
Neste domingo, 20 de novembro, � celebrado o Dia da Consci�ncia Negra. A data, proposta na d�cada de 1970 e oficializada nacionalmente em 2003, � dedicada � celebra��o e � reflex�o sobre o valor e a contribui��o da comunidade negra para o Brasil. A Revista busca, hoje, dar voz e visibilidade a um grupo ainda mais silenciado: as mulheres negras, em especial as que iniciaram a vida no trabalho dom�stico.
Perfil tra�ado pelo Departamento Intersindical de Estudos e Estat�sticas (Dieese) e divulgado em abril deste ano mostra que as mulheres representam 92% das pessoas ocupadas no trabalho dom�stico no Brasil, e entre estas, 65% s�o negras — uma atividade, infelizmente, desvalorizada e mal remunerada.
E como se n�o bastasse, a cor da pele dessas mulheres tamb�m na � um fator determinante na quest�o salarial. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estat�stica (IBGE) mostram que, em 2020, as mulheres negras no servi�o dom�stico receberam 20% a menos do que as n�o negras.
E por que ainda vivemos neste cen�rio? A professora e doutora Luc�lia Luiz Pereira, do Departamento de Servi�o Social da Universidade de Bras�lia (UnB), explica que � necess�rio considerar que as desigualdades no Brasil est�o ancoradas no colonialismo, patriarcado e classe social.
Considerando essas ra�zes danosas, o racismo continua sendo um dos grandes males da sociedade brasileira, onde ocorre a marginaliza��o social das pessoas negras e a nega��o de direitos b�sicos. E na base desta pir�mide social, Luc�lia afirma, com base em dados estat�sticos sobre escolaridade, ocupa��o, mortalidade, viol�ncia e encarceramento, est�o as mulheres negras.
“O racismo estrutural molda as experi�ncias de vida das pessoas negras e influencia de forma determinante em suas condi��es de vida e acesso a direitos sociais. Esse racismo � patriarcal e, por isso, as mulheres negras t�m desvantagens em todas as dimens�es da vida, como sa�de, trabalho, educa��o, seguran�a”, afirma a professora.
E entre estas dimens�es, est� o mercado de trabalho. Essas mulheres ocupam postos de trabalho precarizados e mal remunerados e s�o maioria em v�rios setores de empregos informais, como trabalhadoras dom�sticas e cuidadoras de idosos.
Passos adiante
Apesar das desigualdades baseadas no Brasil Col�nia ainda perseguirem a comunidade negra, a cada dia a luta antirracista avan�a um pouco mais por meio do ativismo de diversos movimentos negros.
“O feminismo negro e os movimentos s�o fundamentais. � Importante dar visibilidade ao protagonismo das mulheres negras nas transforma��es sociais e pol�ticas que marcam a sociedade, porque elas s�o sujeitos pol�ticos fundamentais na constru��o de pol�ticas p�blicas de combate �s desigualdades e de acesso a direitos sociais”, completa.
� nessas mulheres, que por meio da sua voz, resili�ncia e persist�ncia mudaram suas trajet�rias e buscam auxiliar e fortalecer outras como elas, que focamos a nossa reportagem. Tr�s mulheres negras que iniciaram a vida, durante a inf�ncia ou a adolesc�ncia, no trabalho dom�stico, mas n�o abandonaram os estudos ou as possibilidades de conseguirem coloca��es mais justas, contam suas hist�rias. Conhe�a Jana�na, Maria e Edilene.
Ela (n�o) � s� a bab�
Tudo come�ou com a necessidade de desabafar. Em um ambiente controlado, morando sozinha em uma cidade distante da sua e sem ter, para conversar, algu�m que compreendesse como cada humilha��o sofrida a feria, Jana�na Costa, 29 anos, criou, anonimamente, a p�gina Ela � s� a bab�.
Na virada do ano em 2017, Jana�na foi a um restaurante com a fam�lia para a qual trabalhava em S�o Paulo. Assim como todos que estavam vestidos de acordo para comemorar o r�veillon, Jana�na usava branco. Por�m, a cor n�o estampava uma roupa de festa, mesmo que simples, e sim o seu uniforme de bab�.
Quando o rel�gio bateu meia-noite, ela n�o ouviu "feliz ano-novo" de ningu�m. Estava do lado de fora do restaurante, ouvindo o choro do beb� de quem cuidava e tentando acalm�-lo, ap�s o barulho dos fogos de artif�cio.
