
Levei menos de meia hora na f�brica de chocolate de Claudio Corallo na cidade de S�o Tom� — a escaldante capital de S�o Tom� e Pr�ncipe — para perceber que tudo o que eu sabia sobre chocolate estava errado.
Corallo � italiano e tem 72 anos. Ele me apresentou diversas de suas cria��es — peda�os de chocolate delicadamente entalhados sobre uma t�bua, esperando para que fossem provados.
Enquanto eu os levava � boca, ele me observava, com a cabe�a levemente inclinada e os olhos brilhando atrav�s dos �culos, esperando pela rea��o que ele sabia que viria.
Seu chocolate 100% cacau era forte, mas n�o amargo. E, quanto mais tempo ele ficava dentro da boca, mais suave se tornava.
“Forte e amargo n�o s�o a mesma coisa”, afirma ele. “N�s aprendemos que o bom chocolate � escuro e amargo, mas amargo � errado e escuro � queimado.”
Uma das diversas cria��es que provei chamava-se Ubric 1, um chocolate 70% cacau com uvas passas destiladas em polpa de cacau, aquela pasta branca do interior da fruta. Corallo descreve o aroma da polpa como “o mais fresco e estimulante” que ele conhece.
Eu nunca havia provado nada como aquilo. N�o surpreende que o jornal italiano Corriere della Sera tenha considerado Claudio Corallo “um dos melhores fabricantes de chocolate do mundo”.S�o Tom� e Pr�ncipe � o segundo menor pa�s da �frica, atr�s apenas das ilhas Seychelles. Mas, pouco mais de 100 anos atr�s, esta min�scula na��o composta por duas ilhas era o maior produtor de chocolate do mundo.
Agora, diversos produtores como Corallo est�o revitalizando o com�rcio de cacau, utilizando variedades antigas e intocadas, planta��es hist�ricas e o clima do pa�s, favor�vel ao cultivo do cacau, para criar produtos de chocolate org�nico.
Corallo estudou agronomia tropical em Floren�a, sua cidade-natal na It�lia. “Eu sonhava com florestas tropicais quando era crian�a”, diz.
Por mais de 30 anos, ele cultivou caf� no Zaire (hoje, Rep�blica Democr�tica do Congo), at� se mudar para S�o Tom� e Pr�ncipe quando a situa��o pol�tica no antigo pa�s se deteriorou, nos anos 1990. Corallo queria usar seus conhecimentos sobre caf� para criar um chocolate com alto teor de cacau que n�o fosse amargo.
Ele encontrou os cacaueiros que procurava na fazenda Terreiro Velho na ilha do Pr�ncipe, a menor e mais preservada do pa�s. Foi ali, a cerca de 130 km a nordeste de S�o Tom�, que ele se estabeleceu para aperfei�oar o processo.
Os fabricantes de chocolate artesanal usam t�cnicas diferentes durante os principais est�gios — colheita, fermenta��o, secagem e torrefa��o — para criar sutis diferen�as de sabor. A t�cnica de Corallo combina o demorado trabalho e seu pr�prio instinto.
Ele retira manualmente o tegumento (a casca amadeirada que cobre cada am�ndoa de cacau) e sua raiz dura e amarga. Muito poucos fabricantes de chocolate se d�o ao trabalho de remover a raiz.
Em seguida, ele fermenta o cacau por duas ou tr�s vezes mais tempo do que o padr�o. J� a torrefa��o � feita pela sua intui��o, adquirida ao longo do tempo.
“O cacau � um produto vivo, ele quer ser conhecido, [ser] tratado corretamente”, explica Corallo.
“Para fabricar chocolate de alta qualidade, voc� precisa viver a sensa��o. Se a temperatura estiver baixa demais e o tempo de torra for muito longo, o cacau perde a alegria. Se as temperaturas forem apenas um pouco mais altas ou o tempo apenas um momento mais curto, ele fica amargo e pungente.”

Origens no Brasil col�nia
As �rvores que crescem na planta��o de Corallo s�o descendentes dos primeiros cacaueiros de S�o Tom� e Pr�ncipe.
At� o in�cio dos anos 1800, s� havia cacau na Am�rica Latina. Foi quando o rei de Portugal, Dom Jo�o 6º (1767-1826), percebeu que estava a ponto de perder o Brasil como col�nia portuguesa.
Antevendo a perda da receita oriunda da ind�stria brasileira de cacau, ele ordenou que fossem embarcados cacaueiros para a col�nia portuguesa mais segura de S�o Tom� e Pr�ncipe.
As �rvores chegaram � ilha do Pr�ncipe em 1819. Rapidamente, vieram pessoas escravizadas do oeste africano e trabalhadores contratados de outras col�nias portuguesas, particularmente Cabo Verde, Angola e Mo�ambique, para trabalhar nas planta��es que surgiriam em seguida.
Os cacaueiros se desenvolveram no rico solo vulc�nico. No in�cio dos anos 1900, S�o Tom� e Pr�ncipe era o maior exportador de cacau do mundo, o que lhe valeu o apelido de “Ilhas do Chocolate”.
As ro�as de cacau eram como cidades autossuficientes. Havia um bairro de acomoda��es para os trabalhadores, com sua pr�pria igreja, hospital e escolas.
Mas as condi��es de vida desses trabalhadores contratados eram t�o ruins e seu tratamento pelos senhores da terra era t�o brutal que, em 1910, fabricantes de chocolate brit�nicos e alem�es boicotaram o “cacau portugu�s”, o que levou ao decl�nio das planta��es locais.
