
Minha coluna de estreia neste site, em tom otimista, aventava para a emerg�ncia de um novo contrato social no Brasil, n�o mais marcado pela nega��o da dimens�o estrutural do racismo, mas sim por sua explicita��o como o primeiro, de muitos e dolorosos, passos em dire��o � sua supera��o. Retorno ao tema poucos meses depois, por�m sem o mesmo otimismo de antes.
instrutor de surf Matheus Ribeiro, de 22 anos, foi acusado injustamente, por um casal de jovens brancos do Leblon, Rio de Janeiro, de ter furtado uma bicicleta el�trica. O caso culminou em uma den�ncia de racismo e seus desdobramentos ao longo da semana revelam, no meu entender, a for�a at�vica de um padr�o bastante espec�fico de discrimina��o racial que a literatura acad�mica especializada convencionou chamar de racismo � brasileira.
Retomarei esse ponto mais adiante. Antes, por�m, trarei a lume o rico debate sobre o racismo e a pilhagem de corpos negros presente nas obras de dois grandes escritores, James Baldwin e Ta-Nehisi Coates, para sustentar os argumentos que desenvolverei em seguida, ao pensar o caso Matheus como ep�tome do racismo � brasileira.
Semana passada, o Retomarei esse ponto mais adiante. Antes, por�m, trarei a lume o rico debate sobre o racismo e a pilhagem de corpos negros presente nas obras de dois grandes escritores, James Baldwin e Ta-Nehisi Coates, para sustentar os argumentos que desenvolverei em seguida, ao pensar o caso Matheus como ep�tome do racismo � brasileira.
Em The Fire Next Time (Da pr�xima vez, o fogo), James Baldwin escreve uma carta ao sobrinho adolescente no centen�rio da Proclama��o da Emancipa��o. Em um tom que oscila entre o �spero e o amoroso, Baldwin busca mostrar ao sobrinho que suas condi��es sociais de exist�ncia e suas expectativas futuras s�o determinadas exclusivamente por conta da cor de sua pele. Mas que, para escapar da predetermina��o racista sobre onde ele poderia morar, o que poderia fazer e com quem poderia se casar, era fundamental que o sobrinho conhecesse sua pr�pria hist�ria e esse conhecimento o levaria a romper os limites impostos pelo racismo. O conselho mais importante que James Baldwin d� ao sobrinho, contudo, � para se lembrar que o que brancos pensavam sobre ele e o sofrimento que o causavam n�o era um testemunho sobre a sua inferioridade, mas sim sobre a desumanidade e medo dos pr�prios racistas.
Aproximadamente cinco d�cadas depois, Ta-Nehisi Coates publica Entre o Mundo e Eu. Escrito tamb�m em formato de carta, o livro de Coates � ao mesmo tempo um di�logo-homenagem � obra de James Baldwin e a den�ncia de que pouca coisa mudou em rela��o ao impacto do racismo na vida dos negros norte-americanos. Coates dirige sua carta ao filho de 15 anos e fala sobre a impossibilidade de um projeto bem-sucedido e democr�tico de uma sociedade que se baseia, e celebra, a viol�ncia e a pilhagem de corpos negros. Coates inicia a carta relembrando ao filho das mortes de Eric Garner, Renisha McBride, John Crawford, Tamir Rice e Marlene Pinnock, cidad�os negros assassinados injustamente pela viol�ncia do Estado. Coates relembra ao filho que essas, e outras tantas hist�rias tr�gicas, revelam que a pol�cia det�m a autoridade para destruir o corpo negro nos EUA e raras vezes � punida por isso.
O medo que as fam�lias negras, mesmo as de classe alta, como a de Coates, t�m de perder os filhos para viol�ncia do Estado � a t�nica de todo o livro. E, assim como James Baldwin, Coates tamb�m acredita que s� haver� liberdade de fato quando brancos deixarem de acreditar que a humilha��o, o aprisionamento e a pilhagem de corpos negros os deixar�o seguros. Aqui reside o grande paradoxo do racismo: ao negar aos negros o pleno direito a humanidade os brancos tamb�m n�o s�o completamente humanos. Nesse sentido, Baldwin e Coates, cada um � sua maneira, fazem coro a uma famosa frase de Martin Luther King que diz: “devemos aprender a viver juntos como irm�os ou morreremos juntos como tolos”.
De maneira simplificada pode-se afirmar que tanto Baldwin quanto Coates est�o, em �ltima inst�ncia, preocupados com o status de humanidade de negros e brancos em sociedades profundamente marcadas pelo racismo. E � imposs�vel falar sobre o significado de ra�a e o que significa ser plenamente humano sem falar de uma luta constante contra diferentes formas de morte. E, a partir do caso Matheus, pretendo cotejar nos par�grafos seguintes o que considero ser as quatro formas de morte negra - a psicol�gica, a da reputa��o, a social e a f�sica - que o racismo � brasileira promove.
O racismo � brasileira se caracteriza por ser velado, em que atitudes explicitas de preconceito e discrimina��o s�o desencorajadas e a coexist�ncia, aparamente isenta de conflitos, entre indiv�duos de diferentes origens �tnicas e raciais oblitera o car�ter hier�rquico dessas rela��es. Por conta dessas caracter�sticas considero que o caso Matheus exemplifica como poucos quase todos os elementos presentes no racismo � brasileira e sua rela��o com as 4 formas de morte negra que detalharei a seguir.
