
Devido �s minhas pesquisas sobre a escravid�o no antigo mundo mediterr�neo, especialmente na B�blia, costumo ouvir coment�rios como: “a escravid�o era totalmente diferente naquela �poca, certo?” “Bem, n�o pode ter sido t�o ruim.” “As pessoas escravizadas n�o conseguiam comprar sua liberdade?”
A maior parte das pessoas nos Estados Unidos e na Europa no s�culo 21 conhece mais sobre o com�rcio de pessoas escravizadas atrav�s do Atl�ntico, entre os s�culos 16 e 19. Elas vivem em sociedades profundamente moldadas por aquela escravid�o.
As pessoas podem tamb�m observar os efeitos da escravid�o moderna em toda parte, desde o encarceramento em massa at� a segrega��o de moradias e os h�bitos de voto.
J� os efeitos da escravid�o na Antiguidade s�o menos percept�veis hoje em dia. E a maior parte dos americanos tem apenas uma vaga ideia de como ela funcionava.
Algumas pessoas podem se lembrar das hist�rias b�blicas, como os irm�os ciumentos de Jos�, que o escravizaram e venderam. Outros podem referir-se a filmes como Spartacus (1960) ou ao mito de que pessoas escravizadas teriam constru�do as pir�mides do Egito.
Como esses tipos de escravid�o ocorreram muito tempo atr�s e n�o eram baseados no racismo moderno, algumas pessoas t�m a impress�o de que eles eram menos r�gidos, ou menos violentos.Esta impress�o abre espa�o para que figuras p�blicas atuais, como o te�logo crist�o e fil�sofo anal�tico William Lane Craig, defendam que, na verdade, a escravid�o na Antiguidade era ben�fica para as pessoas escravizadas.
Fatores modernos, como o capitalismo e a pseudoci�ncia racista, levaram ao longo e doloroso com�rcio transatl�ntico de pessoas escravizadas. O trabalho escravo inspirou, por exemplo, teorias econ�micas sobre o “livre mercado” e o com�rcio global.
Mas, para compreender a escravid�o daquela �poca – ou para combater a escravid�o atual –, tamb�m precisamos entender a longa hist�ria dos trabalhos for�ados.
Como estudioso da escravid�o na Antiguidade e no in�cio da hist�ria do Cristianismo, costumo encontrar tr�s mitos que dificultam a compreens�o da escravid�o antiga e do desenvolvimento dos sistemas de escravid�o ao longo do tempo.

Mito n° 1: Existe uma esp�cie de ‘escravid�o b�blica’
O conjunto de textos que forma a B�blia re�ne s�culos de diferentes escritores espalhados pelo Mediterr�neo e pela Mesopot�mia. Eles se encontravam em circunst�ncias frequentemente muito distintas, o que dificulta a generaliza��o de como funcionava a escravid�o nas sociedades “b�blicas”.
O ponto mais importante a considerar � que a B�blia hebraica (chamada pelos crist�os de “Velho Testamento”) surgiu pela primeira vez no antigo Oriente Pr�ximo, enquanto o Novo Testamento veio a p�blico no in�cio do Imp�rio Romano.
As formas de escravid�o e trabalhos for�ados no antigo Oriente Pr�ximo – em regi�es como o Egito, a S�ria e o Ir� – nem sempre significavam que as pessoas escravizadas eram consideradas mercadorias. Na verdade, algumas pessoas eram escravizadas temporariamente para pagamento de d�vidas.
Mas este n�o era o caso de todas as pessoas escravizadas no antigo Oriente Pr�ximo – e, certamente, nem no final da Rep�blica Romana e no in�cio do Imp�rio Romano. Na verdade, milh�es de pessoas foram traficadas em Roma para trabalhos for�ados em ambientes dom�sticos, urbanos e agr�colas.
Por isso, os diversos per�odos e culturas envolvidas na produ��o da literatura b�blica fazem com que n�o exista algo que possa ser considerado uma “escravid�o b�blica” �nica. E tamb�m n�o existe uma “perspectiva b�blica” �nica sobre a escravid�o.
O m�ximo que se pode dizer � que nenhum escritor ou texto b�blico condena explicitamente a institui��o da escravatura ou a manuten��o de pessoas escravizadas como se fossem mercadorias.
Na verdade, os questionamentos mais vigorosos sobre a escravid�o pelos crist�os come�aram a surgir no s�culo 4° d.C., com os textos de figuras hist�ricas como o te�logo S�o Greg�rio de Nissa, que viveu na Capad�cia (hoje, parte da Turquia).

