(none) || (none)
Publicidade

Estado de Minas ARTIGO

Os passos de um �cone da dan�a

� ineg�vel a contribui��o desse artista para BH e para a difus�o da cultura afro-brasileira, africana e suas express�es art�sticas, especialmente na dan�a


02/05/2023 10:00 - atualizado 02/05/2023 11:49

Evandro Passos posa com os braços cruzados enquanto olha para cima, à direita. Ele é um homem negro e usa uma camiseta branca e um colar de contas
Evandro Passos (foto: Simone Felix/Reprodu��o)
 
Conversei com Evandro Passos, um artista generoso e querido em nosso estado, que nasceu em Diamantina e mudou-se para Belo Horizonte na d�cada de 70, onde conheceu a dan�a afro-brasileira por meio de Marlene Silva. Al�m de ser jornalista, ele tamb�m � mestre pela Universidade Estadual de S�o Paulo - UNESP e, atualmente, est� cursando o doutorado na Universidade Federal da Bahia - UFBA. Evandro � o criador da Associa��o S�cio Cultural Bataka e da CIA Evandro Passos, importantes projetos que promovem a cultura afro-brasileira e africana. Durante nossa conversa, tive a oportunidade de falar tamb�m com Marcos Ant�nio Cardoso, fil�sofo e mestre em Hist�ria Social, doutorando em Ci�ncia da Informa��o pela UFMG, al�m de ser professor de hist�ria da �frica e pesquisador das culturas negras no Brasil. Tamb�m conversei com J�ssica Knowles, que foi aluna de dan�a afro de Evandro Passos e atualmente � professora e est� cursando mestrado em Dan�a na UFBA.
 
A biografia de Evandro Passos � um testemunho vivo da import�ncia da presen�a negra na arte e na cultura brasileira. Com uma carreira de 40 anos dedicados � dan�a afro-brasileira e africana, Evandro tem sido uma voz fundamental na promo��o da rica tradi��o cultural afro-brasileira e africana e na defesa da diversidade e inclus�o cultural em nossa sociedade. Atrav�s de sua arte, ele mostra a import�ncia dos pa�ses da di�spora na forma��o da cultura brasileira e do mundo.
 
Confira a seguir nossa prosa:
 
Patr�cia: O que te despertou para a dan�a?
 
Evandro: O que mais me despertou para a dan�a foi a liberdade para expressar atrav�s do corpo. Eu via as manifesta��es tradicionais culturais em Diamantina e ficava fascinado. Pensava: "Quero fazer isto tamb�m". Era uma alegria contagiante e isso me despertou.
 
Patr�cia: Fale sobre sua inf�ncia e posteriormente sobre sua juventude.
 
Evandro: No final dos anos 1970, me mudei da cidade de Diamantina (MG) para Belo Horizonte, capital do estado. Meu pai, funcion�rio dos Correios e Tel�grafos, foi transferido, o que motivou a vinda de toda a fam�lia, composta de 11 irm�os, pai e m�e. Na capital mineira, in�meros desafios a fam�lia iria vivenciar, distante daquela vida tranquila, hospitaleira que t�nhamos em Diamantina.

Dos 11 irm�os, eu sempre acho que fui o que mais sentiu a mudan�a de cidade, e explico. Sou o s�timo filho, portanto, abaixo de mim eram todos crian�as e os outros todos mais velhos, adultos mesmo. No momento da mudan�a, me encontrava na pr�-adolesc�ncia, um momento �mpar da vida, quando v�rias descobertas acontecem. Sempre acho que os irm�os e irm�s crian�as se adaptaram r�pido, assim como os mais velhos. Eu, no entanto, sofria muito, longe dos meus melhores amigos e amigas de inf�ncia e que, assim como eu, naquele per�odo estavam na pr�-adolesc�ncia. Enfim, n�o foi f�cil, mas sabia que n�o tinha volta, teria que me adaptar em Belo Horizonte de qualquer forma. Isto fez com que eu criasse v�rios subterf�gios, na tentativa de suprir a falta dos amigos e das amigas da querida Diamantina, cidade que amo tanto.

