
Provavelmente, o
Talib�
encontra-se nas manchetes de todos os jornais do mundo neste momento. Enquanto escrevia este artigo, seus membros assumiam o
controle do Afeganist�o
, ap�s a sa�da do presidente do pa�s, no �ltimo domingo (15/08).
O
Afeganist�o
� um pa�s composto por diversos grupos �tnicos. Estima-se que a popula��o afeg� seja de 38 milh�es de habitantes (2019). Os pashtuns s�o um desses grupos e a base dos integrantes do Talib�, que se declaram
mu�ulmanos sunitas
.
Os
pashtuns
se veem como verdadeiros afeg�os, superiores aos membros de outras grupos �tnicos. Os hazaras, segundo eles, est�o em �ltimo lugar, o que ajuda a compreender a persegui��o constante a essa etnia.
No Ocidente, o significado do termo Talib� n�o est� relacionado ao que existe no Afeganist�o; h� uma insurg�ncia nesse pa�s e, seus atores n�o t�m rela��o direta como veiculado pelos ocidentais: rela��o com o 11 de setembro.
Em terras afeg�s, Talib�s s�o insurgentes do Ex�rcito do Mul� Omar. Representam um
movimento pol�tico
que encontra sua origem na cultura pashtun, o grupo �tnico majorit�rio do pa�s, e, portanto, seus objetivos, meios e costumes derivam mais dessa cultura do que do
islamismo radical
.
O termo Talib� significa estudante, na l�ngua pashto, e refere-se aos alunos que aprendem teologia dentro das madrassas, as escolas religiosas que privilegiam o estudo e a memoriza��o do Alcor�o, controladas pelos mul�s. O termo foi associado ao Ex�rcito do Mul� Omar porque, originalmente, seu movimento foi iniciado com a ajuda dos alunos de sua madrassa. Por outro lado, os "talib�s" de hoje n�o s�o mais estudantes.
Quando o conceito foi difundido servia para explicar a natureza e o fim do
conflito
, que eclodiu em 2001. Natureza no sentido de que o Talib� era visto como uma das causas ativas dos ataques do 9-11, ao abrigar o l�der da Al-Qaeda (autora dos atentados em Nova York), Osama Bin Laden, e o fim, no sentido de que o conflito duraria at� que a amea�a do retorno pol�tico e militar do Talib� estivesse extinta.
J� sabemos que os EUA n�o atingiram, na totalidade, seu objetivo. O Vietn� deve pairar, sombriamente, sobre as cabe�as dos falc�es do Pent�gono.
Se o conceito do Talib� (como, exclusivamente, um grupo radical isl�mico) � mais um mito do que aquilo que realmente existe no pa�s, fica mais f�cil entender o
fracasso da miss�o norte-americana
no Afeganist�o. O Talib� n�o reflete a complexidade cultural afeg� e, sem a compreens�o deste contexto cultural, n�o se derruba o mito. Portanto, a natureza e o
fim da miss�o no Afeganist�o estavam fadados ao insucesso
, como a hist�ria comprovou.
Os pashtuns t�m caracter�sticas que os diferenciam de outros grupos �tnicos da regi�o. A caracter�stica tribal, al�m de ser uma estrutura de identidade, � uma entidade pol�tica que controla e administra um territ�rio. Desempenha uma s�rie de fun��es, como a seguran�a de um territ�rio. O poder tribal � superior ao do estado, o que explica os frequentes conflitos entre esses grupos com os governos afeg�os ou paquistaneses.
As tribos aplicam suas pr�prias leis, derivadas de suas tradi��es, que podem ou n�o estar relacionadas � religi�o ou � lei estadual. Isso explica por que as leis originadas em �reas urbanas t�m dificuldade de aplica��o em �reas rurais. � quase imposs�vel um estado moderno expressar sua soberania nessas regi�es.
Desde a cria��o do Afeganist�o, embora os governantes fossem quase todos pashtuns, Cabul nunca controlou as regi�es pashtuns.
Os pashtuns cumprem um c�digo normativo r�gido, o Pashtunwali. Esse c�digo n�o escrito, de tradi��o oral, � passado de pai para filho. A descend�ncia � patrilinear (linhagem paterna), possuir terras ou um rebanho � fundamental e devem ser defendidos pela for�a. Uma crian�a nascida de um pai sem terras ou rebanho pode perder seu status de "pashtun".
Os pashtuns definem sua honra pela �rvore geneal�gica e a import�ncia no status social que isso representar� dentro da tribo. Um ataque � sua honra afeta todos os seus descendentes, n�o apenas sua individualidade. Portanto, est�o sempre prontos para colocar suas vidas em risco para restaurar a honra, em nome de suas fam�lias.
Quem n�o defende a honra, a propriedade ou se deixa ser insultado ou tratado com esc�rnio n�o � digno de ser pashtun. A honra torna-se sin�nimo de reconhecimento p�blico ou de gl�ria, base do c�digo Pashtunwali, que rege os Pashtuns, mais que a pr�pria religi�o isl�mica.
Isso faz que conflitos sejam frequentes entre parentes e os diversos membros que comp�em as tribos. A luta faz parte da cultura desses grupos, mas tais conflitos s�o abandonados e todos se unem contra qualquer grupo estrangeiro que questione a soberania do grupo ou do pa�s.
