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Estado de Minas ARTIGO

Os corpos encantados das ruas: o encontro da dissid�ncia

Quem escreve o Brasil? Responder essa pergunta � saber o qu�o dispostos estamos �s rupturas


03/08/2023 11:00 - atualizado 03/08/2023 12:03
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Jéssica Balbino em lançamento do livro 'gasolina & fósforo'
(foto: Jo�o Paulo Ferreira/Divulga��o)

O encontro dos corpos dissidentes e das ruas � explosivo. Tanto que me fez ter o desejo de vir aqui escrever - rapidamente - numa tentativa v� de apreender um pouco do que se observa na experi�ncia de partilhar o espa�o p�blico e ocup�-lo, como se, de fato, ele fosse seu. Nas encruzilhadas que se apresentam, aqui estamos n�s, ocupando. 

Ando sumida e para voc� leitor que ainda n�o sabe ou est� chegando agora, al�m de escrever esta coluna, trabalho tamb�m com eventos e, nos �ltimos tempos, foram v�rios deles. Tantos sobre a experi�ncia dos corpos - e de corpos como o meu - ocupando o espa�o - ou espa�os, que resolvi falar sobre isso aqui. 

Quantas vezes voc� est� nas ruas, em locais p�blicos e se depara com uma ocupa��o? Em quantas encruzilhadas voc� para? Em quais voc� ouve? Como voc� percebe a ocupa��o? Do que voc� se ocupa? Quais encontros te atravessam?

Venho falar sobre isso porque me pego atravessada por v�rios deles! E nessas idas e vindas, pensando em quais novas possibilidades se abrem e quais s�o as configura��es de mundo a partir delas? 

Podemos, com nossos corpos dissidentes, existir nestes espa�os que se cruzam e se abrem agora? 

A pra�a para ser ocupada - e escrita 

Entre os eventos que me vi sumida - envolvida, � verdade - est� a Mostra Integrada de Artes (MIA) que ocorreu numa vers�o pocket durante o Festival de Inverno de Po�os de Caldas (MG) onde pude lan�ar meu livro "gasolina & f�sforo", ter uma exposi��o de frases, ver uma exposi��o de fotos, proje��es em pr�dios tombados e antigos da cidade, ter Djs tocando e corpos m�ltiplos dan�ando e ocupando o espa�o com cadeiras de praia, coolers, suas garrafas de vinho, sua pr�pria cerveja, seus pr�prios corpos � festa que acontecia: pessoas reais, vivendo a realidade, sem que, por tr�s, houvesse puramente um objetivo econ�mico, mas, sobretudo, o sonho. 
 
Foi ali, numa sexta-feira � noite, na Pra�a do Xadrez, que consegui vislumbrar o amanh�. E ele � feito de gente. Gente que deseja. Gente que sonha. Gente que vai para as ruas sem medo de ser o que se �: gente. Gente diversa, gente plural, gente de diferentes partes. Gente ocupando a rua. Gente ocupando os lugares p�blicos. Gente escancarando que na rua n�o h� curadoria. A arte � para todos, todas, todes. Sim, todes. Com essa flex�o de g�nero que incomoda tanto alguns.
 

Quem escreve o Brasil

Outro evento que mexeu comigo - e no qual tamb�m lancei o "gasolina & f�sforo" - � a Ocupa OIA, que aconteceu entre os dias 10 e 29 de julho em S�o Paulo, em diferentes espa�os p�blicos, livrarias, bibliotecas e bares com encontros de autores para responder, na pr�tica, quem escreve o Brasil. 
 
E ele tem sido escrito, tecido, recitado em muitas vozes. Nas cr�nicas escritas nas redes sociais da Maya Falks sobre os dias posteriores em que esteve em S�o Paulo para lan�ar o "todo mundo gosta de sexo - eu nunca fui todo mundo", nos suspiros cortados pelo real da produtora e poeta Brisa de Souza, autora do "de tanto me deixar levar fiquei � deriva", na voz do poeta e editor Thiago Medeiros com o "dias depois sa�mos do lepros�rio, no premiado D�rcio Bra�na com o "eu talvez desejasse matar poetas", na autofic��o de M�rio Rodrigues com "O motorista de M�cidi", na s�tira de "Perla Stuart, a ex-mulher", escrita por Dionisio Neto, aos contos de "Retalhos Vulcabr�s" de S�rgio Anauate. Todas as antologias que dizem imensos brasis que escancaram o que tento - talvez de forma falha - dizer aqui: que nossos corpos ocupem. Ocupem. Ocupem. 
 
