestar agress�o e viol�ncia, podem e devem recorrer ao atendimento psicol�gico. Aos poucos, esse tipo de comportamento pode ser revertido.
Outra dica da psic�loga Maria Clara Marques � o document�rio O sil�ncio dos homens (2019), produzido em conjunto com o Cons�rcio de Informa��es Sociais (CIS) da USP (Universidade de S�o Paulo). Nele, mais de 40 mil homens foram entrevistados, para falar sobre masculinidade, dores, qualidades, omiss�es e processos de mudan�a. Alguns dos entrevistados j� foram t�xicos e abusadores em relacionamentos, e o filme fala um pouco sobre a raiz do problema.
Para al�m do document�rio, a psic�loga sugeriu ideias sobre como lidar com um relacionamento t�xico. “Algumas ONGs funcionam para ajudar mulheres, com profissionais de psicologia e assist�ncia social, normalmente, de forma gratuita”. Um desses locais se chama “N�o era amor”, site e perfil do Instagram com divulga��o de servi�os psicol�gicos e de assist�ncia a v�timas de viol�ncia, para trazer for�a e fazer com que as pessoas consigam sair de rela��es abusivas.
Por fim, Maria Clara ressalta, �s pessoas, elementos importantes para preven��o � toxicidade: “Tenha consci�ncia do que � viol�ncia. Recomendo uma boa rede de apoio, com pessoas para contar o que se passa, e em quem se confia. Que se possa expor o que est� ocorrendo”
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Para ver e ler
Com as recomenda��es abaixo, ser� poss�vel compreender melhor o problema das rela��es abusivas
Perfect Blue (1997)
Para quem gosta de anima��es, Perfect Blue � dirigida por Satoshi Kon, e se baseia no livro de mesmo nome, do autor Yoshikazu Takeuchi. O filme aborda a hist�ria de Mima Kirigoe, ex-cantora de um grupo de m�sica pop, que decidiu deixar o emprego de lado para investir na carreira de atriz. Contudo, suas expectativas de seguir tranquila na nova fase da vida s�o quebradas por uma figura desconhecida, que observa todos passos da artista e os registra em um di�rio online. As a��es fazem com que a sa�de mental da jovem comece a deteriorar, ao mesmo tempo em que ela perde a no��o do real e do ilus�rio.
Obsess�o secreta (2019)
O filme conta a hist�ria de quando Jennifer Williams (Brenda Song) � brutalmente atacada, e perde a consci�ncia. Enquanto se recupera, ela retoma fragmentos de mem�rias. Seu marido, Russell (Mike Vogel), n�o v� a hora de lev�-la para casa. Enquanto ele a ajuda em seu dia a dia, o detetive Page (Dennis Haysbert) persegue o agressor de Jennifer. Por�m, a mulher corre risco de vida, ao perceber que seu marido, al�m de esconder segredos obscuros, n�o � quem ela acreditava ser.
� assim que acaba
Um livro sobre as escolhas corretas nas situa��es mais dif�ceis. As coisas nunca foram f�ceis para Lily, mas isso nunca a impediu de conquistar a vida t�o sonhada. Ela percorreu um longo caminho desde a inf�ncia, formou-se em marketing, mudou para Boston e abriu a pr�pria floricultura. At� que se sente atra�da por um lindo neurocirurgi�o, Ryle Kincaid, e tudo parece perfeito demais para ser verdade. Ryle � obstinado, confiante, e, talvez, um pouco orgulhoso. Por�m, sua grande repuls�o a relacionamentos � perturbadora. Al�m de estar sobrecarregada com as quest�es sobre a nova rela��o, Lily n�o consegue tirar Atlas Corrigan da cabe�a, e sua liga��o com o passado � deixada para tr�s. Ele foi seu primeiro amor, algu�m com quem tinha grande afinidade. Quando Atlas reaparece de repente, tudo que Lily construiu com Ryle fica em risco. Em romance ousado e extremamente pessoal, Colleen Hoover conta uma hist�ria arrasadora, mas, tamb�m, revolucion�ria, por n�o ter medo de discutir temas como abuso e viol�ncia dom�stica. Trata-se de uma narrativa inesquec�vel, sobre um amor perigoso.
* Mat�ria produzida por alunos do Centro Universit�rio UNA, sob supervis�o do professor Maur�cio Guilherme.
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