Depois dos t�xis, aplicativos de transporte amea�am sistema de �nibus
Na 5� reportagem da s�rie, EM mostra que, cinco anos depois de estrear tirando o sono de taxistas, aplicativos de transporte tomam passageiros de coletivos e j� fazem setor temer caos
postado em 20/06/2019 06:00 / atualizado em 21/06/2019 13:57
Movimento na Esta��o Pampulha do Move: usu�rios reclamam de que, apesar da queda
na demanda, coletivos continuam superlotados (foto: Paulo Filgueiras/EM/D.A PRESS)
N�o h� quem n�o se lembre da pesada rea��o dos taxistas � entrada no mercado da concorr�ncia de servi�os de transporte de passageiros por aplicativo, liderados pelo Uber. Mas o que pouca gente previa era que, cinco anos depois de sua estreia, os apps do tipo fizessem balan�ar sobre as rodas os pesos-pesados do transporte coletivo: as empresas concession�rias do sistema p�blico. Na quinta reportagem da s�rie sobre mobilidade na era da tecnologia, o Estado de Minas mostra que, em meia d�cada de consolida��o das companhias de base tecnol�gica que impuseram novas regras nas ruas e avenidas de Belo Horizonte, as plataformas de deslocamento baseadas em celulares colecionam cada vez mais adeptos, enquanto na contram�o milhares de pessoas desembarcaram dos coletivos na cidade.
De 2014 para c�, per�odo que coincide exatamente com o fen�meno dos novos aplicativos de transporte, �nibus operados pelas empresas concession�rias do sistema municipal registraram redu��o de quase 17% no n�mero total de pessoas que passam pelas roletas anualmente. Enquanto em 2014 o sistema carregou mais de 448 milh�es de pessoas, em 2018 esse n�mero estacionou em cerca de 372 milh�es. S�o quase 76 milh�es de passagens a menos no sistema, mas isso n�o � o pior para as companhias tradicionais: a tend�ncia de 2019 � de redu��o ainda maior.
Para a Associa��o Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), os aplicativos t�m influ�ncia direta nesse quadro, que tende a se agravar sobretudo com a expans�o dos servi�os de compartilhamento do transporte entre pessoas que n�o se conhecem dentro de um mesmo ve�culo. O presidente-executivo da entidade, Ot�vio Cunha, acredita que, se n�o houver interven��o do Estado nessa modalidade, � grande a possibilidade de o sistema instaurar em definitivo o caos no transporte p�blico por �nibus.
Para se contrapor a isso, no mesmo per�odo em que houve mudan�a significativa nos deslocamentos em BH, o transporte coletivo tamb�m usou a tecnologia para tentar se aprimorar. A partir do aplicativo SIU Mobile, passageiros passaram a poder monitorar os �nibus, sabendo quanto tempo falta para o coletivo chegar a cada ponto, o que mudou a l�gica de esperar por longos per�odos sem saber a hora de chegar em casa. Mas foi pouco para um setor que, al�m da concorr�ncia de aplicativos, enfrenta como todos os demais os efeitos da crise econ�mica.
O dirigente da NTU destaca que outro fator preponderante para a fuga de passageiros dos coletivos � a lentid�o da economia. Segundo ele, os mais de 13 milh�es de desempregados que hoje se espalham pelo pa�s s�o em sua maioria pessoas origin�rias do setor formal, que recebiam vale-transporte e por isso usavam o sistema de �nibus. O fator crise tamb�m � apontado como decisivo pelo presidente da BHTrans, C�lio Freitas, para o sufoco no sistema �nibus. Por�m, ele admite a influ�ncia direta dos apps de transporte no quadro. “Uma parcela dos usu�rios do transporte coletivo e uma parcela dos usu�rios do t�xi migrou para o servi�o baseado em aplicativos. O que a gente n�o consegue medir ainda � qual parcela � essa”, diz Freitas.
Ot�vio Cunha, da NTU, sustenta que o transporte individual de passageiros mediado pelos aplicativos n�o � o foco das preocupa��es da entidade. Mas a oferta dos apps de compartilhamento de carro entre pessoas desconhecidas, o que reduz ainda mais a tarifa individual, tornando-a muitas vezes mais atrativa que os pre�os das passagens, tem potencial para estrangular o sistema �nibus. Isso porque, segundo Cunha, essa modalidade acontece normalmente em �reas de maior movimento, onde est�o as linhas consideradas superavit�rias. S�o elas que equilibram o sistema, em conjunto com os percursos que normalmente n�o d�o lucro, mas precisam existir para manter atendimento em 100% da cidade.
