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Estado de Minas A VIOL�NCIA RACIAL

As muitas formas de se matar negros

Racismo � brasileira promove quatro formas de morte negra: a psicol�gica, a da reputa��o, a social e a f�sica; entenda


24/06/2021 06:00 - atualizado 23/06/2021 12:09

(foto: Reprodução/Redes Sociais)
(foto: Reprodu��o/Redes Sociais)


Minha coluna de estreia neste site, em tom otimista, aventava para a emerg�ncia de um novo contrato social no Brasil, n�o mais marcado pela nega��o da dimens�o estrutural do racismo, mas sim por sua explicita��o como o primeiro, de muitos e dolorosos, passos em dire��o � sua supera��o. Retorno ao tema poucos meses depois, por�m sem o mesmo otimismo de antes.

Semana passada, o instrutor de surf Matheus Ribeiro, de 22 anos, foi acusado injustamente, por um casal de jovens brancos do Leblon, Rio de Janeiro, de ter furtado uma bicicleta el�trica. O caso culminou em uma den�ncia de racismo e seus desdobramentos ao longo da semana revelam, no meu entender, a for�a at�vica de um padr�o bastante espec�fico de discrimina��o racial que a literatura acad�mica especializada convencionou chamar de racismo � brasileira.

Retomarei esse ponto mais adiante. Antes, por�m, trarei a lume o rico debate sobre o racismo e a pilhagem de corpos negros presente nas obras de dois grandes escritores, James Baldwin e Ta-Nehisi Coates, para sustentar os argumentos que desenvolverei em seguida, ao pensar o caso Matheus como ep�tome do racismo � brasileira.

Em The Fire Next Time (Da pr�xima vez, o fogo), James Baldwin escreve uma carta ao sobrinho adolescente no centen�rio da Proclama��o da Emancipa��o. Em um tom que oscila entre o �spero e o amoroso, Baldwin busca mostrar ao sobrinho que suas condi��es sociais de exist�ncia e suas expectativas futuras s�o determinadas exclusivamente por conta da cor de sua pele. Mas que, para escapar da predetermina��o racista sobre onde ele poderia morar, o que poderia fazer e com quem poderia se casar, era fundamental que o sobrinho conhecesse sua pr�pria hist�ria e esse conhecimento o levaria a romper os limites impostos pelo racismo. O conselho mais importante que James Baldwin d� ao sobrinho, contudo, � para se lembrar que o que brancos pensavam sobre ele e o sofrimento que o causavam n�o era um testemunho sobre a sua inferioridade, mas sim sobre a desumanidade e medo dos pr�prios racistas.

Aproximadamente cinco d�cadas depois, Ta-Nehisi Coates publica Entre o Mundo e Eu. Escrito tamb�m em formato de carta, o livro de Coates � ao mesmo tempo um di�logo-homenagem � obra de James Baldwin e a den�ncia de que pouca coisa mudou em rela��o ao impacto do racismo na vida dos negros norte-americanos. Coates dirige sua carta ao filho de 15 anos e fala sobre a impossibilidade de um projeto bem-sucedido e democr�tico de uma sociedade que se baseia, e celebra, a viol�ncia e a pilhagem de corpos negros. Coates inicia a carta relembrando ao filho das mortes de Eric Garner, Renisha McBride, John Crawford, Tamir Rice e Marlene Pinnock, cidad�os negros assassinados injustamente pela viol�ncia do Estado. Coates relembra ao filho que essas, e outras tantas hist�rias tr�gicas, revelam que a pol�cia det�m a autoridade para destruir o corpo negro nos EUA e raras vezes � punida por isso. 

O medo que as fam�lias negras, mesmo as de classe alta, como a de Coates, t�m de perder os filhos para viol�ncia do Estado � a t�nica de todo o livro. E, assim como James Baldwin, Coates tamb�m acredita que s� haver� liberdade de fato quando brancos deixarem de acreditar que a humilha��o, o aprisionamento e a pilhagem de corpos negros os deixar�o seguros. Aqui reside o grande paradoxo do racismo: ao negar aos negros o pleno direito a humanidade os brancos tamb�m n�o s�o completamente humanos. Nesse sentido, Baldwin e Coates, cada um � sua maneira, fazem coro a uma famosa frase de Martin Luther King que diz: “devemos aprender a viver juntos como irm�os ou morreremos juntos como tolos”.

De maneira simplificada pode-se afirmar que tanto Baldwin quanto Coates est�o, em �ltima inst�ncia, preocupados com o status de humanidade de negros e brancos em sociedades profundamente marcadas pelo racismo. E � imposs�vel falar sobre o significado de ra�a e o que significa ser plenamente humano sem falar de uma luta constante contra diferentes formas de morte. E, a partir do caso Matheus, pretendo cotejar nos par�grafos seguintes o que considero ser as quatro formas de morte negra - a psicol�gica, a da reputa��o, a social e a f�sica - que o racismo � brasileira promove. 

O racismo � brasileira se caracteriza por ser velado, em que atitudes explicitas de preconceito e discrimina��o s�o desencorajadas e a coexist�ncia, aparamente isenta de conflitos, entre indiv�duos de diferentes origens �tnicas e raciais oblitera o car�ter hier�rquico dessas rela��es. Por conta dessas caracter�sticas considero que o caso Matheus exemplifica como poucos quase todos os elementos presentes no racismo � brasileira e sua rela��o com as 4 formas de morte negra que detalharei a seguir.

