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A origem do mito b�blico que foi utilizado para 'justificar' racismo

O mito de Cam, narrado no Velho Testamento, foi usado por europeus e pela igreja para justificar a escravid�o de ind�genas e de africanos


18/10/2022 20:11 - atualizado 19/10/2022 10:44


Cruz em cima de Bíblia
(foto: Getty Images)

O mito de Cam, uma pequena passagem do Velho Testamento, ainda ressoa e influencia o Brasil que vai �s urnas para decidir as elei��es presidenciais em segundo turno, no dia 30 de outubro.

Para quem estuda o tema, uma interpreta��o do conto b�blico, que trata de uma maldi��o lan�ada por No� contra seu pr�prio neto, incentiva um racismo de fundo religioso no pa�s e a persegui��o contra religi�es de matriz africana, como candombl� e umbanda.

No contexto da elei��o, a campanha do presidente e candidato � reelei��o Jair Bolsonaro (PL) tem tentado associar seu advers�rio, o ex-presidente Luiz In�cio Lula da Silva (PT), justamente a religi�es afro-brasileiras, ao mal e aos dem�nios.

Cat�lico, o petista tamb�m � acusado por bolsonaristas de ser "anticrist�o" e de querer fechar igrejas caso seja eleito - Lula sempre negou que far� isso, e costuma citar ter aprovado projetos favor�veis aos evang�licos quando era presidente, como o Dia do Evang�lico (30 de novembro).

Em agosto, por exemplo, a primeira-dama Michelle Bolsonaro criticou Lula nas redes sociais por um v�deo em que o petista aparece sendo aben�oado por mulheres de religi�es afro.

"Isso pode, n�? Eu falar de Deus n�o pode, n�", escreveu a primeira-dama, em resposta a uma publica��o de uma vereadora da direita radical que falava que Lula "vendeu a alma" para vencer as elei��es.

Bolsonaristas tamb�m t�m associado a companheira de Lula, a soci�loga Ros�ngela Lula da Silva (conhecida como Janja), �s mesmas religi�es.

J� Bolsonaro tem dito que as elei��es s�o uma batalha do "bem contra o mal" — e ele seria o bem.

Nos �ltimos anos, fi�is da umbanda e do candombl� v�m sofrendo ataques de intoler�ncia religiosa, como destrui��o de terreiros, agress�es f�sicas e xingamentos.


Bíblia sagrada
(foto: Getty Images)

Mas at� chegar �s elei��es deste ano, essa hist�ria m�tica da fam�lia de No� passa pela escravid�o, racismo, embranquecimento da popula��o, igrejas evang�licas e pela chamada Bancada da B�blia no Congresso. E ela come�a no livro de G�nesis, que narra a cria��o do mundo.

Nudez e maldi��o

O Antigo Testamento conta que, depois do dil�vio, Deus procurou No� para selar uma alian�a. A destrui��o iria cessar e todos que sa�ssem da famosa arca — humanos e animais —, iriam repovoar a Terra.

No� tinha tr�s filhos: Jaf�, Sem e Cam. Esse �ltimo tamb�m tinha um filho, Cana�, neto do patriarca.

Depois do dil�vio, No� virou lavrador e plantou um vinhedo. Um dia, "bebendo do vinho, embriagou-se e achou-se nu dentro da sua tenda", narra a B�blia.

"Cam, pai de Cana�, viu a nudez de seu pai, e contou a seus dois irm�os que estavam fora. Ent�o tomaram Sem e Jaf� uma capa, puseram-na sobre os seus ombros e, andando virados para tr�s, cobriram a nudez de seu pai; tiveram virados os seus rostos, e n�o viram a nudez."

Quando acordou, No� ficou possesso ao descobrir que seu filho tinha visto sua nudez - algo considerado inaceit�vel. Ent�o, resolveu amaldi�oar Cana�, tornando seu neto um servo. "Maldito seja Cana�, servo dos servos ser� de seus irm�os", disse No�.


mito de cam
Pintura retrata o mito de Cam narrado na B�blia (foto: Getty Images)

Nessa povoa��o, Jaf� teria levado � cria��o dos europeus, germ�nicos e arianos. Sem teria originado os povos semitas. J� povos da �sia Oriental descenderiam de Cam.

Mas Cana�, filho de Cam amaldi�oado pelo av�, seria o pai dos et�opes, sudaneses, ganeses e amer�ndios. Ou seja, os africanos seriam descendentes de Cam e de Cana�.

Para o pastor Kenner Terra, doutor em Ci�ncias da Religi�o, o mito � uma "etiologia", ou seja, "um texto que pretende explicar a raz�o de certos nomes ou pr�ticas".

"Essa tradi��o justificou, bem posteriormente, os conflitos entre o povo de Israel e Cana�, descendente de Cam", explica.

