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O que a jornada de uma paciente revela sobre as doenças raras no Brasil

Com diagnósticos desafiadores e tratamentos de alto custo, pacientes com doenças como HPN enfrentam um sistema ainda pouco preparado para acolher suas jornadas

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Receber o diagnóstico de uma doença rara foi um baque para Thais Cândido. Ela não aceitava que, entre milhões de pessoas, justo ela tivesse a hemoglobinúria paroxística noturna (HPN), uma doença que afeta apenas 1,3 pessoa a cada milhão. “Eu precisei entender e aceitar aquele diagnóstico, porque, se eu não aceitasse, teria duas batalhas pela frente: a da doença e a da negação", diz Thais.

A HPN é uma doença rara, causada por uma mutação genética que gera insuficiência na atuação da medula óssea, o que pode levar à sua destruição prematura dentro dos vasos sanguíneos por mecanismos regulares de defesa do próprio corpo, o sistema complemento. A doença pode causar danos a órgãos prioritários, como rins e pulmões, e a formação excessiva de coágulos que podem vir a bloquear o fluxo sanguíneo.

Natural de Olinda, Thais tem 31 anos e recebeu o seu diagnóstico há dez. Antes de descobrir o que tinha, ela costumava sentir muito cansaço, fadiga e chegava até a ter desmaios, mas achava que esses sintomas eram efeitos de uma rotina cansativa. Em um dos episódios mais críticos, sua hemoglobina caiu a 1,5 g/dL (o normal para mulheres varia entre 12,0 e 15,5 g/dL). “Eu estava praticamente morta. Tenho esse exame guardado até hoje, pois ele é uma lembrança de que eu cheguei até aqui e existe um propósito para a minha vida”, conta.

Thais Cândido foi diagnosticada com hemoglobinúria paroxística noturna (HPN) aos 21 anos
Thais Cândido foi diagnosticada com hemoglobinúria paroxística noturna (HPN) aos 21 anos Arquivo pessoal

Foram anos até o diagnóstico correto. Nesse caminho, Thais passou por diversos médicos e hospitais que não conseguiam identificar a causa da sua hemoglobina baixa. Quando a resposta ainda parecia distante, Thais foi atendida em um hospital da rede pública de saúde da sua cidade, onde foi encaminhada à Fundação de Hematologia e Hemoterapia de Pernambuco (HEMOPE). Lá ela realizou diversos exames, entre eles, a imunofenotipagem por citometria de fluxo, que analisa o sangue para identificar as células doentes. Após uma longa e difícil busca por respostas, ela finalmente recebeu a notícia que transformaria a sua vida. Mas Thais não caminhou sozinha. O apoio da família, de amigos e da associação de pacientes foi crucial. “Ninguém na minha família tinha sequer ouvido falar na doença. Mas eles estiveram comigo o tempo todo. Eu não teria conseguido sem isso”, afirma.

Segundo Ana Paula Azambuja, hematologista responsável pelo ambulatório de HPN e anemia aplástica do HC de Curitiba/PR, a HPN não é uma doença hereditária, ou seja, não passa de pais para filhos. Ela é causada por uma mutação adquirida ao longo da vida em uma célula da medula óssea, e pessoas com doenças da medula óssea, como anemia aplástica, têm maior risco de desenvolvê-la.

A HPN pode resultar em complicações graves como trombose, anemia severa, fadiga, hemoglobinúria, envolvimento renal, dor abdominal, disfagia (dificuldade
de deglutição) e dispneia (falta de ar). De acordo com Ana Paula, os principais tratamentos para a doença são medicamentos que bloqueiam uma parte do
sistema complemento, impedindo a destruição das células sanguíneas. Eles ajudam a controlar os sintomas, reduzem o risco de trombose e melhoram a qualidade de vida do paciente.

A doença pode causar a formação excessiva de coágulos que podem vir a bloquear o fluxo sanguíneo
A doença pode causar a formação excessiva de coágulos que podem vir a bloquear o fluxo sanguíneo Arquivo pessoal

Após o diagnóstico, Thais iniciou alguns tratamentos, mas não teve resultados expressivos — até começar a usar a pegcetacoplana. Em um mês, os benefícios do
tratamento começaram a aparecer. “Foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida, eu sou muito grata a Deus e a todos que correram atrás dessa terapia junto comigo”, afirma. Além da melhora clínica, o impacto foi emocional. A icterícia, característica da doença, deixava sua pele e os olhos amarelados, afetando diretamente sua autoestima. “A medicação não trouxe só saúde. Trouxe de volta a vontade de viver”, compartilha.

A jornada de Thais é parecida com a de muitos pacientes com doenças raras no Brasil. O país ainda enfrenta entraves importantes na incorporação e disponibilização de terapias inovadoras no sistema público e privado, além de desafios para o diagnóstico precoce das doenças e para a disseminação de conhecimento técnico entre profissionais da ponta. A hematologista explica que esses tratamentos representam um grande avanço da medicina, já que, até pouco tempo atrás, a maioria das doenças raras como a HPN, não tinha tratamento específico. “As terapias inovadoras aumentam a sobrevida, controlam sintomas graves e devolvem autonomia aos pacientes. A falta de acesso a elas causa atrasos e incertezas no cuidado médico dessas doenças”, complementa.

Para Ângelo Maiolino, hematologista e presidente da Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (ABHH), que é um defensor ativo do acesso a essas terapias e reforça que o inconformismo aliado à inovação e à busca por excelência clínica é um motor poderoso para transformar realidades. "O acesso às novas terapias fez a diferença na vida de milhares de pacientes. Nosso papel é continuar inconformados, buscar inovação e pressionar por sua incorporação”, afirmou o especialista durante a 2ª edição do SPHERE – Summit Pint Pharma in Hematology and Rare Diseases, realizada em abril de 2025.

Inconformismo que vai além da busca por tratamentos inovadores mas que precisa fazer parte de toda a cadeia envolvida na jornada de um paciente raro. Pacientes precisam se inconformar com a falta de acesso a tratamentos, médicos e outros profissionais da saúde precisam sair da zona de conforto de “apenas clinicar ou receitar um medicamento” e assumir um protagonismo pela causa, e associações precisam buscar caminhos para transformar o cenário de doenças raras no Brasil. Não se conformar é a chave para mudanças.

Para Thais, o diagnóstico já não é mais uma sentença. Ela ressignificou muitos aspectos na sua vida com o descobrimento da doença e transformou a dificuldade em força. Porém, ela sabe que existem muitas pessoas que continuam esperando, procurando respostas, tentando sobreviver ao desconhecido, e deseja que todas as pessoas possam ter a rede de apoio que ela teve, com família, médicos e associações empenhados em facilitar a caminhada desses pacientes.

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