E nesta ocupa, passamos por Patricia Jimin dizendo de sua religi�o afro de agora, dizendo de sua religi�o neopentecostal de outrora. Com seu corpo gordo, preto, de mulher sapat�o. Escritora. Ocupando. 
 
Tom Grito, dizendo poemas, n�o binariedade, ocupando. Por que, pra mim, ocupar � verbo e sim, funciona se estiver no ger�ndio. Se estiver nos encontros. Se estiver nos abra�os. 
 
Oficina de Raimundo Carrero
(foto: Bella Pelizzari/Divulga��o)
 
 
J� Freitas empurrando a cadeira de rodas de Raimundo Carrero por S�o Paulo para almo�ar. 
 
Se estiver ocupando as ruas, os cantos, os lugares, as bocas, os microfones, as estantes, as livrarias, o topo dos mais vendidos. Que ocupemos o mundo, que nos � retirado for�adamente. 
 
Falando sobre corpo e ocupa��o, � inevit�vel n�o pensar nela: a acessibilidade. Nestes dias de ocupa��o por S�o Paulo, convivendo com Raimundo Carrero, escritor brilhante, precursor das oficinas liter�rias no pa�s e o �nico escritor do movimento armorial ainda vivo, que, ap�s um AVC, faz uso de uma cadeira de rodas para se locomover por dist�ncias maiores e, sendo eu, uma pessoa gorda - e falo bastante sobre a acessibilidade dos corpos gordos por aqui, fiquei mais atenta a estas quest�es e percebi como a cidade �, de fato, bastante hostil com quem n�o cabe nela. 

E, sobretudo, com quem n�o consegue, feito eu, se espremer pra caber. Ent�o, temos no palco um homem que fala com o corpo. Que conta hist�rias de vida toda � m�xima puls�o enquanto se delicia com uma plateia toda ali para v�-lo. Raimundo Carrero fala da sedu��o do leitor. De como fisgar quem dobra a esquina e faz�-lo ter desejo de permanecer ali, no texto. E conta causos. E casos. Se deixa conhecer. Se permite cativar. Se expande para al�m do corpo que ali est�. E, ali, pode experimentar ser tudo que quiser ser. Inclusive, pode ocupar. 

Mas basta. Fora do palco s�o elevadores, escadas, degraus. A dificuldade de encontrar um banheiro. Um restaurante pr�ximo. De empurrar a cadeira de rodas. Estamos na maior cidade do Brasil. Estamos com um autor que fala sobre o Brasil. Estamos com algu�m que escreve o Brasil. E aqui, celebro a ideia dos editores Carlo Benevides e Thiago Medeiros em realizar uma oficina com Raimundo Carrero e n�o medirem esfor�os, junto � toda equipe, especialmente Luciana Escudeiro, para levar o autor � capital paulista. O olhar para autores cujas ideias est�o em ebuli��o, mas o corpo j� n�o responde mais como antigamente � urgente. N�o s� para autores, verdade seja dita. Para todas as pessoas. 
 
Mas que bonito ver este corpo sendo visto, cuidado e ocupando a cidade. Ecoando as vozes da multiplicidade e da ruptura com normas r�gidas que h� s�culos tentam aprisionar a diversidade humana em caixas estreitas e excludentes. As pessoas LGBTQIA+, os ind�genas, as pessoas com defici�ncia, os negros, as mulheres, todos se unem em prol de um prop�sito comum: ocupar o espa�o p�blico com dignidade e em igualdade.
 
� importante, contudo, reconhecer que essas ocupa��es tamb�m enfrentam desafios. A viol�ncia, especialmente a velada, ocorre. T� no olhar. Na censura que n�o � dita. Naquilo que n�o � verbalizado e chamamos loucura. No pacto silencioso que diz: pessoas que ouvem samba trazem cooler para a pra�a ou quem se interessa por escritores idosos?
 
Ainda sim, n�s, os dissidentes, ocupamos. A literatura, as ruas, as p�ginas. Seguimos escrevendo o Brasil � nossa maneira: dissonante, ruidosamente. 
 
Portanto, caros leitores, quando caminharem pelas ruas de suas cidades, estejam abertos a essa sinfonia de corpos dissidentes que ocupam os espa�os p�blicos com sua luta por igualdade e respeito. Celebremos essas manifesta��es, pois elas nos recordam que a verdadeira riqueza de uma na��o reside na harmonia de suas diferen�as. Que cada peda�o de rua seja palco! Que toda exist�ncia ocupe. 
 
Somos estes, os corpos encantados das ruas. Encruzilhemo-nos. 

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