Segundo texto do historiador Hiran Roedel, doutor em Hist�ria pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o destino dos tr�s filhos de No� e de seu neto Cana� ajudam a explicar por que essa narrativa foi usada por europeus e por ramos do cristianismo como justificativa para escravizar outros povos, principalmente ind�genas e africanos.

"Quando as rotas das grandes navega��es se estabelecem, d�o-se em dire��o, para efeito de com�rcio, das terras que, segundo a B�blia, haviam sido povoadas pelos descendentes de Cam, os amaldi�oados. Nesse sentido, eram povos que poderiam e deveriam ser subjugados, segundo o entendimento no texto sagrado", escreve Roedel.

O historiador Andr� Chevitarese, professor do Instituto de Hist�ria da UFRJ, explica que o mito de Cam foi utilizado para pintar a �frica como "personifica��o do mal" por conta da "origem amaldi�oada de sua popula��o" por conta dessa interpreta��o do mito b�blico.

"O continente passou a ser marcado como demon�aco, amaldi�oado por Deus e formado por pessoas mergulhadas no pecado. O uso simb�lico desse mito inunda a cabe�a das pessoas sem que elas se deem conta. Essa imagem � utilizada at� hoje", explica.

'A reden��o de Cam'

O mito de Cam tamb�m ajudou a ilustrar o projeto racista de embranquecimento da popula��o brasileira depois do fim da escravid�o em 1888, principalmente com a chegada de imigrantes europeus que substitu�ram a m�o de obra escravizada.

Uma das mais famosas pinturas da �poca � A Reden��o de Cam, do pintor espanhol Modesto Brocos, que viveu no Brasil por algumas d�cadas.

A tela, de 1895, mostra uma mulher idosa e negra erguendo as m�os e os olhos aos c�us. Ao lado, h� outra mulher mais jovem, provavelmente filha da idosa, de pele mais clara. Ela segura um beb� branco.

� direita h� um homem tamb�m branco, que seria o marido e pai da crian�a, olhando para o filho com certa admira��o.


Quadro
Quadro A Reden��o de Cam, de 1895, � de autoria do pintor espanhol radicado no Brasil Modesto Brocos (foto: Reprodu��o)

Em entrevista ao Nexo Jornal em 2018, a historiadora e antrop�loga Tatiana Lotierzo, autora do livro Contornos do (In)vis�vel: Racismo e Est�tica na Pintura Brasileira (1850-1840), argumenta que as personagens da pintura representam as tr�s gera��es necess�rias que supostamente tornariam o Brasil um pa�s branco.

Nessa an�lise, a reden��o dos "descendentes" de Cam e de Cana� seria sua extin��o como pessoas negras.

Ou seja, o beb� da pintura, descendente da idosa negra, representaria esse embranquecimento. "O quadro de Brocos, ao apelar para a ideia de reden��o, � sem d�vida uma tela racista", disse a antrop�loga.

"Uma das associa��es que aparecem com mais frequ�ncia na imprensa do per�odo, em textos escritos por intelectuais renomados, como Olavo Bilac e Coelho Neto, � justamente a da morte como reden��o, para as pessoas negras. S�o textos de muita viol�ncia, pois concebem que a extin��o dessas pessoas, inclusive pela via do embranquecimento, � o caminho para a emancipa��o", explicou Lotierzo.

Uso pol�tico

Mais recentemente, em 2011, o mito de Cam foi resgatado pelo pastor evang�lico Marco Feliciano (PL) para dizer que a �frica � "amaldi�oada". O religioso, que na �poca era deputado federal, foi eleito novamente para o cargo nas elei��es deste ano.

"Africanos descendem de ancestral amaldi�oado por No�. Isso � fato. O motivo da maldi��o � pol�mica. N�o sejam irrespons�veis twitters rsss", escreveu o pastor e pol�tico.

Ele continuou: "Sobre o continente africano repousa a maldi��o do paganismo, ocultismo, mis�rias, doen�as oriundas de l�: ebola, aids. Fome... Etc. N�o tem nada de coment�rio racista. � um coment�rio teol�gico que est� na B�blia."

Feliciano apagou a mensagem ap�s ser questionado por jornalistas.


tuite de Marco Feliciano
Pastor e deputado Marco Feliciano postou, em 2011, coment�rio ligando africanos ao mito de Cam (foto: Reprodu��o)

Na �poca, o pastor precisou se explicar ao Supremo Tribunal Federal (STF) ap�s ser acusado de discrimina��o e preconceito de ra�a pela Procuradoria-Geral da Rep�blica (PGR) - ele tamb�m respondeu por coment�rios homof�bicos.