No dia seguinte, os patr�es viajaram para a Disney e ela tomou uma decis�o. "Aquela noite foi a gota d'�gua em uma s�rie de situa��es humilhantes nas quais eu era tratada como um objeto �til e n�o uma pessoa, me sentia apagada. Decidi que n�o voltaria mais naquela casa."

Jana�na passava os fins de semana neste emprego e a semana em outro, onde era cuidadora e acompanhante de uma senhora. Ali, com uma patroa que a tratava com respeito e dignidade e permitia que ela usasse o computador, ela encontrou uma maneira de colocar para fora tudo que a engasgava havia anos.
"N�o tive d�vidas sobre qual seria o nome da p�gina. Eu escutava essa frase desde que comecei a trabalhar como bab�, com 12 anos, em minha cidade. Muitas bab�s ouvem isso. N�o temos nome, somos a bab� de algu�m, e � assim que somos apresentadas nos ambientes dos patr�es. N�o desmere�o, eu sou uma bab�, mas sou um milh�o de coisas mais."
A frase, al�m de ser usada para definir, tamb�m costumava ser dita em situa��es nas quais se iniciava um assunto importante e Jana�na estava no c�modo. "N�o tinha import�ncia que eu ouvisse algo s�rio ou particular, porque eu era s� a bab�, como se n�o fosse uma pessoa com pensamentos."
A primeira vers�o do desabafo foi no Facebook e an�nima. Ali, com muito medo de ser descoberta e n�o conseguir mais emprego, Jana�na relatava as situa��es por que passava como trabalhadora dom�stica e encontrava eco nas hist�rias de outras mulheres, quase todas negras, como ela.
Em uma das casas em que trabalhou, tinha muito medo de postar, e o fazia embaixo das cobertas, antes de dormir. O motivo? Ela e a outra bab� que trabalhava na casa eram monitoradas o tempo inteiro pelas c�meras de seguran�a presentes em todos os c�modos. Apesar de pagar as contas, o emprego custou caro para a sa�de mental de Jana�na, e ela saiu.
No fim de 2018, o perfil deixou de ser an�nimo. "Coloquei minha cara, mostrando que essa sou eu e contando mais de mim. O tema era importante e reunia muitas mulheres negras e trabalhadoras que dividiam o espa�o comigo", conta.
Ali, naquele espa�o seguro, contou mais de sua hist�ria. Natural de uma comunidade quilombola no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, ela se mudou para S�o Paulo aos 14 anos, para ajudar a cuidar dos filhos da irm�, que era bab� para uma fam�lia na cidade.
"Somos 11 irm�os, sete mulheres, e todas s�o trabalhadoras dom�sticas. Minha m�e e minha av� tamb�m viveram essa experi�ncia, brinco que � heredit�rio. Sou a primeira mulher da fam�lia a entrar na universidade", conta.
E foi dentro da universidade, cursada em S�o Paulo, que ela entendeu que algo estava errado no tal "tra�o heredit�rio" que levava as mulheres de sua fam�lia ao trabalho dom�stico e, muitas vezes, abusivo. Estudando para ser historiadora, nas aulas de hist�ria do Brasil, passou a compreender como o racismo estrutural e a forma como o pa�s se desenvolveu contribu�ram para o cen�rio atual do trabalho dom�stico.
Jana�na tinha acabado de se formar em hist�ria e estava desempregada quando conheceu a atual patroa, por meio o perfil no Instagram. "Ela sabia quem eu era, o que escrevia, que eu estudava e tinha o desejo de morar fora. Me fez uma proposta de emprego e eu aceitei."
Outro aspecto abordado por Jana�na � a cor de sua pele. Algumas vezes, pessoas que n�o a conhecem pessoalmente duvidam que ela possa ter uma gradua��o e um mestrado tendo sido bab� a vida inteira. E o questionamento continua at� o instante em que veem que ela � uma mulher negra. “Parece que por eu ser negra, pronto, faz sentido que eu seja a bab�, apesar da minha forma��o.”
A p�gina e as reflex�es de Jana�na encontram eco em suas semelhantes, mas traz tamb�m inc�modo. Sobre isso, Jana�na convida os que desejam que ela pare de expor suas viv�ncias a fazer uma reflex�o. "A quem interessa que eu me cale? Como o meu relato ressoa em suas atitudes ou no seu meio? Se isso � um inc�modo, por que voc� n�o faz algo para evitar que isso aconte�a, em vez de pedir que eu pare de falar nas minhas redes sociais?"