Com a mudan�a, a situa��o econ�mica do meu pai se complicou na capital, pois tudo era muito mais caro e ele n�o dispunha da tradicional “caderneta de anota��o”, nos armaz�ns, como em Diamantina. Portanto, divers�es, passeios, ter�amos que optar por aqueles que fossem gratuitos e, por recomenda��o dos meus pais, locais que fossem seguros. Afinal, cidade grande, muitas coisas acontecem, refor�avam eles aos onze filhos, diariamente.

Minha divers�o foi passear frequentando as portas dos teatros em Belo Horizonte. Teatros Francisco Nunes, Pal�cio das Artes e TV Alterosa, nos dias e hor�rios dos espet�culos. Observar aquela gente chegando para os espet�culos me enchia de emo��o, felicidade e excita��o. Eu ficava sempre �s espreitas, sem ser notado, achava eu. Ficava a imaginar o que seria um palco e um espet�culo, pois apenas ouvia falar. Minha imagina��o fervilhava, era um misto de curiosidade e vontade de adentrar aqueles espa�os. No entanto, eu j� observava que naqueles espa�os n�o se via pessoas negras como eu entrando para assistir aos espet�culos. Estavam sempre na porta olhando os carros, ou eram porteiros, ou vendedores e vendedoras de pipocas nas portas e imedia��es dos teatros.

Certo dia, estava eu na porta do Teatro Francisco Nunes quando um senhor negro se aproximou de mim e perguntou, “o que voc� est� fazendo aqui, Dona Concei��o e o Sr. Jos� sabem que voc� saiu de casa?”. O susto que levei foi tamanho que nem percebi de imediato que ele havia dito o nome da minha m�e e do meu pai. Por�m, imediatamente me desfiz do susto e percebi ser um vizinho, o qual j� estava �ntimo de minha fam�lia em Belo Horizonte. Ele era eletricista e havia feito um trabalho na nova resid�ncia e morava perto da minha casa.

Respondi afirmativamente, que meus pais sabiam, sim, onde eu estava. Foi quando ele perguntou:“Mas voc� n�o vai entrar para ver o show?”. Respondi que n�o, pois n�o tinha condi��es e que estava apenas admirando o teatro e observando as pessoas entrarem. Continuou ele: “Mas voc� quer entrar?”. Balancei a cabe�a afirmativamente. O senhor, ent�o, pediu que eu o acompanhasse. Quando observei, est�vamos no fundo do teatro. Ele abriu uma porta e disse que eu podia entrar e disse “eu sou o eletricista respons�vel deste teatro”.

Nunca estive no c�u, mas para mim foi como se aquele senhor tivesse aberto as portas do para�so. Pelo local que entrei, eu j� podia ver o rosto de todas aquelas pessoas que vi entrando para o teatro e as luzes coloridas pareciam que me saudavam. Foi um encantamento e uma emo��o sem explica��o, que pensei que fosse desmaiar naquele momento. O cora��o acelerou tremendamente. No centro do palco, estava a cantora Gal Costa, realizando o espet�culo “Caras e Bocas”. Este foi meu batizado em um teatro na capital mineira e na vida. Ao final, procurei o senhor que se chamava Pedro. Quanta coincid�ncia com aquele que, no jarg�o popular, tem as chaves do c�u, S�o Pedro. Agradeci quase de joelho. Ele esbo�ou um sorriso e falou, “toda vez que voc� quiser vir assistir algum espet�culo � s� me avisar l� no bairro, podemos at� descer juntos”. O que n�o hesitei em fazer outras vezes. Mesmo depois desta ida ao c�u, meus passeios aos outros teatros n�o se encerraram. Pelo contr�rio, aumentaram ainda mais. 

Certa vez, fui para mais um passeio, desta vez na porta do Pal�cio das Artes, o maior da cidade. Imponente, elegante, mas, como disse, frequentado apenas por pessoas brancas. Neste, era quase imposs�vel ver um frequentador negro. Nem os porteiros e nem bilheteiros eram negros, at� os funcion�rios eram brancos. Pois bem, estava eu l� quando deparei com um rapaz, ruivo, de cabelos longos, bem ao meu lado. Ficamos ombros a ombro e ele perguntou: “Voc� gosta de arte, n�o � mesmo?”. Balancei a cabe�a afirmativamente e ele continuou, “eu sei, j� te vi aqui mais de cinco vezes, fico sempre a te observar de longe”. E eu, que sempre achava que ningu�m me via, fiquei surpreso e com um certo medo. Achei logo que seria repreendido. 

