Restaurantes de Ouro Preto com mais de 50 anos reabrem com novos card�pios
Novos chefs de restaurantes tradicionais de Ouro Preto apresentam um olhar diferente para a cozinha mineira, ao mesmo tempo em que ajudam a preservar a hist�ria
O Casa do Ouvidor passou a servir entradas como o torresmo de rolo com gremolata e chutney de abacaxi (foto: Voal Fotografia/Divulga��o)
Ouro Preto – O som do saxofone atrai quem passa pela ladeira da Rua Direita. O m�sico est� na varanda de um casar�o branco. Ali funciona o Casa do Ouvidor, um dos restaurantes mais tradicionais da cidade, que passou por uma reformula��o completa e reabriu h� um m�s com nova cara e novos pratos. Esse � um dos exemplos de como a gastronomia de Ouro Preto, na Regi�o Central de Minas Gerais, vem se renovando. Por receber muitos turistas, a cidade tem a chance de mostrar para o mundo sabores e hist�rias atualizados da cozinha mineira.
De fam�lia ouro-pretana, Carolina Coelho assumiu o neg�cio depois que seu pai, Jos� Augusto da Silva, comprou o im�vel e quis seguir com a hist�ria do restaurante, aberto em outubro de 1972. Ela nunca tinha pisado no Casa do Ouvidor, mas sempre ouviu muitos casos. Foi l� o primeiro encontro dos seus pais e tamb�m onde sua av� encontrava as amigas.
“Todo dia algu�m chega contando hist�rias, inclusive os pr�prios gar�ons, e viver isso � muito legal. Uma senhora veio comemorar o anivers�rio de 70 anos e falou que faz isso h� 30 anos. Um casal de S�o Paulo entrou na cozinha e abra�ou as cozinheiras, falando, emocionado, que foi o melhor frango com quiabo que comeu na vida”, relata Carolina, que manteve a equipe antiga. Um dos gar�ons, Jos� Luciano Martins, est� desde o primeiro dia. J� Valdivino Viana, o Divino, tem “apenas” 33 anos de casa.
H� mais de 30 anos, Agnes Farkasvolgyi criou o lombinho de porco ao molho de laranja com espaguete, couve e farofa de torresmo (foto: Leonardo Homssi/Divulga��o)
O novo card�pio foi criado por Jonathan Soares, que se mudou de BH para Ouro Preto sem nunca ter visitado a cidade. O chef sente a responsabilidade de comandar uma cozinha que funciona h� quase 51 anos, algo in�dito no seu curr�culo, mas est� feliz e emocionado com o trabalho. “Um dia entrei no escrit�rio e achei um pr�mio de melhor restaurante de 1994, ano em que nasci. Eu nascia e eles j� eram o melhor restaurante da cidade. Hoje estou aqui continuando essa hist�ria”, conta.
Jonathan passou tr�s meses na cozinha antes do fechamento para a reforma. No in�cio, as cozinheiras estranharam, nunca tinham dividido as panelas com um homem, ainda mais t�o jovem, mas ele foi ganhando a confian�a para aprender receitas e implementar melhorias.
O desafio era modernizar o card�pio, preservando a tradi��o. “A ideia era manter os pratos mineiros tradicionais, mas de uma forma mais organizada, com padr�o. D� para melhorar aquilo que j� era muito bom.”
Na receita do frango com quiabo, saiu tempero industrializado e entrou caldo de frango. O chef ainda acrescentou uma espiga de milho cozido, como a sua av� fazia. “Sou de S�o Paulo, mas a minha av� � mineira, � a refer�ncia de comida mineira que tenho. Tentei resgatar o que ela fazia, buscando sabores que comia na minha inf�ncia”, diz. Por causa disso, ele acrescentou bacon e lingui�a no tropeiro, agora servido com copa lombo e lingui�a caipira, os mesmos acompanhamentos do tutu de feij�o.
O frango ao molho pardo fica mais saboroso com a presen�a do caldo de frango. Al�m disso, f�gado de galinha substitui a farinha de trigo para engrossar o molho � base de sangue.
Cozinha internacional
Para criar o restante do card�pio, Jonathan voltou aos anos 1980, d�cada em que o restaurante deixou a Rua do Ouvidor (da� o seu nome) para ocupar o casar�o na Rua Direita. N�o dava para ser muito moderno, at� para n�o espantar a clientela antiga, por isso ele buscou pratos cl�ssicos da cozinha internacional servidos nos restaurantes mais tradicionais do Brasil.
Inspirado na receita da av�, o chef Jonathan Soares inclui milho cozido no frango com quiabo (foto: Voal Fotografia/Divulga��o
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“Foi bem diferente trabalhar com pratos que nunca pensaria em colocar em um card�pio”, aponta o chef, que esbanja criatividade.
Sua vers�o do steak � Diana tem pur� de mandioquinha, molho velout� de cogumelos e ervilha torta salteada. J� o fil� � Osvaldo Aranha vira picanha � Osvaldo Aranha, num movimento para diversificar os cortes. Acompanham arroz, farofa, batata chips e muito alho frito.
