
Se voc� cometer um crime ou se for inocente de uma acusa��o infundada, n�o saber� se ter� direito a um habeas corpus no STF. E, tendo, qual a extens�o dele.
N�o porque a lei n�o considere as hip�teses — liberdade total ou vigiada, ficar calado ou se manifestar at� certo ponto —, mas porque depende de em que m�os ou cabe�a de qual ministro da Corte voc� vai cair.
Em menos de 36 horas, quatro de seus ministros deram interpreta��es diferentes sobre a quebra de sigilo de membros do governo pela CPI da Pandemia.
N�o constitui novidade. H� uma cr�nica de exemplos acachapantes em que Suas Excel�ncias deram decis�es completamente opostas.
Emblem�ticas, pela contradi��o ostensiva, foram as que julgaram em 2016 os deputados Jair Bolsonaro e Jandira Feghali por ofensas, respectivamente, � deputada Maria do Ros�rio e ao senador A�cio Neves.
Marco Aur�lio de Mello condenou o primeiro e Celso inocentou a segunda, apesar de ambos terem as mesmas prerrogativas parlamentares de opini�o.
Quando n�o est�o divergindo afrontosamente sobre o mesmo tema, est�o reinterpretando a lei e descobrindo novas abordagens que permitam colocar algum r�u importante dentro ou fora de determinadas prerrogativas.
A deputada pode ou n�o ser considerada parlamentar para responder por crimes em foro especial antes ou depois do mandato.
O senador pode ou n�o ter prerrogativa de foro e de circunscri��o, dependendo da ocasi�o.
R�us diferentes de um processo de corrup��o podem ser condenados num dia e soltos no outro, ou n�o, dependendo do ministro e da ocasi�o.
O transitado em julgado, em que n�o deveria caber mais recursos, pode n�o ser bem assim. Estavam todos os r�us relevantes do Mensal�o juramentadamente presos em 2013, quando Ricardo Lewandowski ressuscitou um tal "embargo infringente" esquecido h� d�cadas no limbo da hist�ria jur�dica.
'R�us diferentes de um processo de corrup��o podem ser condenados num dia e soltos no outro, ou n�o, dependendo do ministro e da ocasi�o'
Tempos depois, as interpreta��es que serviram para dar respaldo a tudo o que fez S�rgio Moro na opera��o Lava-Jato foram todas revogadas para anular suas senten�as, sem que qualquer prova nova legal tivesse aparecido nos processos. O voto decisivo da ministra C�rmen L�cia admitiu o contr�rio do que havia respaldado, com base nas mesmas provas.
A inst�ncia de Curitiba foi leg�tima para julgar determinados processos e r�us, mas deixou de o ser por duas vezes, quando surgiram novos interesses.
Embora a Opera��o Lava-Jato se formou para tratar casos de lavagem de dinheiro, a partir da pris�o de doleiros num posto de gasolina em Bras�lia, da� seu nome, os ministros restringiram sua compet�ncia a "casos espec�ficos da Petrobras" quando foi conveniente redistribuir processos de Moro para outros estados. E deixou de assim ser entendida quando a nova interpreta��o era mandar os processos com o nome de Lula na capa para Bras�lia.
� �bvio que os ministros v�m julgando muito por interesses de circunst�ncia do que por convic��es mais est�veis.
Quem acompanha de perto o notici�rio jur�dico/pol�tico e sabe mais a escala��o do STF do que a da sele��o, como diz a piada, � capaz de prever com alto grau de acerto o desfecho de uma a��o contra o governo, dependendo das m�os de quem vai cair.
Erra-se o m�nimo sobre a crucifica��o do governo se um processo cair nas m�os de Alexandre de Morais ou de Lu�s Roberto Barroso. E idem se o habeas corpus de um r�u da Lava-Jato der a sorte de cair nas de Gilmar Mendes ou Ricardo Lewandowski. Em ordem inversa, Nunes Marques tender� sempre a ter boa vontade com o governo e Edson Fachin com os procuradores da Lava-Jato.
A praga n�o s�o os interesses, que devem haver em qualquer lugar do mundo, n�o tanto talvez no n�vel dos nossos padr�es �ticos. Mas a engenharia de funcionamento da institui��o, que n�o lhes coloca freios nem consegue evitar que se sobreponham a esfor�os que favore�am uma interpreta��o isenta.