Ele, ent�o, olhou nos meus olhos e disse, “quero lhe fazer um convite, para voc� fazer um teste em um grupo de dan�a. Estamos precisando de homens e principalmente de homens negros como voc�. Aqui neste papelzinho que vou lhe dar est� o endere�o, com o dia e hor�rio do teste ok?”. Virou as costas e saiu sem olhar para tr�s. Confesso que fiquei intrigado com aquele rapaz, medo mesmo. Pois me contavam coisas tenebrosas que aconteciam nas grandes cidades com pessoas desconhecidas. Por�m, foi um medo misturado com emo��o e curiosidade.

Ao chegar em casa, minha irm� mais velha, a �nica que j� estava trabalhando fora de casa, me chamou e disse, “Evandro, voc� que gosta de arte, veja bem, recortei no jornal este an�ncio de um teste para um grupo de dan�a”. Vindo de minha irm�, me senti seguro e me preparei para ir at� o endere�o que constava no an�ncio. Ao chegar, deparei com o mesmo rapaz que havia me dado o papelzinho na porta do Pal�cio das artes. Assim que me avistou, ele disse bem alto, “que bom que voc� veio”. Mal sabia ele que estava ali pela minha irm�. At� porque o papelzinho que havia me dado joguei fora na primeira esquina, mesmo com muita curiosidade.

Foi este rapaz do papelzinho que aplicou o teste. Ao v�-lo dan�ar, para que repet�ssemos os passos, reafirmava para mim o desejo de ser bailarino, exatamente como ele. O desejo de ser artista que eu j� manifestava para a fam�lia se concretizava naquele teste de dan�a. Durante o teste, veio � minha imagina��o eu dan�ando no centro daquele palco, onde vi a Gal Costa cantar e as luzes coloridas se intercalando.

O resultado do teste saiu no mesmo dia, eu fui aprovado e muito elogiado por este bailarino e por outros professores e professoras presente na avalia��o. Disseram que as pessoas aprovadas j� deveriam come�ar a frequentar as aulas no dia seguinte. Assim foi meu ingresso em uma primeira aula de dan�a profissional em Belo Horizonte, no Grupo Folcl�rico Aruanda. A inser��o no mundo art�stico foi marcada pela emo��o, persist�ncia e muita vontade em n�o parar nunca mais. Aquele bailarino professor, Geraldo Vidigal, se tornou meu grande amigo e uma das minhas refer�ncias no mundo art�stico. O referencio em todos meus trabalhos art�sticos, pois lhe agrade�o imensamente pela acolhida e conselhos que foram constantes, para que eu n�o desistisse nunca da arte, mesmo naqueles momentos mais tenebrosos que certamente iriam surgir no caminho.

Patr�cia: Como voc� se sente ao saber que v�rias pessoas que passaram pela sua forma��o est�o atualmente envolvidas de alguma forma com a arte, quest�es sociais e engajadas em causas por um mundo mais justo?
 
Evandro: Ao ver v�rios multiplicadores e multiplicadoras que passaram pelo Bataka dando continuidade ao que aprenderam l�, fico extremamente feliz e realizado, sinal que minhas implementa��es deram certo na forma��o destas pessoas. � gratificante, 40 anos depois, voc� ver pessoas aplicando o que aprenderam no Bataka. Tenho a dan�a como mote, por�m v�rias implementa��es s�o repassadas. A coer�ncia do meu trabalho conseguiu transformar essas vidas. Mesmo as pessoas que n�o est�o trabalhando diretamente com a dan�a, de uma forma ou de outras, aplicam o aprendizado em suas profiss�es e vida pessoal. 
 
Patr�cia: Este ano, completando 40 anos de carreira, o que podemos esperar do Evandro Passos, que continua a dar passos generosos por onde passa?
 
