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Estado de Minas HIST�RIA

Por que � mito dizer que escravid�o na Antiguidade n�o foi ruim

Chance Bonar, estudioso da escravid�o na Antiguidade e no in�cio da hist�ria do Cristianismo, explica tr�s mitos que dificultam a compreens�o da escravid�o antiga.


04/09/2023 06:31 - atualizado 04/09/2023 07:35
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Gravura em relevo ilustra uma fila de prisioneiros no Templo do Sol de Abu Simbel, no Egito
Gravura em relevo ilustra uma fila de prisioneiros no Templo do Sol de Abu Simbel, no Egito (foto: Getty Images)

Devido �s minhas pesquisas sobre a escravid�o no antigo mundo mediterr�neo, especialmente na B�blia, costumo ouvir coment�rios como: “a escravid�o era totalmente diferente naquela �poca, certo?” “Bem, n�o pode ter sido t�o ruim.” “As pessoas escravizadas n�o conseguiam comprar sua liberdade?”

A maior parte das pessoas nos Estados Unidos e na Europa no s�culo 21 conhece mais sobre o com�rcio de pessoas escravizadas atrav�s do Atl�ntico, entre os s�culos 16 e 19. Elas vivem em sociedades profundamente moldadas por aquela escravid�o.

As pessoas podem tamb�m observar os efeitos da escravid�o moderna em toda parte, desde o encarceramento em massa at� a segrega��o de moradias e os h�bitos de voto.

J� os efeitos da escravid�o na Antiguidade s�o menos percept�veis hoje em dia. E a maior parte dos americanos tem apenas uma vaga ideia de como ela funcionava.

Algumas pessoas podem se lembrar das hist�rias b�blicas, como os irm�os ciumentos de Jos�, que o escravizaram e venderam. Outros podem referir-se a filmes como Spartacus (1960) ou ao mito de que pessoas escravizadas teriam constru�do as pir�mides do Egito.

Como esses tipos de escravid�o ocorreram muito tempo atr�s e n�o eram baseados no racismo moderno, algumas pessoas t�m a impress�o de que eles eram menos r�gidos, ou menos violentos.

Esta impress�o abre espa�o para que figuras p�blicas atuais, como o te�logo crist�o e fil�sofo anal�tico William Lane Craig, defendam que, na verdade, a escravid�o na Antiguidade era ben�fica para as pessoas escravizadas.

Fatores modernos, como o capitalismo e a pseudoci�ncia racista, levaram ao longo e doloroso com�rcio transatl�ntico de pessoas escravizadas. O trabalho escravo inspirou, por exemplo, teorias econ�micas sobre o “livre mercado” e o com�rcio global.

Mas, para compreender a escravid�o daquela �poca – ou para combater a escravid�o atual –, tamb�m precisamos entender a longa hist�ria dos trabalhos for�ados.

Como estudioso da escravid�o na Antiguidade e no in�cio da hist�ria do Cristianismo, costumo encontrar tr�s mitos que dificultam a compreens�o da escravid�o antiga e do desenvolvimento dos sistemas de escravid�o ao longo do tempo.

Relevo funerário romano da família Decii, de antigas pessoas escravizadas do século 2º d.C. Marido e esposa aparecem de mãos dadas com seu filho em pé entre eles, segurando um pombo. A inscrição os identifica como A. Decius Spinther, Decia Spendusa e A. Decius Felicio
Relevo funer�rio romano da fam�lia Decii, de antigas pessoas escravizadas do s�culo 2� d.C. Marido e esposa aparecem de m�os dadas com seu filho em p� entre eles, segurando um pombo. A inscri��o os identifica como A. Decius Spinther, Decia Spendusa e A. Decius Felicio (foto: Getty Images)

Mito n° 1: Existe uma esp�cie de ‘escravid�o b�blica’

O conjunto de textos que forma a B�blia re�ne s�culos de diferentes escritores espalhados pelo Mediterr�neo e pela Mesopot�mia. Eles se encontravam em circunst�ncias frequentemente muito distintas, o que dificulta a generaliza��o de como funcionava a escravid�o nas sociedades “b�blicas”.

O ponto mais importante a considerar � que a B�blia hebraica (chamada pelos crist�os de “Velho Testamento”) surgiu pela primeira vez no antigo Oriente Pr�ximo, enquanto o Novo Testamento veio a p�blico no in�cio do Imp�rio Romano.

As formas de escravid�o e trabalhos for�ados no antigo Oriente Pr�ximo – em regi�es como o Egito, a S�ria e o Ir� – nem sempre significavam que as pessoas escravizadas eram consideradas mercadorias. Na verdade, algumas pessoas eram escravizadas temporariamente para pagamento de d�vidas.

Mas este n�o era o caso de todas as pessoas escravizadas no antigo Oriente Pr�ximo – e, certamente, nem no final da Rep�blica Romana e no in�cio do Imp�rio Romano. Na verdade, milh�es de pessoas foram traficadas em Roma para trabalhos for�ados em ambientes dom�sticos, urbanos e agr�colas.

Por isso, os diversos per�odos e culturas envolvidas na produ��o da literatura b�blica fazem com que n�o exista algo que possa ser considerado uma “escravid�o b�blica” �nica. E tamb�m n�o existe uma “perspectiva b�blica” �nica sobre a escravid�o.

O m�ximo que se pode dizer � que nenhum escritor ou texto b�blico condena explicitamente a institui��o da escravatura ou a manuten��o de pessoas escravizadas como se fossem mercadorias.

