
A deusa afasta os pequenos agressores com um sopro e revela ao menino loiro de tra�os delicados que ele n�o � Raul, e sim a princesa troiana Cassandra. Leia a "Il�ada", lhe diz Atena, "voc� vai compreender".
Na mitologia grega, Cassandra � uma figura sombria: ap�s atrair a aten��o de Apolo e receber o dom de prever o futuro, a mo�a rejeita as investidas do deus, que a pune determinando que ningu�m jamais acreditar� em suas profecias. Cassandra v� a queda de Troia e, mais tarde, a pr�pria morte, mas n�o tem como proteger ningu�m.
Gala, contudo, contorna o expediente gasto da fic��o como fuga ao dar a Raul uma fantasia t�o terr�vel e insol�vel quanto sua pr�pria vida.
O destino de Raul, afinal, n�o � promissor. Vivendo sob a repress�o pol�tica e simb�lica do regime de Fidel Castro e as amea�as do machismo, a crian�a descobre na poesia l�rica um espa�o de acolhimento e veste escondida as roupas da m�e.
Sua sorte parece t�o previs�vel que os deuses insistem que Raul/Cassandra se entregue logo. Quando conclui os anos escolares, Apolo prop�e: "Nada de universidade, nada disso, por que atrasar seu retorno ao infinito?".
A nova Cassandra sabe que vai morrer, ainda jovem, na condi��o de soldado na interven��o em Angola --Cuba apoiou militarmente o movimento de liberta��o do pa�s, de 1975 a 1991--, e a experi�ncia no desterro africano � agravada pela hostilidade dos companheiros, pela viol�ncia da guerra e da natureza e, sobretudo, pelo abuso sexual.
A experi�ncia � marcada tamb�m pela presen�a ostensiva de divindades em que convergem as mitologias grega e iorub�: Apolo se disfar�a de Xang� e exp�e sua ira; Atena � Obatal� e ajuda a cavar a cova sem fundo de Cassandra.
Esse sincretismo improv�vel evidencia, de modo inventivo e potente, a ambiguidade cultural do colonizado. As Er�nias, entidades gregas vingadoras de crimes, aparecem como uma banda de rock que entoa uma can��o sobre os caix�es que abrigar�o os soldados, enquanto os esp�ritos dos mortos formam um redemoinho em volta da cabe�a da protagonista, "como um enxame de mosquitos".
"Me Chama de Cassandra" � narrado em primeira pessoa por Raul, na simultaneidade de temporalidades pr�pria a uma profetisa. Lembran�as, presente e futuros pressagiados se confundem, ao mesmo tempo que "tudo � por enquanto" e a intensidade dos momentos � minada pela perspectiva do fim.
� tamb�m por causa da sombra da morte que a personagem expressa o desespero in�til por encontrar o pr�prio desejo nesse corpo sobre os quais se projetam os desejos de tantos outros.
O romance de Gala � povoado por personagens que exp�em a conflu�ncia de dor, desejo e viol�ncia. Da m�e que veste o filho com as roupas da irm� morta, alimentando as fantasias de ambos, ao capit�o que estupra o soldado para sanar a saudade da esposa, nenhum gesto cruel traz em si um diagn�stico simples.
Mesmo a coibi��o de inspira��o sovi�tica ao "diversionismo ideol�gico" da literatura "burguesa" � contrabalan�ada pela figura de Liudimila, russa que se firma como a interlocutora poss�vel do menino.
"Me Chama de Cassandra" est� longe de ser um romance perfeito. Gala muitas vezes pesa a m�o na den�ncia � viol�ncia pr�tica e simb�lica do regime de Fidel e, em outras, resvala na pieguice ao tratar dos conflitos inerentes � transexualidade de Raul. A edi��o brasileira tamb�m merecia cuidado maior (h� erros bobos como chamar a deusa de "Atenas").
O livro, por�m, compensa essas fragilidades ao trazer para sua estranha composi��o formal - na fratura invis�vel entre realidade e fantasia; na confus�o de temporalidades; no insuspeito bom humor da voz narrativa- o absurdo do destino de sua protagonista.
Servi�o
ME CHAMA DE CASSANDRA
Pre�o R$ 49,90 (248 p�gs.); R$ 34,90 (ebook)
Autoria Marcial Gala
Editora Biblioteca Azul
Tradu��o Pacelli Dias Alves de Sousa
AVALIA��O Muito bom