
As mensagens trocadas entre as patroas relataram que as trabalhadoras teriam "problemas com ronco", "comilona", "gordinha" e "dupla personalidade". Sem checagem, as mensagens eram disparadas no grupo e enviadas para outros grupos, conhecidos e poss�veis empregadores. Rapidamente e sem qualquer chance de defesa, as trabalhadoras se viram desempregadas e sem a possibilidade de contrata��o no mesmo meio.
Poderia ser uma tirinha da dupla Leandro Assis e Triscila Oliveira nas s�ries publicadas nas redes sociais e tamb�m reunidas no livro Confinada (ed. Todavia). Ali�s, poderia ser fic��o, n�o fosse algo t�o pr�ximo da nossa realidade.
Em 2022, o Mapeamento da Gordofobia no Brasil indicou que 50% das pessoas gordas sofrem com a falta de cadeiras, mobili�rios e uniformes adequados no ambiente de trabalho.
Um ano antes, em 2021, uma pesquisa desenvolvida pelo Grupo Catho com 31 mil executivos identificou que 65% dos empregadores n�o contratam pessoas gordas, al�m disso, identificou que estas pessoas, quando conseguem alguma inser��o no mercado de trabalho, recebem cerca de R$ 92 a menos por m�s do que pessoas magras na mesma fun��o.
Me percorre a espinha um arrepio de medo toda vez que penso que eu posso ter que, em algum momento, procurar trabalho novamente. O Mapeamento da Gordofobia aponta que 56% das pessoas gordas enfrenta o desafio com uniformes que causam constrangimento e falta de disponibilidade e tamanho.
Automaticamente, volto a ter 16 anos e estou � procura do meu primeiro emprego, pensando: "Ser� que vai caber? Ser� que o GG � o maior tamanho que tem? E se ficar apertado, eu posso levar � costureira e pedir para soltar as laterais, sempre tem um pouco de pano sobrando. Ou, em �ltimo caso, posso pedir que ela fa�a um id�ntico para mim. Isso. vai ter uma solu��o. � imposs�vel que n�o exista uma forma de eu caber no uniforme. Se tiver que bordar o logo, eu levo numa empresa que faz este tipo de servi�o e encomendo. Vai levar uns dias, mas ficar� pronto. Genial. Por que n�o pensei nisso antes? Ufa!".
Essa cena aconteceu comigo aos 16 anos, quando comecei a procurar meu primeiro emprego e, automaticamente, comecei a sentir medo de ser gorda demais para caber no uniforme, fosse uma camiseta, um jaleco, um avental. Dito e feito: como monitora de festa infantil num buffet, era dif�cil caber na �nica camiseta GG dispon�vel. S� n�o era mais dif�cil que descolar um trabalho ou freela para pagar as contas, sustentar a vida universit�ria.
Muito cedo, entendi que ser gorda seria um fator limitante na minha vida. Fosse nos acessos f�sicos, empregat�cios ou afetivos. Pensei que, se fosse intelectual, teria mais chances. Aos quase 38 anos, acho que n�o estava errada, mas, para ser intelectual e ter uma profiss�o ligada a isso, eu teria que ter trabalhos regulares, subalternizados e falar muito para conseguir n�o depender mais disso. E, neste caminho, d�-lhe gordofobia e empecilhos.
A mesma pesquisa mostra que 41% dos trabalhadores gordos apontam cabines de banheiro estreitas nos escrit�rios e ambientes de trabalho. Pois �, minha gente. Quem � que nunca teve que se espremer para fazer um xixi durante o expediente? Ou que nunca ficou segurando, tendo problemas na bexiga e nos rins por conta da gordofobia atravessando a exist�ncia?