Matheus estava na entrada de um shopping, esperando a namorada, quando foi abordado por casal de jovens brancos. A mo�a afirmou que sua bicicleta havia sido furtada e era id�ntica � do Matheus. Ap�s alguns minutos de insist�ncia, em que Matheus mostra fotos da bicicleta no celular para comprovar a propriedade do bem, o casal s� se d� por convencido quando tenta abrir o cadeado de prote��o da bicicleta com sua chave e n�o consegue. Pelo que � poss�vel acompanhar pelo v�deo gravado pelo pr�prio Matheus, em nenhum momento o casal se vale de express�es preconceituosas ou racistas. Ou seja, na superf�cie o incidente pode ser lido como uma simples confus�o.

A abordagem do casal ao Matheus e as primeiras informa��es que sa�ram sobre o caso nos notici�rios guardam estreita rela��o com o que considero a morte ps�quica dos negros. O fato de que, num ambiente repleto de gente, a suspei��o reca�sse automaticamente sobre um jovem negro portando um bem relativamente caro � bastante significativo. A morte ps�quica � produzida pelos estere�tipos, constantemente incutidos na cabe�a das pessoas negras, de que elas s�o feias, burras, incompetentes, propensas ao crime e reproduzidas ad nauseuam no tecido social. A resposta inicial da m�dia ao incidente tamb�m � reveladora: o rosto do rapaz foi estampado na capa de um jornal de grande circula��o, mas o seu nome n�o foi mencionado. Na chamada de um programa televisivo que o entrevistaria no dia seguinte, mais uma vez ele foi apresentado apenas como o rapaz negro que acusou um casal de racismo. O subtexto n�o poderia ser mais claro: negros n�o t�m direito sequer de ser chamados pelo nome. 

Logo em seguida vieram as tentativas de matar a reputa��o do rapaz. Essa � uma pr�tica constante sempre que negros s�o v�timas de alguma forma de viol�ncia que possa ter o racismo como um de seus elementos. Aconteceu na chacina do Jacarezinho, quando os notici�rios revelarem que a maioria das pessoas assassinadas pela pol�cia tinha alguma passagem pela pol�cia. Aconteceu logo ap�s o assassinato da vereadora Marielle Franco, quando tentaram asssoci�-la � mil�cia e a defesa de bandidos. E n�o seria diferente com o Matheus. Primeiro o delegado do caso n�o considerou qualquer ind�cio de racismo no incidente. E, para piorar, a pol�cia descobriu que a bicicleta que Matheus comprou por 3.600 reais em um site de vendas de objetos de segunda m�o era furtada. De v�tima Matheus pode passar a r�u por recepta��o, apesar de se tratar de conduta at�pica, uma vez que n�o teria como ele saber a origem do produto comprado de terceiros. 

Tamb�m � poss�vel encontrar elementos da morte social negra nessa hist�ria. Sempre que casos de racismo vem � tona h� uma tend�ncia de se minimizar o acontecido e tentar encontrar explica��es alternativas para a situa��o. Erige-se todo um arcabou�o para prote��o e impedimento de puni��o daqueles que foram acusados de racismo. Nesse caso espec�fico, um importante colunista de um jornal carioca escreveu texto no qual afirmava que a acusa��o de racismo era pesada demais e a demiss�o dos jovens, um ato desmedido (sem, no entanto, revelar que o rapaz foi “demitido” da empresa que pertence � m�e dele). Um jovem branco, tamb�m morador da zona sul do Rio de Janeiro, foi preso acusado de furtar bicicletas e, apesar das imagens das c�meras de seguran�a terem filmado seus atos e possuir 28 anota��es criminais, responder� ao processo em liberdade.

Ressalto que essa medida da justi�a � adequada e garante ao acusado o direito a ampla defesa. Entretanto, dificilmente um acusado negro em situa��o semelhante receberia esse tratamento justo. A morte social consiste na cria��o de uma s�rie de impedimentos para que o debate sobre racismo seja trazido efetivamente � tona e aqueles que cometem o crime de racismo sejam punidos. Tamb�m pode se expressar pelo apagamento da hist�ria e do legado deixado por pessoas negras. Mas � sobretudo uma forma de silenciamento social constante para que negros encontrem obst�culos s�rios para que lutem por direitos iguais.

Felizmente, o caso Matheus n�o resultou em morte f�sica, mas se houvesse um policial presente na hora da abordagem que o casal fez a ele as consequ�ncias seriam imprevis�veis. E nunca � demais lembrar que um jovem negro � morto no Brasil a cada 23 minutos, que um homem negro tem 74% mais chance de ser morto que um branco e a cada 100 pessoas presas injustamente 60 s�o negras.
� dif�cil n�o sucumbir ao pessimismo quando observamos que a sociedade brasileira insiste em n�o discutir seriamente o impacto que o racismo tem em nossa sociedade, n�o apenas do ponto de vista interpessoal, mas, sobretudo, para encontrar formas para a sua supera��o.



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