Matheus estava na entrada de um shopping, esperando a namorada, quando foi abordado por casal de jovens brancos. A mo�a afirmou que sua bicicleta havia sido furtada e era id�ntica � do Matheus. Ap�s alguns minutos de insist�ncia, em que Matheus mostra fotos da bicicleta no celular para comprovar a propriedade do bem, o casal s� se d� por convencido quando tenta abrir o cadeado de prote��o da bicicleta com sua chave e n�o consegue. Pelo que � poss�vel acompanhar pelo v�deo gravado pelo pr�prio Matheus, em nenhum momento o casal se vale de express�es preconceituosas ou racistas. Ou seja, na superf�cie o incidente pode ser lido como uma simples confus�o.
A abordagem do casal ao Matheus e as primeiras informa��es que sa�ram sobre o caso nos notici�rios guardam estreita rela��o com o que considero a morte ps�quica dos negros. O fato de que, num ambiente repleto de gente, a suspei��o reca�sse automaticamente sobre um jovem negro portando um bem relativamente caro � bastante significativo. A morte ps�quica � produzida pelos estere�tipos, constantemente incutidos na cabe�a das pessoas negras, de que elas s�o feias, burras, incompetentes, propensas ao crime e reproduzidas ad nauseuam no tecido social. A resposta inicial da m�dia ao incidente tamb�m � reveladora: o rosto do rapaz foi estampado na capa de um jornal de grande circula��o, mas o seu nome n�o foi mencionado. Na chamada de um programa televisivo que o entrevistaria no dia seguinte, mais uma vez ele foi apresentado apenas como o rapaz negro que acusou um casal de racismo. O subtexto n�o poderia ser mais claro: negros n�o t�m direito sequer de ser chamados pelo nome.
Logo em seguida vieram as tentativas de matar a reputa��o do rapaz. Essa � uma pr�tica constante sempre que negros s�o v�timas de alguma forma de viol�ncia que possa ter o racismo como um de seus elementos. Aconteceu na chacina do Jacarezinho, quando os notici�rios revelarem que a maioria das pessoas assassinadas pela pol�cia tinha alguma passagem pela pol�cia. Aconteceu logo ap�s o assassinato da vereadora Marielle Franco, quando tentaram asssoci�-la � mil�cia e a defesa de bandidos. E n�o seria diferente com o Matheus. Primeiro o delegado do caso n�o considerou qualquer ind�cio de racismo no incidente. E, para piorar, a pol�cia descobriu que a bicicleta que Matheus comprou por 3.600 reais em um site de vendas de objetos de segunda m�o era furtada. De v�tima Matheus pode passar a r�u por recepta��o, apesar de se tratar de conduta at�pica, uma vez que n�o teria como ele saber a origem do produto comprado de terceiros.
Tamb�m � poss�vel encontrar elementos da morte social negra nessa hist�ria. Sempre que casos de racismo vem � tona h� uma tend�ncia de se minimizar o acontecido e tentar encontrar explica��es alternativas para a situa��o. Erige-se todo um arcabou�o para prote��o e impedimento de puni��o daqueles que foram acusados de racismo. Nesse caso espec�fico, um importante colunista de um jornal carioca escreveu texto no qual afirmava que a acusa��o de racismo era pesada demais e a demiss�o dos jovens, um ato desmedido (sem, no entanto, revelar que o rapaz foi “demitido” da empresa que pertence � m�e dele). Um jovem branco, tamb�m morador da zona sul do Rio de Janeiro, foi preso acusado de furtar bicicletas e, apesar das imagens das c�meras de seguran�a terem filmado seus atos e possuir 28 anota��es criminais, responder� ao processo em liberdade.
Ressalto que essa medida da justi�a � adequada e garante ao acusado o direito a ampla defesa. Entretanto, dificilmente um acusado negro em situa��o semelhante receberia esse tratamento justo. A morte social consiste na cria��o de uma s�rie de impedimentos para que o debate sobre racismo seja trazido efetivamente � tona e aqueles que cometem o crime de racismo sejam punidos. Tamb�m pode se expressar pelo apagamento da hist�ria e do legado deixado por pessoas negras. Mas � sobretudo uma forma de silenciamento social constante para que negros encontrem obst�culos s�rios para que lutem por direitos iguais.
Ressalto que essa medida da justi�a � adequada e garante ao acusado o direito a ampla defesa. Entretanto, dificilmente um acusado negro em situa��o semelhante receberia esse tratamento justo. A morte social consiste na cria��o de uma s�rie de impedimentos para que o debate sobre racismo seja trazido efetivamente � tona e aqueles que cometem o crime de racismo sejam punidos. Tamb�m pode se expressar pelo apagamento da hist�ria e do legado deixado por pessoas negras. Mas � sobretudo uma forma de silenciamento social constante para que negros encontrem obst�culos s�rios para que lutem por direitos iguais.
Felizmente, o caso Matheus n�o resultou em morte f�sica, mas se houvesse um policial presente na hora da abordagem que o casal fez a ele as consequ�ncias seriam imprevis�veis. E nunca � demais lembrar que um jovem negro � morto no Brasil a cada 23 minutos, que um homem negro tem 74% mais chance de ser morto que um branco e a cada 100 pessoas presas injustamente 60 s�o negras.
� dif�cil n�o sucumbir ao pessimismo quando observamos que a sociedade brasileira insiste em n�o discutir seriamente o impacto que o racismo tem em nossa sociedade, n�o apenas do ponto de vista interpessoal, mas, sobretudo, para encontrar formas para a sua supera��o.