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Estado de Minas M�DIA E PODER

Por que n�o se pode falar em frango � kiev e que Zelensky tamb�m joga?

Clima de guerra que come�ou no n�s-contra-eles do petismo e do bolsonarismo contamina debate sobre guerra real e toma todo cr�tico como inimigo a destruir


08/03/2022 06:00 - atualizado 08/03/2022 07:35

Metralhadora nas mãos de um homem que protege o presidente ucraniano Zelensky durante pronunciamento
Volodymyr Zelensky durante pronunciamento � imprensa (foto: Sergei SUPINSKY / AFP)
Aclamado como romance de uma gera��o, mais especificamente a desencantada do p�s-guerra, "O Encontro Marcado" de Fernando Sabino flagra quatro jovens b�bados de literatura e decep��o com o mundo na Belo Horizonte dos anos 40 e 50.

Atravessam a madrugada entre del�rios filos�ficos e algumas molecagens para superar o t�dio da prov�ncia cheia de preconceitos e conven��es sociais: mijam de cima dos arcos do viaduto Santa Tereza,  tocam port�es de casas, enterram um esqueleto da faculdade na pra�a da Liberdade, roubam um chap�u de vitrine na Afonso Pena.

Apanhados em flagrante, tentam sufocar o delegado com suas arengas metaf�sicas sobre a relatividade da culpa at� que o homem da lei — com quem acabariam discutindo poesia parnasiana atrav�s das grades — coloca as coisas em termos pr�ticos, na frase que virou ad�gio popular:

— Qual, meninos. Voc�s s�o muito inteligentes, mas v�o presos assim mesmo.

Penso em Reinaldo Azevedo da Band, Guga Chacra de O Globo, Lu�s Nassif da GNN e todos os analistas que v�o fundo na an�lise dos condicionantes ocidentais que levaram ao ataque russo � Ucr�nia e que, � primeira vista, parecem justificar a molecagem de Vladimir Putin.

Qual, meninos. Voc�s s�o muito inteligentes, mas v�o presos assim mesmo.

� aquele momento em que a discuss�o chega a tal enrosco e impress�o de inutilidade, em que se esgotam as possibilidades e a paci�ncia de convencer o interlocutor, que � melhor evocar o �bvio ululante que o cidad�o ignorante diante da TV, delegado de seus c�digos morais, interpreta com mais precis�o.

Putin est� errado. Simples assim.

Se tem um pa�s que invade outro, soberano e pac�fico, e p�e popula��es em fuga, n�o � dif�cil dizer de que lado est� o mal. Quem � o agressor e quem � a v�tima. Quem � o bandido que optou por matar velhos, jovens e crian�as, a tentar todas as outras formas de entendimento. A preferir uma vit�ria de pirro a um pacto honroso.

Para esse cidad�o, com quem me identifico, nenhuma raz�o justifica a guerra. Desnecess�rio entender os antecedentes da Otan no patroc�nio de outras invas�es, se a Ucr�nia amea�ou por op��es que poderiam colocar em risco as fronteiras russas ou se ela pertencia ou deveria pertencer ao imp�rio sovi�tico.

Nos seus/meus par�metros simples, ningu�m deve temer a pol�cia ou radares de tr�nsito em excesso se n�o est� disposto a cometer crimes ou andar acima da velocidade. Se Putin fosse pacifista e n�o sonhasse em atacar soberanias e o direito de vizinhos optarem por seu meio de vida, n�o precisaria se preocupar com a quantidade de m�sseis por perto.

Se minha opini�o importa, sou ocidentalista, branco, crist�o, heterossexual.  Acho que todo progresso humano adv�m da liberdade para criar, duvidar e competir do liberalismo. N�o acho que a Otan tenha perdido o sentido com o fim da URSS, como se diz, e deve existir enquanto houver ditadores como Vladimir Putin sem satisfa��es a dar a suas popula��es.

Mas, por�m, contudo, entretanto, todavia e todas as adversativas atualmente mal vistas no debate p�blico, � bom saber das coisas. Abrir a mente sem preconceito para todo tipo de conhecimento que possa ajudar a compreender o imbroglio, at� mesmo para entender por que a ra�a humana � capaz de tanta barbaridade.

Fa�o a compara��o com "O Encontro Marcado", o testamento id�lico da �ltima gera��o que quis salvar o mundo pela literatura, menos como cr�tica do que como constata��o desse nosso tempo perverso, em que todos parecem estar em guerra. Mesmo sob o risco de defender aqui pessoas e opini�es das quais discordo.

Defendo at� a morte o direito de Azevedo, Chacra, Nassif e seus seguidores tentarem a sua explica��o para tanta estupidez. Assim como defendo o direito de o humorista Greg�rio Duvivier — um lulista avesso a minhas convic��es — escrever sobre frango � Kiev e marchinhas de carnaval sobre guerra, como fez outro dia na Folha de S. Paulo e foi patrulhado por um jornalista importante do Estad�o.

(Me lembrou a marchinha de Chico Buarque: "se a guerra for declarada / em pleno domingo de carnaval / se aliste, meu camarada / a gente vai salvar o nosso carnaval"…)

Vivemos um clima de guerra pavoroso, generalizado, de desqualificar o antagonista/analista a priori, moral ou ideologicamente, como se tivesse cometendo crime de diverg�ncia. Na suposi��o de que a opini�o contr�ria sempre camufla sub interesses e quest�es de car�ter. E, isto, entre gente inteligente.