“Hoje esse tipo de servi�o est� sendo feito com autom�vel em que cabem quatro pessoas. Amanh� ele pode ser ofertado por uma van e a� certamente o transporte p�blico pode virar o caos, porque as empresas ficariam obrigadas a cumprir determinados contratos, mas n�o ter�o receita para isso”, diz Ot�vio Cunha. O Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros de Belo Horizonte (Setra-BH) acrescenta que “os custos de opera��o do transporte por aplicativo s�o notoriamente menores, n�o h� a necessidade de disponibiliza��o pr�via e obrigat�ria do servi�o, h� flexibilidade na cobran�a dos valores e � poss�vel escolher os lugares mais atrativos para operar, entre outras facilidades”. “Essas empresas se valem da aus�ncia de regulamenta��o para exercer suas atividades, sempre sob o pretexto da livre iniciativa”, informa a entidade representativa das empresas tradicionais de transporte.
Para a popula��o que usa o servi�o dos �nibus, a expectativa era de que a redu��o t�o significativa do n�mero de passageiros transportados pelos coletivos aumentasse o conforto do sistema, reduzindo a superlota��o. Mas na pr�tica n�o � o que acontece, segundo usu�rios do sistema, como a vendedora Ila Guedes, de 37 anos, que mora no Bairro Santa M�nica, na Regi�o de Venda Nova. Ela usa seis �nibus por dia no trajeto de ida e volta de casa para o trabalho, no BH Shopping. “Todos os que eu pego v�o muito cheios. A impress�o que tenho � de que diminu�ram a quantidade de coletivos, porque cada vez ficam mais lotados”, diz ela.
Em sua rotina di�ria, Ila pega um �nibus de uma linha alimentadora do Santa M�nica at� a Esta��o Pampulha do Move. Depois, usa uma linha troncal at� a Esta��o UFMG. Por fim, sobe em um coletivo que vai at� o BH Shopping usando o corredor exclusivo da Avenida Ant�nio Carlos. Essa l�gica passou a vigorar a partir de 2014, quando o Move foi inaugurado. Antes ela usava um �nibus de casa ao Centro e um segundo at� o trabalho. “Antes era bem mais f�cil, mas agora reconhe�o que ficou mais r�pido”, diz.
Apesar da percep��o dos passageiros de que a lota��o n�o diminui, o Setra-BH garante que a frota de coletivos aumentou nos �ltimos 10 anos na capital. Segundo o sindicato das empresas tradicionais de transporte, em 2008 a cidade era atendida por 2.823 ve�culos, n�mero que cresceu para 2.853 em 2019, a servi�o de 296 linhas operadas por 35 empresas. No comparativo entre os dois anos, por�m, o n�mero de vezes que a roleta girou ao ano despencou em nada menos que 50 milh�es.
Desafio que a tecnologia n�o conseguiu superar
Coletivos travados em meio ao tr�fego: empresas cobram mais pistas exclusivas, mas queda sequencial do n�mero de passageiros come�ou ap�s ano de estreia do Move (foto: Paulo Filgueiras/EM/D.A PRESS)
Al�m da influ�ncia direta dos aplicativos de transporte e da crise econ�mica que geram fuga de passageiros do transporte p�blico por �nibus de Belo Horizonte, o Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros (Setra-BH) destaca outra quest�o que tamb�m influencia nesse cen�rio. Para a entidade, a perda de atratividade do sistema em meio ao tr�nsito cada vez mais congestionado tamb�m � determinante na redu��o de 17% na quantidade de pessoas que usam os coletivos da cidade nos �ltimos cinco anos. Pressionado pela frota que superou a barreira dos 2 milh�es de ve�culos na capital, o tr�fego imp�e cada vez mais aos coletivos o gargalo da falta de espa�o. E, para as empresas, BH ainda carece de mais �reas de tr�fego exclusivo para coletivos. Esse tipo de investimento, inclusive, entrou nas negocia��es que permitiram o aumento da tarifa de �nibus de R$ 4,05 para R$ 4,50 depois de auditoria nas contas do sistema.