Evandro: Sim, este ano completo 40 anos de carreira, e o que podem esperar de mim � que quero aprender, aprender ainda mais e repassar, repassar todo o aprendizado enquanto eu for vivo. Acho que tenho uma miss�o e quero cumpri-la da melhor forma, ensinando, educando, formando pessoas para um mundo melhor, mais justo, mais social. Hoje, tenho 63 anos, estou cursando o doutorado em Dan�a na UFBA e j� estou com um p� no P�s-Doutorado. Acho que aprendizado � para vida toda. Gosto disto, aprender, ir para pr�tica. Estou com um espet�culo, mon�logo “Isidoro, Um Negro de Quilate” que retrata bem tudo que acredito. O espet�culo narra a trajet�ria de um homem preto, incans�vel por justi�a e por um mundo melhor para os teus iguais. � isto que fa�o para que meus iguais conquistem o mundo. Aproveito para convidar a todos para assistirem. Estar� dentro da Mostra Benjamin de Oliveira na MINULUS, na Rua Ituiutaba 345, com entrada gratuita no dia 06 de maio. 

Perguntei ao convidado Marcos Cardoso:

Patr�cia: Evandro Passos � um artista que tem se dedicado h� 40 anos a contribuir para a compreens�o da identidade e no��o ancestral da cultura de matrizes africanas, buscando, com isso, promover a emancipa��o dos corpos negros. Voc�, que acompanha a carreira deste mestre, o que voc� me diz sobre isso?
 
Marcos Cardoso: Evandro Passos � um dos raros artistas negros que, como um Mestre da Dan�a afro brasileira, desenvolve uma pretagogia na sua capacidade de articular a transmiss�o de saberes sobre os sentidos da corporalidade Negra, do corpo Negro com a hist�ria desse mesmo corpo no territ�rio como resist�ncia pol�tica e Cultural. Neste sentido, Evandro Passos articula o seu trabalho com as dan�as negras, com o movimento social negro. E isso � raro no campo das artes negras que, ao coreografar os corpos negros para a dan�a, gera processos de emancipa��o e de fortalecimento das nossas identidades, de liberdade e de empoderamento pol�tico.
 
J� para a J�ssica Knowles, que foi aluna de dan�a de Evandro, perguntei: 

Patricia: Voc� foi uma das alunas do Evandro, de que forma a pr�tica da dan�a afro impactou na percep��o do seu corpo, na sua identidade cultural e na correla��o entre a ancestralidade e comunidade? 
 
J�ssica Knowles: A dan�a Afro, atrav�s dos movimentos, musicalidade, batida dos tambores, norteou as trilhas de meus caminhos me conectando � minha ancestralidade, � minha identidade afrodiasp�rica, nas quais pude enxergar o corpo que dan�a, n�o somente como corpo dan�ante, mas tamb�m como um corpo pol�tico, corpo que fala atrav�s dos movimentos. Conheci a dan�a h� 12 anos e, desde ent�o, ela se tornou parte da minha vida, me abriu muitas portas e, a partir dela, pratico a��es de empoderamento c�vico e de impacto social e cultural. Eu, como mulher preta perif�rica, s� tenho a agradecer � Dan�a Afro e aos Mestres por abrir os caminhos que me trouxeram at� aqui.
 
Por fim, � importante destacar que o legado de Evandro Passos vai muito al�m da sua pr�pria trajet�ria como artista, e se estende para aqueles que tiveram a oportunidade de aprender com ele e se inspirar em seu exemplo de dedica��o e comprometimento com a arte e a educa��o.
 
Ressalto ainda a import�ncia de lembrarmos que a preserva��o da cultura e da hist�ria de um povo passa pela salvaguarda do conhecimento de seus mestres. � por meio da transmiss�o desses saberes que podemos manter viva a tradi��o e valorizar a diversidade cultural de nosso pa�s. Evandro Passos � um desses mestres que merece ser reverenciado e seu legado deve ser preservado e transmitido para as pr�ximas gera��es. Viva a arte, viva os mestres!
 
At� breve.

*Para comentar, fa�a seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)