Com o nome franc�s “la belle meunier”, o salm�o passado na farinha de trigo e grelhado fica com uma casquinha crocante e ganha sabor com molho de lim�o siciliano e alcaparras. A posta chega � mesa com arroz de am�ndoas e batatas ao murro. Ainda tem o ossobuco com vegetais e polenta cremosa.
Dois pratos s�o da fam�lia dos novos donos. A lasanha de presunto e mu�arela � do pai de Carolina, que ensinou a receita da massa e do molho de tomate � base de carne, mais especificamente, ma�� de peito. J� a bacalhoada homenageia a av�, dona Ia. O doce de leite em formato de cora��o que acompanha o cafezinho tamb�m vem de uma hist�ria familiar. Jos� Augusto vendia na cidade o doce que a av� dele fazia e que ganhou fama em Glaura, distrito de Ouro Preto.
A se��o de entradas, com petiscos que seguem o conceito de cozinha cl�ssica, � novidade. Torresmo de rolo e bamb� de couve s�o muito tradicionais na cidade e n�o poderiam faltar. Vale a pena experimentar o espetinho de quiabo com bacon e a carne de sol curada com mandioca.
O molho pardo do Chafariz passou a ser engrossado com fub� torrado (foto: Leonardo Homssi/Divulga��o)
Para n�o ficar s� na caipirinha, a mixologista Lysa Freitas desenvolveu drinques com sabores mineiros, entre eles “Goiabinha � mineira”, com cacha�a, goiabada, lim�o e queijo canastra curado.
Interessante o racioc�nio do chef para criar as sobremesas. Os elementos s�o os mesmos, mas a forma de servir mudou completamente. Doce de leite com queijo se transformou em cheesecake de doce de leite. Queijo com goiabada virou queijadinha com chantili de goiabada. O abacaxi agora � servido inteiro, caramelizado com a��car e assado, com sorvete de coco da casa.
O doce de amendoim feito pela cozinheira Leda est� no recheio da torta de chocolate, que tem caramelo de amendoim por cima.
H� um ano em Ouro Preto, Jonathan se apaixonou tanto pela cidade que j� se considera ouro-pretano e abra�ou o projeto de levar a sua cozinha para o mundo. “Quero que ela seja vista tamb�m como refer�ncia gastron�mica. Estou muito empolgado”, revela o chef, que tamb�m comanda o bar Jair Bo�mio e o Caf� das Flores. Os s�cios v�o abrir um restaurante italiano ainda este ano e t�m planos de montar pizzaria, padaria e confeitaria.
A nova dona do Casa do Ouvidor completa: “Ouro preto j� tem muito potencial em termos cultura e arquitetura e a gastronomia tamb�m que ser mostrada para o mundo. Que a nossa iniciativa seja um chamariz para que outras pessoas ajudem a transformar esse lado de Outro Preto”, aposta Carolina.
Menu criativo
H� um ano, o restaurante Chafariz, na charmosa Rua S�o Jos�, reabriu com novas donas e novo card�pio. Rosa e Eunice Tr�pia assumiram o neg�cio aberto pelo pai, Orlando, em 1958. O servi�o mudou de buf� self-service para a la carte, a cozinha ganhou equipamentos mais modernos, o hor�rio de funcionamento se estendeu para a noite, mas o ambiente continua intacto e aconchegante.
Em vez de doce de leite com queijo, cheesecake de doce de leite com pralin� de am�ndoas (foto: Voal Fotografia/Divulga��o)
Ali elas preservam a hist�ria de seus antecedentes, que vieram da It�lia. Objetos antigos comp�em a decora��o, como cabine de telefone, fotos de fam�lia e a estante de uma farm�cia do s�culo passado.
Quem assina o menu � a chef Agnes Farkasvolgyi. Para ela, era uma �tima oportunidade de se aproximar mais da cidade. “Tenho vontade de sair de BH daqui a alguns anos e o meu desejo � me mudar para Ouro Preto. A cidade sempre me agradou, me sinto bem l�”, revela.
Na porta do casar�o, l�-se “comida mineira tradicional criativa”, e � exatamente isso o que eles servem. A chef teve o cuidado de manter pratos que fazem parte da hist�ria do Chafariz, ao mesmo tempo em que prop�e inven��es que fogem do �bvio. “Quis criar um v�nculo com a hist�ria do lugar, com os pratos, com quem ia l� para comer, e pensei em receitas que combinam com a casa”, explica.
O frango ao molho pardo de l� sempre teve fama. Agnes entrou com a receita da sua av�, “que fazia o melhor molho pardo do mundo”. “Fa�o do mesmo jeito que ela. O segredo est� no caldo do frango, que fazemos e � maravilhoso. Tem tamb�m o truque de bater com fub� torrado, em vez de farinha de trigo, para engrossar e, claro, o cuidado de n�o deixar talhar.” Coxa e sobrecoxa s�o acompanhadas de couve rasgada, polenta frita e arroz branco.
