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Estado de Minas DIREITO SIMPLES ASSIM

Entre Bis, KitKat e a necessidade de voltarmos a ter vergonha

As discuss�es recentes sobre os chocolates do Brasil mostram como a gente tem prazer em perder tempo com coisas in�teis.


18/10/2023 06:00 - atualizado 18/10/2023 09:47
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Palhaço caracterizado, com roupas coloridas, peruca, nariz vermelho e rosto pintado, mas com semblante triste.
A pol�tica brasileira � um circo e a culpa � nossa. (foto: Flickr)
J� recebi cr�ticas de que aqui na coluna do Estado de Minas eu falo mais de pol�tica do que de direito e, em tese, a coluna se chama “Direito Simples Assim” para falar de direito. Pois ent�o, os fatos que eu quero discutir hoje surgiram exatamente da reflex�o sobre essas cr�ticas.

 

As pessoas em geral t�m a ideia de que direito � uma coisa e pol�tica � outra. Assim, fica separado de um lado o direito, as leis, os c�digos, a Constitui��o (com “c” mai�sculo para mostrar a defer�ncia) e toda a pompa, circunst�ncia e seriedade. A� de outro lado est� a pol�tica, esse “circo de horrores” como muitos gostam de destacar.

 

A pol�tica � cheia das bizarrices e basta acompanhar minimamente o notici�rio que voc� se depara com uma lista intermin�vel de exemplos. Eu ainda acho insuper�vel o “Vossa Excel�ncia recolha-se � sua insignific�ncia” dito por Severino Cavalcanti ao educado, mas malcriado, Fernando Gabeira.

 

Tem ainda a cl�ssica “s�o palavras que n�o aceito, quero que o senhor as engula e as digira como julgar conveniente” proferida aos brados por Fernando Collor para Pedro Simon bem no plen�rio do Senado. Mas os casos s�o intermin�veis e cada um pode ter um de estima��o que ainda sobram exemplos. 

 

 

Da� voc� percebe como � tentador colocar essas duas coisas em “balaios” completamente distintos? Voc� faz uma busca na internet por “direito” e os resultados s�o s�brios, pasteurizados at�, como se f�ssemos todos uma grande ordem uniformizada de sapatos de couro reluzentes e scarpins refinados. Por outro lado, se voc� faz a mesma busca por pol�tica, aparece de um tudo, charge, meme, coisa s�ria, clich�s e mais uma mir�ade de coisas. 

 

E a� que entra a pegadinha, porque n�o tem diferen�a alguma entre uma coisa e outra. Direito e pol�tica sem um olhar academicista (e, portanto, tipicamente reducionista para caber no objeto da monografia) s�o a mesma coisa. At� porque a exist�ncia do direito depende da pol�tica e � diretamente influenciada por ela.

 

 

Direito � pol�tica em todos os sentidos. � ing�nuo (para n�o dizer outra palavra mais forte) achar que direito � uma ci�ncia pura a ser pensada, estudada e conhecida independente de vieses pol�ticos. Sabe por que n�o �? Porque vem o “legislador” (essa entidade abstrata que o academicismo jur�dico insiste em mitificar) e diz que omiss�o de socorro ao morto � crime (art. 304, par�grafo �nico, do C�digo de Tr�nsito).

 

E mesmo diante disso a gente precisa, com toda a solenidade necess�ria, continuar dizendo que n�o existem palavras in�teis na lei.

 

 

E agora voc� deve estar se perguntando o que isso tem a ver com o t�tulo desta coluna e eu te entendo. As vezes eu dou volta demais, mas o objetivo � nobre (o que n�o significa que seja alcan�ado): sempre mostrar como tudo pode ser mais complicado do que parece em um primeiro momento.

 

Pois bem, vimos o notici�rio pipocar em meio �s (intermin�veis e multiplic�veis) guerras uma disputa particular no Brasil: qual � o chocolate da direita e qual � o chocolate da esquerda. Eu tenho certeza que voc� tamb�m foi chamado a se posicionar se o Bis ia ou n�o mais entrar na sua casa.

 

E o que mais me chamou a aten��o em toda esta discuss�o circense � que tive a n�tida percep��o de que as pessoas em geral parecem n�o ter ideia de como isso impacta negativamente na vida de todos. Alimentar este tipo de discuss�o � alimentar este elemento pitoresco que vai atingir diretamente a nossa forma de fazer pol�tica.

 

E se atinge a nossa forma de fazer pol�tica, atinge diretamente o direito. Da� eu resolvi mostrar um pequeno combo dessas “coisinhas” para a gente refletir. Como eu gosto de apanhar de todos os lados, o combo � de 2022 e 2023, para n�o dizer que ficou algu�m sem ser contemplado:

 

a) Lei nº 14.315, de 28.3.2022: Confere ao Mun�cipio de Campo Grande, no Estado de Mato Grosso do Sul, o t�tulo de Capital Nacional do Chamam�. Pronto, a nossa vida mudou com isso. E se voc� descobrir o que � “chamam�” me avisa.