As ro�as foram completamente abandonadas depois que S�o Tom� e Pr�ncipe conquistou sua independ�ncia de Portugal, em 1975. Agora, elas est�o em vari�veis estados de decad�ncia, com seus esqueletos de concreto sendo lentamente consumidos pela floresta.
'O cacau � como o vinho'

A Ro�a Sundy j� foi a segunda maior fazenda da ilha do Pr�ncipe. L�, as ra�zes das paineiras escalam as paredes dos armaz�ns destelhados.
Em um antigo dep�sito, encontrei um secador manual danificado, uma rel�quia dos dias em que o cacau fermentado era colocado para secar sobre enormes fornalhas � lenha.
Em um lado do jardim central da ro�a, ficavam os est�bulos, protegidos pela torre de uma fachada com apar�ncia medieval. Seu rel�gio, corro�do pelo tempo, parou �s sete e meia. Havia tamb�m trechos com trilhos semienterrados que cruzavam a ro�a e os restos abandonados de um hospital.
As constru��es podem ter visto dias melhores, mas a vida em Sundy continua.
No jardim central, observei galos esquel�ticos ciscando na poeira e crian�as gargalhando e perseguindo leit�es pelos arbustos. Uma senhora varria a varanda de uma igreja que parecia n�o ver uma missa h� s�culos.
A ro�a � o lar de cerca de 300 pessoas, descendentes dos primeiros trabalhadores contratados que trabalharam ali. Todas elas ir�o se mudar no final do ano para a Terra Prometida — um empreendimento rec�m-constru�do, com eletricidade e �gua corrente. Mas, por enquanto, eles ainda vivem nas senzalas.
Apesar da simplicidade das suas instala��es, Sundy � uma comunidade vibrante. Muitos dos homens trabalham na planta��o que se estende atr�s do jardim, em dire��o ao mar.
“Com os portugueses, tudo isso eram monoculturas, com setores separados de cacau, coco e caf�”, afirma Jon McLea, diretor agr�cola da empresa de ecoturismo e agroflorestamento HBD Pr�ncipe, que agora � dona da Ro�a Sundy e transformou a antiga casa grande da fazenda em um hotel.
“Mas a natureza seguiu seu pr�prio curso nos �ltimos 50 anos [desde a independ�ncia]”, segundo ele. “Ela conseguiu se recuperar. Por isso, agora estamos envolvidos em agroflorestamento din�mico, cultivando diversas esp�cies em um equil�brio entre o cultivo de cacau e a preserva��o da floresta.”
Atualmente, a floresta montanhosa � coberta por uma diversidade de �rvores. Bananeiras fornecem sombra para os cacaueiros jovens, enquanto coqueiros e mulungus servem de andar superior de prote��o para os cacaueiros mais velhos, j� em produ��o. E �rvores de fruta-p�o est�o espalhadas entre as demais, com seus frutos ca�dos agindo de composto para o solo.
As am�ndoas de cacau da Ro�a Sundy costumavam ser vendidas para uma cooperativa em S�o Tom�, que as exportava para a Europa para processamento. At� que, em 2019, a HBD abriu a F�brica de Chocolate em uma constru��o no jardim central da ro�a. Nela, as mulheres das senzalas selecionam manualmente as am�ndoas para fabricar os pequenos lotes de barras de chocolate que ser�o vendidos nas ilhas.
O chocolate recebe a marca Paci�ncia Organic. Paci�ncia era uma das planta��es sat�lite da Ro�a Sundy no auge da ind�stria cacaueira do local. Agora, � uma fazenda org�nica administrada pela HBD. A fazenda e a F�brica de Chocolate est�o abertas para os visitantes.
A gerente da F�brica de Chocolate, Lina Martins, � minha guia dos produtos, que incluem chocolate 60%, 70% e 80% cacau e sacos amarrados de nibs – pequenos peda�os de am�ndoas de cacau torradas.
Apesar do alto percentual, a barra 80% cacau tem delicadas notas florais, enquanto os nibs t�m forte sabor terroso e de nozes.
Martins fabrica apenas 150 kg de cada percentual duas vezes por ano e espera at� seis meses depois de fermentar as am�ndoas para torr�-las.
“O cacau � como vinho”, ela conta. “Se voc� descansar um pouco entre as etapas, seu sabor � melhor.”
Mas este chocolate � de boa qualidade em diversos aspectos.
“Transformar cacau cultivado na floresta tropical em chocolate e em outros produtos baseados em cacau � uma das iniciativas alinhadas com a nossa vis�o de desenvolvimento socioecon�mico sustent�vel da ilha do Pr�ncipe”, afirma a diretora de sustentabilidade da HBD, Emma Tuzinkiewicz. “Estamos fornecendo oportunidades de emprego enraizadas na riqueza natural da ilha.”
A HBD emprega mais de 500 pessoas na ilha do Pr�ncipe e construiu as novas casas na Terra Prometida. E, ao cultivar o cacau na floresta tropical, eles tamb�m trabalharam muito para manter a maior biodiversidade poss�vel na sua planta��o.
“Sabemos que o sabor do nosso chocolate ser� apenas t�o bom quanto a forma em que tratamos a Terra por aqui”, afirma Tuzinkiewicz. “E o seu sabor � muito bom.”
Leia a vers�o original desta reportagem (em ingl�s) no site BBC Travel.