Se Reinaldo Azevedo questiona algumas ordens de fato suicidas do presidente da Ucr�nia, Volodymyr Zelensky, de colocar civis e presos como bucha de canh�o, ele � acusado de fazer o jogo de Putin. Diogo Mainardi escreveu na Cruso� um artigo pesad�ssimo (sobre chap�us, inclusive) para dizer que falta car�ter debaixo do modelo panam� que Reinaldo enverga em alguns de seus v�deos.

No mesmo tipo de ila��o apressada, o veteran�ssimo e sempre equilibrado Carlos Alberto Sardenberg acusou Guga Chacra, ao vivo na GloboNews, de defender a invas�o assim que o comentarista lembrou os avan�os da Otan na Europa como uma das causas do ataque russo.

Nessa pressa, pouco importa que esses ditos "analistas realistas" j� tenham dito o suficiente em outras oportunidades sobre o descalabro do invasor. � preciso reagir r�pido e abat�-lo com quantas bombas morais de rotula��o forem necess�rias.

Rom�nticos como Mainardi atribuem a falta de car�ter questionar certas posturas da v�tima, no jogo de Putin, como Reinaldo faz sobre Zelensky. Torcedor descarado de suas prefer�ncias, como a candidatura de Sergio Moro, tem um conceito de isen��o que n�o � o de ouvir os dois lados do jornalismo tradicional. Defende uma honestidade radical que se confunde com engajamento e esfor�o de propaganda. 

Mas n�o � para isso que jornalistas foram feitos. E nem podem ser constrangidos por emitir suas opini�es, por mais abjetas. Que n�o s�o, no caso. Acho abomin�vel quem puxa e apoia o cancelamento de quem diverge.

Da mesma forma que Duvivier n�o tem que escrever sobre a pauta que pretendem os patrulhadores de fronteira e pode comer seu frango � kiev sem risco de colocar pr�dios e instala��es militares da Ucr�nia em risco. Como escreveu, ali�s:

— Sim, ao que parece meus coment�rios levianos sobre frango e marchinha permitiram que tanques russos avan�assem sobre Kiev. Pe�o perd�o � popula��o ucraniana pelo descaso. 

� aquele tipo de manique�smo de bolsonarista que carimba na testa do cr�tico do governo o r�tulo de petista. E vice-versa: se voc� tem cr�ticas a Lula, est� automaticamente carimbado como um fascista que faz o jogo de Bolsonaro. Qualquer reconhecimento � ideia de que Otan e Zelensky tamb�m jogam, num exerc�cio de racioc�nio realista, transforma o cr�tico num putminion.

O que produziu o fen�meno do excesso de adversativas, recurso de defesa nesse terreno minado de quem precisa falar sobre o outro lado sem parecer mau car�ter. Reinaldo tem se esgotado de antecipar seus racioc�nios de "mas, por�m, entretanto, contudo, todavia" depois de declara��es de pavor e �dio a Putin.

� bastante razo�vel supor que, sim, as pessoas t�m carimbos na testa, por mais que tentem disfar�ar suas prefer�ncias e se esfor�ar pela velha isen��o, que, como sabem os velhos jornalistas como eu e Sardenberg, � uma miragem. Na melhor das hip�teses, somos os "isent�es", pejorativo que, nesses tempos bicudos, na linha Mainardi, sugere certa falta de car�ter ou covardia.

Eu sou da linha isent�o, na falta de melhor nome para explicar minha rever�ncia a ouvir os dois lados, n�o para exp�-los burocraticamente como artimanha de parecer isento. Mas para entend�-los de fato e traduzir minha velha convic��o de que, em pol�tica, no geral, os dois lados jogam e dissimulam. Quase sempre, em doses iguais. 

Somos todos ref�ns de convic��es profundas que vieram se cristalizando inconscientemente sob d�cadas de propaganda cultural. Herdeiros de uma longa  tradi��o de cr�tica ao capitalismo, que op�e seus acusadores e defensores h� mais de 50 anos e acabou moldando duas linhas bem definidas e antag�nicas de pensamento a respeito dos limites do Estado sobre a vida  do cidad�o.

N�s brasileiros em particular vivemos a heran�a cruel de 20 anos de governos populistas que transformaram a divis�o da sociedade numa esp�cie de programa de governo. N�s contra eles. Ao um ponto terr�vel em que o advers�rio de ideias s� pode estar mal intencionado. � um inimigo a destruir. 

Como se chega a um ponto em que tudo � question�vel e ningu�m tem raz�o, n�o vejo outra forma de tentar resgatar um m�nimo de racionalidade sen�o deixar fluir todas as ideias, com respeito e generosidade para com quem est� falando. (Como isso � velho e como � tedioso ter que lembrar isso.)

Partindo do princ�pio, a priori, de que o interlocutor tem suas raz�es ou pode chegar a outra se confrontado com argumentos. Que seu carimbo na testa, mesmo insuport�vel, n�o pode ser um obst�culo a que possamos conviver e conversar. Quem sabe, trocar de carimbos entornando um chope. Ou beliscando um frango � kiev.

Ou ficamos todos burros e, por mais raz�es que tivermos, vamos presos assim mesmo.

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