Mito n° 2: A escravid�o na Antiguidade n�o era t�o cruel
Este mito, como o primeiro, costuma surgir da associa��o entre algumas pr�ticas de trabalhos for�ados do Egito e do Oriente Pr�ximo, como a escravid�o para o pagamento de d�vidas ou com a propriedade das pessoas escravizadas, praticada pelos romanos.Quando nos concentramos em outras formas de trabalhos for�ados em culturas espec�ficas da Antiguidade, fica f�cil subestimar a pr�tica disseminada da escravid�o e sua brutalidade.
Mas, em todo o antigo Mediterr�neo, existem evid�ncias de uma s�rie de pr�ticas horr�veis: marca��o, a�oitamento, desfigura��o corporal, abusos sexuais, tortura durante julgamentos legais, encarceramento, crucifica��o e muito mais.
Existe uma inscri��o latina na antiga cidade de Puteoli (perto de N�poles, na It�lia) que indica qual o pagamento que os escravizadores poderiam oferecer aos encarregados de a�oitar ou crucificar pessoas escravizadas.
E os pr�prios crist�os n�o se isentaram de participar desta crueldade.
Arque�logos encontraram, na It�lia e at� o norte da �frica, colares que os escravizadores colocavam nos seus escravizados, oferecendo uma recompensa pela sua devolu��o, em caso de fuga. E alguns desses colares inclu�am s�mbolos crist�os, como o Chi-Rho (%u2627), que combina as duas primeiras letras do nome de Jesus Cristo em grego.
Um dos colares encontrados chega a mencionar que a pessoa deve ser devolvida para o seu escravizador – no caso, F�lix, o arquidi�cono.
� dif�cil aplicar padr�es morais contempor�neos �s eras mais antigas, que dir� a sociedades de milhares de anos atr�s.
Mas, mesmo em um mundo antigo no qual a escravid�o sempre esteve presente, fica claro que nem todas as pessoas adotavam a ideologia da elite escravizadora. Existem registros de diversas rebeli�es de pessoas escravizadas na Gr�cia e na It�lia. A mais famosa delas envolveu o gladiador fugitivo Spartacus.
Mito n° 3: A escravid�o na Antiguidade n�o era discriminat�ria

A escravid�o no Mediterr�neo antigo n�o se baseava na etnia, nem na cor da pele, como ocorreu com o com�rcio de pessoas escravizadas atrav�s do Atl�ntico. Mas isso n�o significa que os sistemas de escravid�o da Antiguidade n�o fossem discriminat�rios.
Grande parte da hist�ria da escravid�o grega e romana envolve a escraviza��o de pessoas de outros grupos. Os atenienses escravizavam pessoas de fora de Atenas, os espartanos escravizavam pessoas que n�o eram espartanas e os romanos escravizavam pessoas de fora de Roma.
Muitas vezes capturadas ou vencidas em guerras, essas pessoas escravizadas eram transferidas � for�a para outra regi�o ou mantidas na sua terra ancestral e for�adas a fazer trabalhos agr�colas ou dom�sticos para os conquistadores.
As leis romanas exigiam que a natio – o local de origem – dos escravizados fosse anunciada durante os leil�es.
Os escravizadores do Mediterr�neo antigo priorizavam a “compra” de pessoas de diferentes partes do mundo, por conta dos estere�tipos sobre suas diversas caracter�sticas.
O acad�mico romano Varr�o, que escreveu sobre a gest�o da agricultura (Das Coisas do Campo, Ed. Unicamp, 2012), defendia que um escravizador n�o deveria ter muitas pessoas escravizadas da mesma na��o ou que falassem o mesmo idioma, para evitar que eles pudessem se organizar e criar rebeli�es.
A escravid�o da Antiguidade ainda categorizava alguns grupos de pessoas como “outros”, tratando-os como se fossem totalmente diferentes daqueles que os escravizaram.
O quadro da escravid�o conhecido pela maioria dos norte-americanos foi profundamente moldado pela sua �poca, particularmente pelo capitalismo e pelo racismo moderno. Mas outras formas de escravid�o praticadas ao longo da hist�ria humana n�o eram menos “reais” do que aquela.
Compreender essas formas e suas causas pode nos ajudar a enfrentar a escravid�o hoje em dia e no futuro, especialmente em uma �poca em que alguns pol�ticos voltam a defender que a escravid�o transatl�ntica, na verdade, teria beneficiado as pessoas escravizadas.
* Chance Bonar � pesquisador em p�s-doutorado do Centro de Ci�ncias Humanas da Universidade Tufts, nos Estados Unidos.
Este artigo foi publicado originalmente no site de not�cias acad�micas The Conversation e republicado sob licen�a Creative Commons. Leia aqui a vers�o original em ingl�s.