 

b) Lei nº 14.539, de 31.3.2023: Institui a Campanha Nacional de Preven��o da Exposi��o Indevida ao Sol. Pode falar que voc� n�o sabia dos males da exposi��o indevida ao sol! E, obviamente, agora que temos lei, ningu�m mais vai ficar indevidamente exposto ao sol.

 

c) Lei nº 14.329, de 3.5.2022: Institui o Dia Nacional do Profissional de Log�stica. Era a valoriza��o que os profissionais de log�stica precisavam!

 

d) Lei nº 14.545, de 4.4.2023: Institui o Dia Nacional da Mulher Empres�ria. Obviamente voc� reparou a revolu��o na vida das mulheres empres�rias deste pa�s.

 

e) Lei nº 14.363, de 1º.6.2022: Confere o t�tulo de Capital Nacional da Cer�mica de Alta Temperatura � cidade de Cunha, no Estado de S�o Paulo. Pronto, como o pa�s viveu sem uma capital de cer�mica de alta temperatura?

 

f) Lei nº 14.549, de 13.4.2023: Institui a Semana Nacional do Uso Consciente da �gua. Agora sim a gente vai usar a �gua direito. 

 

g) Lei nº 14.389, de 30.6.2022: Institui o Dia Nacional da Nata��o. Deve ser porque tem pouca �gua no Brasil, ent�o precisa de comemora��es para a gente descobrir que existe a possibilidade de nadar.

 

h) Lei nº 14.558, de 25.4.2023: Institui o Dia Nacional do Ter�o dos Homens. N�o sei se tem um para as mulheres, mas agora o dos homens tem respaldo legal.

 

Sabe quanto essa brincadeira custa? S� o Legislativo Federal, no ano de 2022, torrou R$ 12 bilh�es de reais. Se dividir esse valor pelos 365 dias do ano, d� R$ 32.876.712,32 (trinta e dois milh�es, oitocentos e setenta e seis mil e setecentos e doze reais e trinta e dois centavos) POR DIA! 

 

� uma draga sem fim de dinheiro! E isso n�o seria o maior problema se ele fosse direcionado para coisas efetivamente �teis e n�o para estabelecer o dia nacional da nata��o! E esses a� s�o s� uma parte do todo. Se fosse colocar a lista de coisas est�pidas que est�o publicadas somente em 2022 e 2023 esta coluna teria o tamanho de um testamento.

 

E observe que esta lista da estupidez se refere ao que foi aprovado! Tem a lista do que foi rejeitado e que � mais dif�cil de acompanhar e at� mesmo de saber que existe. 

 

Sabe qual a fonte de tudo isso? A discuss�o pelo Bis e o KitKat. Sim! Quando se percebe que a for�a motriz da aten��o das pessoas est� no que � esdr�xulo e est�pido, � isso que vai movimentar a conduta daqueles que precisam viver da movimenta��o desta for�a.

 

Quando a estrutura do legislativo � utilizada para institucionalizar o dia do ter�o dos homens, o que est� acontecendo � a apropria��o pol�tica da ideologia da discuss�o do Bis. � a idiotiza��o da m�quina em prol da contempla��o da idiotiza��o do discurso.

 

E o pior: funciona! Ou seja, quando um pol�tico fala uma bobagem, n�o � vergonha alheia, mas vergonha pr�pria. E est� faltando vergonha. Talvez o que a gente mais precise atualmente � de ter vergonha.

 

� preciso criar uma pol�tica p�blica em prol do constrangimento, com o objetivo de incentivar as pessoas a sentirem vergonha de participar de coisas est�pidas, de falar asneiras e, principalmente, de guiar o pensamento sobre os rumos do pa�s baseados em fundamentos incab�veis para a 5ª s�rie C (quem � da d�cada de 1980 vai entender...). Garanto que se a gente come�asse a ficar com vergonha dessas coisas j� melhorava bastante e, muito provavelmente, sobraria tempo e dinheiro para falar do que importa.

 

O espa�o pol�tico n�o � um lugar para se divertir e n�o deve ser em hip�tese alguma. � sisudo, burocr�tico, chato mesmo, porque deve ter gente falando de coisa s�ria, de forma s�ria e, preferencialmente, de forma econ�mica, o tempo todo. 

 

Eu tenho muita vergonha de ver um monte de adulto se propondo a discutir politicamente marcas de chocolate, principalmente quando percebo que eles realmente est�o se levando a s�rio. Ao mesmo tempo, percebo o porqu� de a nossa democracia ser t�o fr�gil e t�o irreal: a gente se distrai por muito pouco e ainda tem dificuldade de separar o que � e o que n�o � importante. 

 

� s� jogar um chocolatinho na mesa que as crian�as se estapeiam e se lambuzam enquanto alguns adultos se deliciam com o fondue. 

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