Na verdade, os questionamentos mais vigorosos sobre a escravid�o pelos crist�os come�aram a surgir no s�culo 4° d.C., com os textos de figuras hist�ricas como o te�logo S�o Greg�rio de Nissa, que viveu na Capad�cia (hoje, parte da Turquia).


José é vendido pelos seus irmãos. Quadro de 1636-1641, da coleção do Museu Capitolino em Roma, na Itália
Jos� � vendido pelos seus irm�os. Quadro de 1636-1641, da cole��o do Museu Capitolino em Roma, na It�lia (foto: Fine Art Images/Heritage Images/Getty Images)

Mito n° 2: A escravid�o na Antiguidade n�o era t�o cruel

Este mito, como o primeiro, costuma surgir da associa��o entre algumas pr�ticas de trabalhos for�ados do Egito e do Oriente Pr�ximo, como a escravid�o para o pagamento de d�vidas ou com a propriedade das pessoas escravizadas, praticada pelos romanos.

Quando nos concentramos em outras formas de trabalhos for�ados em culturas espec�ficas da Antiguidade, fica f�cil subestimar a pr�tica disseminada da escravid�o e sua brutalidade.

Mas, em todo o antigo Mediterr�neo, existem evid�ncias de uma s�rie de pr�ticas horr�veis: marca��o, a�oitamento, desfigura��o corporal, abusos sexuais, tortura durante julgamentos legais, encarceramento, crucifica��o e muito mais.

Existe uma inscri��o latina na antiga cidade de Puteoli (perto de N�poles, na It�lia) que indica qual o pagamento que os escravizadores poderiam oferecer aos encarregados de a�oitar ou crucificar pessoas escravizadas.

E os pr�prios crist�os n�o se isentaram de participar desta crueldade.

Arque�logos encontraram, na It�lia e at� o norte da �frica, colares que os escravizadores colocavam nos seus escravizados, oferecendo uma recompensa pela sua devolu��o, em caso de fuga. E alguns desses colares inclu�am s�mbolos crist�os, como o Chi-Rho (%u2627), que combina as duas primeiras letras do nome de Jesus Cristo em grego.

Um dos colares encontrados chega a mencionar que a pessoa deve ser devolvida para o seu escravizador – no caso, F�lix, o arquidi�cono.

� dif�cil aplicar padr�es morais contempor�neos �s eras mais antigas, que dir� a sociedades de milhares de anos atr�s.

Mas, mesmo em um mundo antigo no qual a escravid�o sempre esteve presente, fica claro que nem todas as pessoas adotavam a ideologia da elite escravizadora. Existem registros de diversas rebeli�es de pessoas escravizadas na Gr�cia e na It�lia. A mais famosa delas envolveu o gladiador fugitivo Spartacus.

Mito n° 3: A escravid�o na Antiguidade n�o era discriminat�ria

Detalhe de relevo assírio mostra pessoas escravizadas trabalhando em uma pedreira (acervo do Museu Britânico)
Detalhe de relevo ass�rio mostra pessoas escravizadas trabalhando em uma pedreira (acervo do Museu Brit�nico) (foto: Getty Images)

A escravid�o no Mediterr�neo antigo n�o se baseava na etnia, nem na cor da pele, como ocorreu com o com�rcio de pessoas escravizadas atrav�s do Atl�ntico. Mas isso n�o significa que os sistemas de escravid�o da Antiguidade n�o fossem discriminat�rios.

Grande parte da hist�ria da escravid�o grega e romana envolve a escraviza��o de pessoas de outros grupos. Os atenienses escravizavam pessoas de fora de Atenas, os espartanos escravizavam pessoas que n�o eram espartanas e os romanos escravizavam pessoas de fora de Roma.

Muitas vezes capturadas ou vencidas em guerras, essas pessoas escravizadas eram transferidas � for�a para outra regi�o ou mantidas na sua terra ancestral e for�adas a fazer trabalhos agr�colas ou dom�sticos para os conquistadores.

As leis romanas exigiam que a natio – o local de origem – dos escravizados fosse anunciada durante os leil�es.

Os escravizadores do Mediterr�neo antigo priorizavam a “compra” de pessoas de diferentes partes do mundo, por conta dos estere�tipos sobre suas diversas caracter�sticas.

O acad�mico romano Varr�o, que escreveu sobre a gest�o da agricultura (Das Coisas do Campo, Ed. Unicamp, 2012), defendia que um escravizador n�o deveria ter muitas pessoas escravizadas da mesma na��o ou que falassem o mesmo idioma, para evitar que eles pudessem se organizar e criar rebeli�es.

A escravid�o da Antiguidade ainda categorizava alguns grupos de pessoas como “outros”, tratando-os como se fossem totalmente diferentes daqueles que os escravizaram.

O quadro da escravid�o conhecido pela maioria dos norte-americanos foi profundamente moldado pela sua �poca, particularmente pelo capitalismo e pelo racismo moderno. Mas outras formas de escravid�o praticadas ao longo da hist�ria humana n�o eram menos “reais” do que aquela.

Compreender essas formas e suas causas pode nos ajudar a enfrentar a escravid�o hoje em dia e no futuro, especialmente em uma �poca em que alguns pol�ticos voltam a defender que a escravid�o transatl�ntica, na verdade, teria beneficiado as pessoas escravizadas.

 

* Chance Bonar � pesquisador em p�s-doutorado do Centro de Ci�ncias Humanas da Universidade Tufts, nos Estados Unidos.

Este artigo foi publicado originalmente no site de not�cias acad�micas The Conversation e republicado sob licen�a Creative Commons. Leia aqui a vers�o original em ingl�s.


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