Ainda na pesquisa, quase 30% das pessoas gordas afirmam ter dificuldades de acessar o mercado de trabalho e eu fico pensando quando n�o � uma lista feita por sinhazinhas claramente gordof�bicas, � a dificuldade do dia a dia mesmo: encontrar uma roupa que sirva, conseguir passar na catraca do �nibus, chegar numa entrevista e caber no mobili�rio da empresa, ter a sa�de mental inabal�vel para sustentar uma defesa de habilidades durante uma sabatina e din�micas de grupo. Levar um "gostamos de voc�, mas neste momento, buscamos outra coisa" ou "voc� n�o tem o perfil da empresa".
Eu j� contei por aqui de uma entrevista que fiz para ser recepcionista de um hotel na minha cidade? Comunicativa que sou, seria excelente na fun��o, n�o h� d�vidas. Por�m, sou uma mulher gorda. E era j�, aos 20 anos, que era mais ou menos a �poca da entrevista. Passei de etapa e, numa delas, recebi o "gostamos de voc�, mas vamos contratar a fulana". A fulana era loira, padr�o odonto. Eu, sem nada a perder, questionei: "posso saber o por qu�?". "Ah, � que ela fala ingl�s". � �poca, eu j� tinha cinco anos completos de curso de ingl�s e, frequentando as aulas assiduamente, estava afiad�ssima. Inclusive, j� tinha atendido h�spedes do hotel em busca de dicion�rios, em ingl�s.
N�o disse nada. A informa��o estava no meu curr�culo. Era s� uma quest�o de apar�ncia. E pessoas com a apar�ncia com a minha s�o sempre preteridas. Certa vez tamb�m, trabalhei em um evento. A organizadora brigou com uma das coordenadoras porque ela havia contratado uma mo�a preta e gorda, sob o pretexto de "ela � muito feia para o nosso evento". E at� hoje me perguntam porque n�o voltei a trabalhar l�, no meu cargo, intelectualizado, que me dava a passabilidade que esta colega n�o tinha.
E sim, eu poderia ficar para sempre aqui, citando os dados da pesquisa, que mostram que 8% das empresas preferem que a pessoa gorda contratada n�o tenha contato direto com o cliente - olha eu, intelectualizada aqui.
Al�m disso, 6,5% n�o foram aprovados no exame admissional por conta do peso e 22,9% enfrentam gestores que sugeriram perda de peso. E aqui, volto com meu relato pessoal: num total de 100% das empresas que trabalhei antes de ser aut�noma, todas me pediram para emagrecer e "cuidar melhor" da apar�ncia.
Por isso, a den�ncia do grupo de WhatsApp mexe tanto comigo. Por isso eu morro de medo de ter que "voltar ao mercado de trabalho" e buscar empregos. Por isso eu sei como � exaustivo ser uma pessoa gorda e ter seu valor questionado o tempo todo, receber menos, ter sua vaga entregue para outras pessoas que n�o tem a mesma compet�ncia, mas possuem corpos que atendem ao padr�o.
O impacto da lista com as bab�s, as descri��es de "gordas" e as palavras em negrito dizendo N�O CONTRATEM tem um impacto brutal. Mas n�o � s� isso. A gordofobia tem esse impacto. O problema � que ningu�m chama pelo nome que tem. E, raramente algu�m diz: "n�o contrato pessoas gordas". Mas, ainda em 2023, pedem para que o curr�culo seja enviado com foto. S�rio?
De acordo com o Minist�rio do Trabalho e Emprego (MTE), � proibida a difama��o, assim como o conte�do vexat�rio das mensagens. O mesmo vale para o an�ncio da vagas discriminat�rias. No entanto, n�o h� o que regule a gordofobia, logo, num pa�s em que humoristas lutam pelo "direito de ofender", estamos mal respaldados com isso.
E mal na vida tamb�m. Se as pessoas se sentem confort�veis o suficientes para fazerem um grupo de WhatsApp dizendo para n�o contratar pessoas gordas, imagina o que n�o fazem escondido, no que diz respeito ao esculacho aos nossos corpos?
E voc�, que t� me lendo: contrataria uma pessoa gorda?