O estrangeiro, mu�ulmano ou n�o, � frequentemente rotulado como Kafir (infiel). Uma vez que a amea�a do exterior passa, os conflitos internos podem continuar de onde pararam. Provavelmente, ocorrer� a perman�ncia de tens�es internas quando as tropas norte-americanas e aliadas se retirarem definitivamente do pa�s.
As investidas estrangeiras enfrentam um povo que tem como valores defendidos pelo C�digo Pashtunwali a honra, a bravura, a independ�ncia, a competi��o, a justi�a e a hospitalidade.
Um homem que demonstra bravura ganha respeito na comunidade. Um prov�rbio pashtun diz que � melhor ter uma morte honrada do que viver na desonra. Esta import�ncia da bravura foi e � ainda percept�vel no campo de batalha afeg�o; os insurgentes t�m pouco ou nenhum medo de morte.
A perda da liberdade e da independ�ncia n�o s�o aceit�veis a esse grupo. Mesmo que economicamente seja vantajoso, n�o se submetem a outro grupo. Eles lutam por sua liberdade � custa de seu conforto. Ter conhecimento desse valor � crucial para entender por que resistiram a todos os imp�rios que tentaram domin�-los. A independ�ncia afeg� � imprescind�vel para esse povo. Assim, a uni�o, em face da adversidade, dificulta a manuten��o e controle das terras afeg�s pelos forasteiros.
Para vencer uma disputa, usam de todos os meios. S�o competitivos e as derrotas s�o uma desonra. Para atingir seus objetivos, vendem papoulas, produzem �pio, sequestram, recebem propinas, matam... Os meios justificam os fins.
Os pashtuns consideram a lei da retalia��o uma express�o de justi�a. O c�digo ensina que um pashtun merece vingan�a por uma injusti�a na base do “olho por olho, dente por dente.“
A a��o judicial � r�pida e, muitas vezes, sangrenta. Por isso, todos que se beneficiaram, trabalharam ou colaboraram com os norte-americanos est�o temendo por suas vidas. H�, infelizmente, possibilidade de muitas mortes no futuro pr�ximo, com a tomada de poder. Os talib�s dizem que n�o, mas a hist�ria os desmente.
A hospitalidade, entretanto, � inerente a esse grupo. Os pashtuns protegem com a vida quem eles recebem (por isso a resist�ncia em entregar Bin Laden, em 2001). S�o capazes de endividar para oferecer ao h�spede luxos que n�o podem pagar por si pr�prios. A hospitalidade � uma virtude e uma demonstra��o de honra e poder.
Infelizmente, o
papel positivo das mulheres, no microuniverso pashtun, est� ausente
. Nesta realidade familiar, exclusivamente masculina, as mulheres n�o acrescentam nada de glorioso ao mito da fam�lia. A �nica poss�vel contribui��o das mulheres para a hist�ria familiar pode ser negativa, pois qualquer insulto a uma mulher � considerado contra todos.
Uma afronta em rela��o � sexualidade da mulher contamina a hist�ria familiar. Um boato extraconjugal mancha a honra da linhagem a que pertence e se perpetua na posteridade. Homens pashtuns n�o aceitam a desonra, que se torna um legado para as outras gera��es. Ser, historicamente, reconhecido como um corno e de ser incapaz de controlar suas esposas � algo inaceit�vel.
Os homens “protegem”, assim, a honra das mulheres construindo suas casas como fortalezas, impedindo-as de locomoverem-se sozinhas, proibindo o acesso � educa��o e impondo o uso da burca (essas roupas geralmente s�o costumes que remontam aos tempos pr�-isl�micos, n�o as associe de forma generalizada ao Isl�). S�o todas tentativas para evitar manchar a honra masculina por deslealdade feminina. A mulher infiel, geralmente, � sacrificada, para a fam�lia recuperar a honra.
As mulheres s�o mercadorias e, como tal, s�o comercializadas. S�o compradas de uma fam�lia para outra, ainda crian�as. A descend�ncia familiar feminina � dissolvida na hist�ria da fam�lia de seu marido, uma vez que o casamento foi realizado. A utilidade das mulheres est� restrita � manuten��o dom�stica e na reprodu��o.
A viol�ncia conjugal � comum e cria la�os entre as mulheres. As hist�rias infelizes criam uma intera��o entre elas. Historiadores mencionam que as meninas s�o, desde tenra idade, expostas a ataques f�sicos de seus entes queridos, para que aprendam a realidade de ser mulher. A fun��o social � agradar seus maridos ou dar � luz filhos homens.
Bem, culturalmente, essas s�o as caracter�sticas essenciais que moldam os insurgentes afeg�os que comp�em o Talib�. Quem quer que chegue agora ter� que negociar com esse grupo. N�o entender as facetas culturais do Afeganist�o e, principalmente, dos pashtuns, fez deste territ�rio montanhoso e des�rtico, multifacetado de povos muito peculiares, um cemit�rio de imp�rios.
Os EUA talvez considerassem que suas armas inteligentes eram mais poderosas que um povo e as usaram durante 20 anos. Enganaram-se. N�o foram suficientes para vencer a determina��o bruta afeg�-pashtun, que � capaz de tudo para defender a honra e a propriedade. Os norte-americanos saem humilhados. Agora v�m as incertezas e o medo. Mas s�o temas para outro momento.