Em sua defesa, afirmou que "a cren�a dos crist�os de os problemas e obst�culos n�o surgirem necessariamente de atos do governo e ou empres�rios, mas do C�u, ou seja, como se a humanidade expiasse por um carma, nascido no momento em que No� amaldi�oou o descendente de Cam e toda sua descend�ncia, representada por Cana�, o mais mo�o de seus filhos".

Para o pastor Kenner Terra, embora o mito de Cam n�o seja mais t�o utilizado "como instrumento de legitima��o do racismo", ele tem "pot�ncia simb�lica e pode servir para discursos violentos."

J� a pesquisadora Tayn� Louise De Maria, doutoranda em Hist�ria Comparada pela UFRJ, acredita que o mito se faz presente de maneira simb�lica at� na representa��o do mal dentro das igrejas e em publica��es.

"Em muitas igrejas e em revistas evang�licas, o mal � sempre representado pelas cores escuras", disse em entrevista recente � BBC News Brasil.

Segundo ela, que estuda intoler�ncia religiosa no Brasil, a imagem de uma" �frica amaldi�oada" ainda ressoa no imagin�rio de quem combate as religi�es de matriz africana como uma vertente do mal.

Por causa disso, diz, a intoler�ncia afeta os fi�is "do momento em que a pessoa coloca suas roupas religiosas at� quando anda na rua."

Intoler�ncia religiosa


candomblé
Adeptos do candombl� t�m sofrido ataques de intoler�ncia religiosa nos �ltimos anos (foto: Getty Images)

Assim como outras manifesta��es culturais da popula��o negra, as religi�es afro-brasileiras historicamente enfrentam persegui��es e at� criminaliza��o.

Embora a Constitui��o de 1891, a primeira da Rep�blica, garantisse a liberdade de culto, o C�digo Penal de 1890 estabelecia como crime, por exemplo, "praticar o espiritismo, a magia e seus sortil�gios, usar de talism�s e cartomancias para despertar sentimentos de �dio ou amor, inculcar cura de mol�stias cur�veis e incur�veis."

No Rio Janeiro, durante muito tempo o museu da Pol�cia Civil armazenava centenas de objetos relacionados ao candombl� e � umbanda, artefatos que eram confiscados no in�cio do s�culo passado em batidas policiais em terreiros. Recentemente, uma campanha de religiosos conseguiu recuperar esse acervo.

Nos �ltimos anos, casos de intoler�ncia contra religiosos v�m se avolumando.

Segundo o Relat�rio Sobre Intoler�ncia Religiosa no Brasil, produzido pelo Centro de Articula��o de Popula��es Marginalizadas (Ceap) e pelo Observat�rio das Liberdades Religiosa (OLR), apenas no Estado do Rio de Janeiro foram registrados 47 casos de intoler�ncia contra religi�es de matriz africana no ano passado.

Em 56% dos casos, aponta o relat�rio, o violador era "crist�o evang�lico".

H� desde invas�o e depreda��o de templos e terreiros a amea�as, mensagens preconceituosas em redes sociais, xingamentos a fi�is e at� agress�es.


cerimônia de candomblé
(foto: Getty Images)

Em um deles, narra o documento, uma sacerdotisa do candombl� e seus dois filhos, trajados de branco, foram agredidos por um motorista de aplicativo. Ele os expulsou do autom�vel e arremessou seus objetos para fora, chamando os passageiros de "satan�s".

Para Denisson D'Angiles, sacerdote do Instituto Centro Espiritualista de Umbanda Estrela Guia, religiosos dessas vertentes s�o vistos como "obreiros do dem�nio".

"H� uma tentativa de nos associar a uma esp�cie de pecado capital, como se f�ssemos inimigos a serem combatidos. Todos os dias somos xingados e questionados porque usamos nossa indument�ria branca, todos os dias preciso me explicar para as pessoas", diz.

J� o babala� Ivanir dos Santos, professor da p�s-gradua��o em Hist�ria Comparada da UFRJ, acredita que o discurso preconceituoso de autoridades e pol�ticos influencia diretamente no cotidiano dos religiosos que precisam enfrentar a intoler�ncia.

"Em um pa�s racista, o discurso est� se transformando em a��es pr�ticas contra terreiros e religiosos. Ao inv�s de falarem de quest�es sociais, da fome, do desemprego, est�o utilizando as religi�es com objetivos pol�ticos e econ�micos", diz.

O babala�, que mora no morro da Mangueira, no Rio de Janeiro, diz que a conviv�ncia com os evang�licos na regi�o tem sido respeitosa, embora o di�logo "n�o seja muito f�cil".

"Na verdade, quando a gente pensa em viol�ncia, os evang�licos s�o os que mais sofrem perdas. Muitos evang�licos, inclusive crian�as evang�licas, s�o mortos em situa��es de viol�ncia. A bala perdida n�o sabe se voc� toca atabaque ou l� a B�blia, mas sabe que voc� � preto e pobre", diz.


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