Os ministros e analistas de boa f� sobre as virtudes dessa Suprema Corte costumam evocar a desgra�a de Dilma Rousseff com s�mbolo de isen��o, na medida em que foi levada a cadafalso por uma maioria de ministros nomeados por ela.
At� onde acompanho, � tamb�m o seu melhor exemplo de exce��o. N�o raro, a cor pol�tica dos ministros, no matiz da dos presidentes da Rep�blica que os indicaram, transparece em muitos dos seus votos, como caspas resistentes em suas t�nicas honor�veis.
H� m�ltiplas e estruturais raz�es para essa esparrela, num pa�s de judicializa��o vociferante que tem mais leis que celulares ou escovas de dente. Estimam-se em 180 mil, fora normas administrativas que, s� em quest�o tribut�ria, o Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributa��o contou mais de 400 mil desde a proclama��o da Constitui��o, em 1988.
Por essas e outras que a degrada��o geral de nosso sistema pol�tico e legal pode ajudar a explicar, o STF virou uma delegacia de pol�cia. Ministros tomam decis�es monocr�ticas quase diariamente para dirimir bate boca de vizinhos, por cima da decis�o das turmas e do plen�rio para dar vaz�o a interesses ou vaidades pr�prias e alheias
Na maior parte do tempo, de pol�ticos que o usam como palanque para arguir quest�es de constitucionalidade que n�o est�o em quest�o, mas para a velha a��o pol�tica de enxovalhar advers�rios com um instrumento em tese isento.
Quando n�o avoca compet�ncias para saltar sobre inst�ncias e/ou prerrogativas que n�o lhe cabem ou n�o deveriam, como decidir se um campeonato de futebol deve come�ar ou sobre leis que ainda n�o existem. H� um relic�rio de casos em que os ministros legislaram para suprir brechas da omiss�o do Congresso.
Estagi�rios de direito s�o un�nimes na opini�o de que Suas Excel�ncias n�o deveriam fazer nem uma coisa e nem outra. Mas, como tudo nesse pa�s degradado tamb�m, n�o h� solu��o � vista.
Reduzir a supremacia do interesse individual sobre os esfor�os da interpreta��o isenta implicaria acabar com as decis�es individuais. Ou reduzi-las � urg�ncia em que um direito possa ser ferido antes de uma decis�o coletiva em plen�rio. Ainda que ela possa ser resolvida por um juiz de inst�ncia inferior.
Problema � que sobrecarregaria ainda mais um poder j� sufocado, com quase 100 mil processos analisados por ano, segundo dados de 2020, m�dia de 9 mil para cada uma das 11 cabe�as. Onde uma decis�o final, transitada em julgado, se n�o houver embargos infringentes ou outros, pode chegar ao final depois de mais de 20 anos. Tarda e falha.
Estudioso voraz da hist�ria americana, o jornalista e escritor Elio Gaspari escreveu que a Suprema Corte dos EUA analisa 1 mil ao todo durante o ano, dos quais escolhe cerca de 100 para julgar. O n�o decidido, decidido fica.
O n�mero � suficiente para se cumprir o papel prec�puo, original e fundamental de uma Suprema Corte: emitir ju�zos que iluminem e eliminem os conflitos de interpreta��o da Constitui��o, que sirva por vincula��o � decis�o dos ju�zes das inst�ncias inferiores.
Se estivesse nos Estados Unidos, a p�tria da democracia, voc� n�o teria sequer a possibilidade de sonhar com a hip�tese de escolher nas m�os de quem voc� gostaria de cair, se precisasse de um habeas corpus.
Teria em contrapartida a seguran�a de que as leis em seu favor n�o mudar�o conforme a interpreta��o a cada primavera. Poder� ser v�tima de um erro, mas numa margem bem mais estreita.
A quest�o se resolver� um dia, possivelmente quando j� estivermos mortos. N�o resolve, enquanto isso, a descren�a generalizada em que estamos metidos, que tais decis�es contradit�rias s� agravam.
Se a maior das nossas institui��es, em tese guardi� das bases do nosso direito, emite sinais contradit�rios, que seguran�a podemos ter de que n�o vamos ser presos ou expropriados por um guarda da esquina?
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