
O meu primeiro emprego registrado ap�s concluir as gradua��es de jornalismo e de publicidade e propaganda foi como professora de l�ngua portuguesa na Escola Estadual Paulo Freire localizada dentro de um complexo penitenci�rio de seguran�a m�xima chamado Nelson Hungria. Me lembro que quando conhecidos, amigos e parentes ficavam sabendo do meu novo emprego, a primeira pergunta quase sempre era: voc� n�o tem medo de dar aula para bandido?
Eu dava aula em dois pavilh�es abertos e o restante eram fechados. Pavilh�o aberto s�o aqueles que os privados de liberdade tem o “beneficio” de trabalhar l� no pres�dio mesmo, nas f�bricas que t�m l� dentro, na lavanderia, em obras e nos diversos servi�os de manuten��o da unidade. Nos pavilh�es abertos eu ficava no mesmo ambiente que meus alunos sem nenhuma grade que nos separavam assim tal qual uma turma de escola regular. J� as pessoas que estavam no pavilh�o fechado n�o tinham o beneficio do trabalho que proporcionava uma remiss�o, que a cada dois dias trabalhados eles tinha direito a um dia a menos na pena, al�m disso durante as aulas eles ficavam trancados assim como eu em um espa�o que nos separavam com uma grade. Ent�o acho que n�o � dif�cil entender que quem esta no pavilh�o aberto n�o quer ir para o pavilh�o fechado n�o � mesmo? Mas havia uma fila de espera gigantesca de quem estava nos pavilh�es fechados querendo ir para os abertos.
Um dia, quando fui dar aula no pavilh�o fechado, me deparei com um aluno meu que estava no aberto na semana anterior e, mesmo n�o sendo adequado fazer determinadas perguntas aos alunos, me escapou: "Uai, o que voc� est� fazendo aqui?". Ele me respondeu que teve problema com um colega de pavilh�o e que n�o queria ficar em pavilh�o lotado de estupradores. Eu inocentemente rebati, "mas l� n�o tem estuprador n�o", e ele respondeu olhando bem nos meus olhos: "Voc� que pensa". Fiquei com um p� atr�s, guardei a informa��o, continuei dando minhas aulas mais atenta do que nunca, mas nada que me paralisasse. Afinal uma jornalista e publicit�ria n�o iria atravessar duas cidades para dar aula em um ambiente hostil e insalubre como s�o as cadeias brasileiras se n�o fosse por necessidade financeira, n�o � mesmo?
Passadas algumas semanas, no final de uma das aulas, um aluno novato na turma veio tirar d�vidas na minha mesa e tr�s alunos permaneceram sentados no fundo da sala. O aluno que estava tirando as d�vidas diziam para o grupo sentado que podiam se retirar, mas o grupo permaneceu fazendo de conta que nada tinha sido dito a eles. S� depois que eu sanei as d�vidas do aluno e que o aluno saiu � que os demais se levantaram e sa�ram da sala. Um deixou escapar propositalmente para eu ouvir: "Estuprador precisa s� de dois minutos. � ruim que a gente vai dar esse mole". E esse era o c�digo, se um aluno que tivesse cometido qualquer crime que n�o fosse estupro, todos os alunos sa�am e te deixavam sozinha com quem quisesse fazer alguma pergunta ou tirar alguma d�vida. J� estupradores, n�o.
Como a maioria da popula��o carcer�ria n�o queria perder o benef�cio da remiss�o que o pavilh�o aberto proporcionava, eles se esfor�avam para tolerar os estupradores que ali estavam, sem arrumar nenhuma criaca. Mesmo eu sabendo que cadeia � um lugar povoado por maldade e que provavelmente ningu�m ali estava rezando quando foi preso, me senti segura na medida do poss�vel. N�o em raz�o dos agentes penitenci�rios porque na sala s� era eu e os meus alunos, mas porque os meus outros alunos mesmo naquele momento estando privados de suas liberdades se posicionavam para preservar a minha integridade f�sica. Nas �ltimas semanas me lembrei algumas vezes desse per�odo da minha vida em 2013 ao acompanhar as not�cias da pris�o do jogador de futebol Daniel Alves acusado de ter sido o autor de um crime de estupro na Espanha, acompanhado do sil�ncio e da in�rcia dos outros homens que n�o impedem essas situa��es de acontecerem.
N�o, eu n�o proponho criticamente que os homens julguem ou criminalizem os seus colegas, irm�os que est�o na situa��o do Daniel Alves, at� porque infelizmente isso � o que minha fam�lia chama de chutar cachorro morto. E porque ele � um homem negro e mesmo que n�o tenha cometido esse crime, ele � o estere�tipo racista perfeito de elemento suspeito. O sistema de justi�a que fa�a o trabalho dele, e que apure se ele � ou n�o � culpado, se ele deve ou n�o ser criminalizado. O que eu proponho � que esses homens lembrem que nasceram de uma mulher, que muitas das vezes s�o irm�os, sobrinhos, tios, primos e pais de outras mulheres que assim como eu tem pavor de serem submetidas a um crime como esse.
No ultimo dia 12 de fevereiro, completou-se 11 anos da barb�rie de Queimadas na Para�ba, aquele estupro coletivo planejado e executados por “amigos” das cinco v�timas que resultou em dois feminic�dios. De forma recorrente, nos �ltimos anos cotidianamente assistimos e ouvimos diversos absurdos de cunho abusivo. Um exemplo foi quando o ent�o deputado Jair Bolsonaro disse a uma mulher que ela n�o merecia ser estuprada, porque ela � feia e, posteriormente, quando presidente da Rep�blica, ele disse que “pintou um clima” com meninas de 14 anos. Vimos tamb�m a dolorosa cena do m�dico anestesista Giovanni Quintella Bezerra introduzir seu �rg�o genital na boca de uma mulher desacordada durante o seu parto em um hospital p�blico.
Esses exemplos s�o os que se tornaram p�blicos na m�dia e eu me pergunto: e os outros casos de tantas mulheres an�nimas que passam por viol�ncias at� piores, como � que ficam? Ser� que os homens que est�o ao seu entorno t�m empatia? Ser� que eles alertam as poss�veis vitimas, impedindo um crime que basta dois minutos para ser realizado? Ser� que eles se colocam no lugar das mulheres enquanto poss�veis v�timas ou s� t�m empatia pelo poss�vel estuprador por se enxergarem nos lugares deles e por esse motivo h� esse doloroso sil�ncio e indiferen�a?