Instagram: @elaesoababa e @jana_retratos
Da faxina para o consult�rio
Assim como a mestre em hist�ria e bab� Jana�na Costa constatou com os relatos em sua p�gina nas redes sociais e em sua tese de mestrado, a hist�ria entre as trabalhadoras dom�sticas costuma se repetir. A psic�loga Maria Jos� Bas�lio de Oliveira, 37 anos, tamb�m come�ou a atuar profissionalmente no in�cio da adolesc�ncia e atuou grande parte da vida como empregada dom�stica, faxineira e bab�.
Formada e com duas p�s-gradua��es, ela comenta que at� hoje encontra dificuldades em se enxergar no "novo" papel que ocupa na sociedade e, embora tenha orgulho do trabalho que fazia e de onde ele a levou, sente na pele a inferioriza��o pela qual as trabalhadoras dom�sticas passam.
Em uma situa��o recente, precisando de um dinheiro extra para viajar e prestar um concurso, uma amiga, com quem Maria convivia h� cerca de cinco anos, ofereceu R$ 100 por uma faxina. Apertada de dinheiro e achando que a amiga tinha aproveitado a situa��o para ajud�-la, topou.

Durante a faxina, a colega brincou que n�o pagaria pelo servi�o, j� que por diversas vezes Maria tinha dormido na casa dela sem custos e, durante as visitas, comia e bebia cervejas, compradas — e oferecidas — pela suposta amiga. A brincadeira n�o ficou por ali, Maria n�o recebeu o valor combinado e, mesmo pedindo e dando algumas indiretas, ouviu da mo�a que o valor seria "descontado".
Magoada, Maria, mesmo formada e atuando como psic�loga, voltou a sentir a sensa��o de inferioridade que tantas vezes acompanha a desvaloriza��o do trabalho dom�stico. Infelizmente, o sentimento n�o � in�dito. Quando era bab�, ouviu da patroa que o arranjo de trabalho n�o funcionaria se ela quisesse estudar.
"Ela dizia que era porque precisava dormir, mas esse dormir era acordar de madrugada para limpar v�mito quando as crian�as passavam mal e ficar at� depois de meia-noite lavando lou�as e arrumando a casa quando eles faziam churrascos e jantares", lembra.
A desvaloriza��o de Maria, como pessoa, n�o se resumiu ao servi�o dom�stico. Atuando na linha de frente em postos de sa�de durante o auge da pandemia, teve sua forma��o colocada em xeque devido � cor de sua pele. Ao chegar a um posto diferente do que trabalhava para fazer um teste, foi impedida por um enfermeiro, que disse n�o existir testes dispon�veis na unidade. "Eu sabia que tinha, porque trabalhava na �rea e fui informada da chegada do material."
Depois de buscar ajuda com os respons�veis pelo posto, Maria ouviu um pedido de desculpas do homem, que se justificou dizendo que n�o imaginava que ela era psic�loga ou que trabalhava na �rea da sa�de. "� sobre a luta por um lugar no mundo. � sobre te perguntarem se voc� � a recepcionista, n�o menosprezando outras profiss�es, mas s� nos enxergam em cargos mais desvalorizados. Volta e meia somos confundidas, como se eu n�o pudesse ser psic�loga."
Maria come�ou a fazer faxina aos 12 anos, no interior de Pernambuco, recebendo R$ 30 por m�s. Aos 15, se mudou para Petrolina, e o "sal�rio" aumentou para R$ 150. "Em outra situa��o, ouvi de uma patroa que ela s� contratava pessoas feias para n�o correr o risco de que o marido se interessasse."
Em outra ocasi�o, com uma queimadura de segundo grau no bra�o, feita durante o expediente, Maria foi acusada pela empregadora de ter se ferido de prop�sito, apenas para n�o trabalhar. As cicatrizes, as do bra�o e as invis�veis, est�o ali at� hoje.
Mudan�a de vida
H� 16 anos, Maria veio para Bras�lia. Ainda no trabalho dom�stico, come�ou a procurar outras oportunidades. Quando conseguiu um emprego de secret�ria em um shopping de Taguatinga, come�ou a faculdade. Antes de conseguir se formar, em 2016, precisou trancar o curso duas vezes, por n�o conseguir pagar as mensalidades. Quando, enfim, terminou a gradua��o, n�o conseguiu coloca��o no mercado de trabalho. "N�o sei at� que ponto isso � uma vis�o minha, a minha percep��o, mas eu n�o atendo a um certo padr�o do que as pessoas veem como psic�loga, e acabei trabalhando com telemarketing por um tempo", conta.
