
Negra, m�e solteira de tr�s filhos e catadora de papel e do que mais encontrasse nas ruas para vender ou trocar por comida, escreveu um di�rio que veio a se tornar um livro. ''Quarto de despejo'' � o relato dessa mulher que, al�m de pobre (miser�vel, para usar a palavra mais adequada), era chefe de fam�lia e vivia desafios di�rios de sobreviv�ncia impostos de forma violenta. Em alguns momentos, n�o h� como n�o chorar ou sentir falta de ar ao ler "Quarto de despejo".
No in�cio da d�cada de 60, os filhos de Carolina n�o tinham condi��es de romper com o ciclo de pobreza em que estavam envolvidos. Nos dias de hoje, seis d�cadas depois, a situa��o ainda persiste. O �ltimo levantamento mais amplo sobre as caracter�sticas socioecon�micas por cor ou ra�a no Brasil refere-se ao ano de 2018, embora alguns dados cheguem at� 2021, por meio da Pesquisa Nacional por Amostra de Domic�lios Cont�nua (Pnad-C), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estat�stica (IBGE).
Muito embora a popula��o brasileira preta ou parta corresponda a 54,4% da popula��o total, sua representatividade � muito menor em indicadores de acesso a melhores oportunidades. Em 2018, representavam apenas 24,4% dos quadros legislativos federais e somente 29,9% de cargos gerenciais no mercado de trabalho em geral.
No primeiro trimestre de 2021, pessoas de cor preta e parda recebiam 56,7% do rendimento m�dio auferido pelas brancas, al�m de serem sensivelmente mais afetadas pela pandemia da Covid-19: taxas de desocupa��o (desemprego) de 18,6% (pretas) e 16,9% (pardas), expressivamente superiores �quelas experimentadas pelas brancas (11,9%).
Por tr�s da acintosa diferen�a das taxas de desemprego, residem as causas da reprodu��o do ciclo intergeracional da pobreza: em 2018, a taxa de analfabetismo das pessoas pretas e pardas de 15 anos ou mais de idade era quase tr�s vezes a das brancas.
O reflexo se d� diretamente nos indicadores de pobreza: 32,9% da popula��o preta e parda, em 2018, vivia com menos de vinte e oito reais por dia; j� na popula��o branca, esse percentual era de 15,4%. Para a linha de pobreza dos extremamente pobres, que considera renda di�ria de R$9,50, as diferen�as acentuam-se ainda mais: 8,8% da popula��o preta e parda viviam com menos do que esse valor di�rio, ante 3,6% da popula��o branca.
Para fechar o panorama geral, as estat�sticas de viol�ncia n�o colaboram. Entre 2012 e 2017, a taxa de homic�dio de pessoas brancas, entre 15 e 29 anos de idade, praticamente n�o se alterou, mas entre as pessoas pretas e pardas sofreu aumento de quase 10%. No comparativo entre os n�veis dessas taxas, em 2017, uma pessoa preta ou parda tinha 2,7 vezes mais chances de ser v�tima de homic�dio intencional do que uma pessoa branca.
H� dez dias, o pa�s viveu mais um epis�dio de viol�ncia. N�o se tratou de homic�dio, mas, sim, de preconceito, de revela��o de uma cultura incutida dentro do inconsciente coletivo de um pa�s que evita encarar seu racismo. A bicicleta el�trica roubada da jovem loira no Leblon n�o era a mesma de propriedade do jovem negro Matheus, mas parece tratar-se daquela que estava sendo usada, nos �ltimos dias, por um rapaz branco residente de um bairro da Zona Sul carioca.
No dia 22 de junho, h� quase seis d�cadas, Carolina Maria de Jesus escreveu em seu di�rio:
“Dizem que o Brasil j� foi bom. Mas eu n�o sou da �poca do Brasil bom...Hoje eu fui me olhar no espelho. Fiquei horrorizada. O meu rosto � quase igual ao da minha saudosa m�e. E estou sem dente. Magra. Pudera! O medo de morrer de fome!”
Hoje, 22 de junho, eu, brasileira, branca, com n�vel de escolaridade superior, pude escrever essas linhas sentada na cadeira do meu escrit�rio, grata por toda sorte que a vida me proporcionou em exatos 54 anos de vida. Entre a minha hist�ria e a luta por sobreviv�ncia das Carolinas e dos jovens Matheus negros reside intranspon�vel abismo. A fome e a sede de viver parecem ter cor.