Como � servido praticamente desde o in�cio, o picadinho ajuda a contar a hist�ria do restaurante. Agora, arroz, feij�o e farofa de ovo se juntam � conhecida batata palha do Chafariz e a banana-da-terra, inclu�da por Agnes. No fil� � parmegiana, a �nica diferen�a � a farinha panko, que deixa o empanado mais crocante. Entre os pratos antigos, a chef s� n�o mexeu no Orlando, com medalh�o de fil�-mignon, risoto de a�afr�o, molho de mela�o de cana e couve crocante, homenagem ao pai de Rosa e Eunice.
Lombinho cor-de-rosa
Agnes levou para o card�pio um prato seu dos anos 1990 que tem tudo a ver com o novo momento do Chafariz. “Quando abri o restaurante Bouquet Garni Nouveau, na Savassi, j� estava fazendo uma releitura da cozinha mineira, porque atend�amos muitos estrangeiros, e servia o lombinho de porco cor-de-rosa. Tinha que gastar l�bia para explicar que era poss�vel comer carne nesse ponto”, conta.
(foto: Leonardo Homssi/Divulga��o)
Naquela �poca, em conversa com o marido, ela teve a ideia de servir o lombinho com molho de laranja e espaguete envolvido por fios de couve. E ele sugeriu acrescentar o torresmo, mais um elemento mineiro. Desde ent�o, a farofa de torresmo finaliza o prato, que tem mais de 30 anos, mas ainda � uma paix�o da chef. Quem come tamb�m se apaixona.
A maior ousadia do card�pio, sem d�vida, � a moqueca de frango caipira. “A gente pensa em moqueca de mar, nas cidades praianas, acontece que o refogado dela, com cebola, piment�o e tomate, � muito pr�ximo a n�s. Isso faz parte da nossa cozinha”, aponta Agnes, que tamb�m buscou refer�ncias asi�ticas, nos curries tailandeses.
Segura de que tudo o que d� certo com camar�o funciona com frango, ela usa dend�, coentro e leite de coco na receita. Bom que a polenta cremosa, servida como acompanhamento, pode ter queijo, o que, pelas regras da cozinha, n�o daria se fosse moqueca de peixe.
Todas as entradas s�o novas, j� que, antes, o restaurante s� trabalhava com buf�. Entre elas, rolinhos de taioba com galinha caipira e vinagrete de cacha�a, crostini de p�o de queijo com cogumelos e tomates confitados e jil� empanado com lingui�a acebolada.
O card�pio volta a se descolar do tradicional com o creme brul�e de queijo canastra e as coxinhas pretas, que entram como assinatura da chef. Empanadas em p� de carv�o vegetal, elas t�m recheio de provolone e espinafre. Agnes pega leve nas extravag�ncias, porque sabe que o p�blico ainda � mais conservador, mas defende que Ouro Preto precisa de mais cozinhas autorais. Por isso, quando est� l�, costuma oferecer algum prato “fora da caixa”.
Apesar de n�o estar todo dia na cozinha, Agnes fica tranquila por ter duas “crias” na cozinha: o chef Heverton Martins e a subchef Fl�via da Silva (que � de Ouro Preto). Os dois trabalharam com ela em BH e hoje ajudam na cria��o do card�pio, como o pudim de copo com calda de laranja. “A minha ideia � que a equipe v� aos poucos se apropriando do lugar como deles”, diz a chef, que vai uma vez por m�s para ajustar processos e testar novos pratos.
Bamb� de couve (Casa do Ouvidor)
Ingredientes
1 kg de m�sculo bovino limpo e cortado em peda�os pequenos; sal, louro em p� e pimenta-do-reino preta a gosto; 1/3 de x�cara de ch� de azeite; 1 cebola picada; 3 dentes de alho amassados; 1/2 paio cortado em cubinhos; ½ lingui�a calabresa defumada cortada em cubinhos; 2,5l de caldo de frango; 3 a 5 colheres de sopa de fub� misturado em 250 ml de �gua fria; 1 tomate com pele e sem semente; 1 ma�o de couve-manteiga rasgada grosseiramente
Modo de fazer
Numa tigela, tempere o m�sculo com sal, louro em p� e pimenta-do-reino. Numa panela de press�o em fogo m�dio, coloque o azeite e frite a cebola e o alho. Junte o paio, a lingui�a calabresa e o m�sculo temperado. Deixe fritar at� dourar. Complete com o caldo de carne. Tampe a panela e deixe cozinhar por 1 hora, depois que pegar press�o. Abra a panela e junte o fub� misturado na �gua. Misture e mexa sem parar para n�o encaro�ar. Se precisar, adicione mais fub� ou mais �gua. Acrescente o tomate e cozinhe por mais 5 minutos. Coloque a couve-manteiga e sirva em seguida.