Na mesma �poca, Maria se envolveu em trabalhos volunt�rios, nos quais atuava como psic�loga para jovens e adultos carentes. Al�m de ajudar quem precisava, a ideia era agregar conhecimento e ganhar experi�ncia na �rea.
A psic�loga passou um tempo em S�o Paulo, com uma irm�, e voltou para Bras�lia quando conseguiu coloca��o em uma cl�nica psiqui�trica. O emprego, no entanto, n�o foi o que ela esperava e, depois de mais de tr�s meses de atraso nos pagamentos, voltou para o telemarketing para pagar as contas. Nesse cen�rio, conseguiu emprego em uma Unidade B�sica de Sa�de (UBS) em Goi�s, onde segue trabalhando e morando. O plano � voltar para Bras�lia e fazer mais especializa��es.
Uma outra proposta envolve se mudar para Portugal e atuar no trabalho dom�stico at� conseguir se adaptar financeiramente e se preparar, inclusive com os documentos necess�rios, para trabalhar na sua �rea de forma��o. "Sempre falo o seguinte: se precisar eu fa�o faxina sem problema nenhum. Eu gosto de faxinar, colocar as coisas no lugar. Tenho orgulho de onde o trabalho dom�stico me trouxe e, precisando, fa�o sem nenhum impedimento", afirma.
O que Maria se recusa � passar por situa��es humilhantes novamente. Identificando-se com o filme brasileiro Que horas ela volta?, deseja que cada vez mais pessoas vejam hist�rias de mulheres que mudaram suas vidas e se inspirem, entendendo que elas n�o precisam se submeter, que s�o capazes de mudar as pr�prias vidas.
Uma gera��o de mulheres negras fortes
Uma hist�ria regada de lutas, mas com muita garra e determina��o. Edilene Carneiro, 54 anos, � de fam�lia pobre e cresceu com muitas cicatrizes parentais. Desde cedo, viu na aus�ncia de condi��es b�sicas do lar uma realidade que enfrentaria at� a fase adulta. Aos 17, para ajudar nas contas de casa e dar suporte � m�e, come�ou a trabalhar de bab� durante os fins de semana. E assim foi por um per�odo de mais ou menos um ano.

"Sempre passamos por muitas priva��es. Falta de alimentos, d�vidas de casa. Nunca passei fome, mas sempre faltava alguma coisa, por isso comecei a trabalhar", relembra. Olhando para tr�s, ela conta sobre o passado cheio de feridas, em que o estudo, ainda na adolesc�ncia, chocava-se com o emprego que arrumou ainda t�o jovem. O pai, alcoolista, mal conseguia dispor de qualquer aux�lio para a renda da fam�lia, muito menos de afeto ou amor.
Com o cen�rio dif�cil, Edilene lembra que a rotina era cansativa, principalmente por ter que dividir tantas responsabilidades com a m�e. "Eu tive que amadurecer muito cedo", descreve. No entanto, em meados de 1985, uma luz no fim do t�nel apontava para um futuro diferente.
� �poca, como as forma��es se distribu�am de maneiras diferentes, a moradora da Candangol�ndia tornou-se professora de alunos de ensino fundamental, depois que terminou o ensino m�dio profissionalizante, como era conhecido naquele per�odo. Essa foi a profiss�o que ela desempenhou durante 34 anos, at� se aposentar.
Ainda que os percal�os, rodeados de olhares preconceituosos e diversos casos racistas tenham sido uma constante, a educadora garante que jamais abaixou a cabe�a para uma luta que sempre foi mais do que sua — mas de todos os que dependiam dela.
Hoje, m�e de uma mulher de 23 anos, olha para filha e v� que, daqui para a frente, o mundo pode ser melhor como nunca foi. Apesar de tudo, a professora se considera uma vencedora, e enxerga nesses caminhos tortos uma felicidade sem igual, preenchida de orgulho e de satisfa��o. Edilene acredita que, de onde ela veio, o esfor�o sempre � em dobro. Mesmo com as conquistas, n�o esconde que ainda h� muitas coisas pelas quais lutar. "Somos uma gera��o de mulheres negras fortes", pondera.