Atualmente, Belo Horizonte conta com corredores com pistas segregadas por barreiras f�sicas para circula��o exclusiva do Move. Essas pistas somam 21 quil�metros e est�o nas avenidas Pedro I, Ant�nio Carlos, Cristiano Machado, Santos Dumont e Paran�, al�m do Complexo da Lagoinha. Al�m delas, existem 45 quil�metros de faixas destinadas � circula��o dos coletivos, delimitadas apenas por pintura no asfalto, sem barreiras que impe�am a aproxima��o de outros ve�culos. Segundo o Setra-BH, entre as reclama��es relacionadas aos coletivos recebidas pelo �rg�o, o motivo que mais se destaca � o tempo de viagem entre os destinos – superando, inclusive, pre�o da tarifa e condi��es dos ve�culos.
O presidente do Setra-BH, Joel Paschoalin, avalia que a implanta��o do Move trouxe maior rapidez nos embarques e desembarques, al�m de pontualidade e redu��o nos tempos de viagens. Mas, segundo ele, � necess�rio melhorar a mobilidade nas outras regi�es da cidade, a partir da amplia��o dos corredores e faixas exclusivas para �nibus, livres de congestionamento. A expectativa, segundo Paschoalin, � de uma ades�o maior por parte da popula��o, que passaria a dar prefer�ncia ao transporte coletivo, com essa amplia��o.
Por�m, � preciso destacar que o in�cio dos cinco anos de quedas consecutivas no total de passageiros no sistema de BH coincide exatamente com a estreia do sistema Move, em 2014, e do atual sistema de faixas e pistas exclusivas. E que, apesar de o sindicato destacar que a principal reclama��o dos usu�rios diz respeito ao tempo de viagem, muita gente continua a se queixar da superlota��o dos coletivos.
Uma dessas milhares de pessoas � a recepcionista Kely Cristina Oliveira, de 26 anos, que vai todos os dias do Bairro Rio Branco, na Regi�o de Venda Nova, para a Regi�o Centro-Sul. Ela conta que � comum esperar at� tr�s �nibus lotados passarem antes que consiga embarcar, principalmente no retorno do trabalho para casa. “Acho que por volta das 18h tinha que haver mais �nibus, porque � muita gente. Eu espero �nibus lotados passarem para depois conseguir entrar, e isso n�o � uma coisa de um dia s�: � todo dia”, afirma ela.
J� o contador Flayterp Andrade, de 31, que mora na Regi�o Oeste da capital e trabalha na Leste, destaca que n�o se incomodaria tanto com a lota��o se os �nibus tivessem fluxo mais livre e se o sistema n�o sofresse tanto o impacto do tr�fego pesado em meio aos carros, motos e caminh�es. “O que substitui o carro pr�prio � a possibilidade de chegar r�pido ao destino. O que me deixa mais impaciente e reduz a qualidade do deslocamento � ficar parado no tr�nsito”, reclama.
FREIO NA QUEDA A BHTrans avalia que a gradativa queda no n�mero de usu�rios do transporte coletivo, entre 2007 e 2018, foi freada em Belo Horizonte justamente em 2014, quando foi criado o sistema Move. A empresa destaca que essa tend�ncia de redu��o nos passageiros de �nibus � registrada em todo o pa�s, e que o investimento no complexo e nas faixas e corredores exclusivos para �nibus na capital mineira tem exatamente o objetivo de fre�-la.
Para a gestora do tr�nsito e transporte no munic�pio, influenciaram tamb�m na queda do n�mero de passageiros a facilidade para aquisi��o de ve�culo pr�prio, inclusive motocicletas, al�m da crise econ�mica e do fen�meno dos aplicativos.
Sobre os espa�os exclusivos para os �nibus, a BHTrans informou que o munic�pio est� concluindo licita��o para contratar estudos t�cnicos e projetos executivos de prioridade para o transporte coletivo no sistema vi�rio da capital.
SIU colocou coletivos ao alcance do celular
Se a tecnologia dos aplicativos representa uma dor de cabe�a a mais para as empresas tradicionais de transporte de passageiros, tamb�m foi usada para trazer um benef�cio ao sistema p�blico de deslocamento por �nibus, embora n�o se estenda a 100% da rede que atende � capital mineira. Enquanto o aplicativo SIU Mobile mudou a configura��o da espera de coletivos em pontos e esta��es a partir da informa��o sobre quando os �nibus v�o passar, essa funcionalidade n�o est� integralmente presente nas linhas metropolitanas, n�o chegou ao metr� e tamb�m n�o est� nos micro-�nibus do transporte suplementar da capital.
A entrada do SIU Mobile mudou radicalmente a l�gica de acesso aos �nibus da cidade. Antes do programa, passageiros iam para os pontos sem saber por quanto tempo deveriam esperar. Em alguns locais, nem mesmo a informa��o sobre quais linhas passavam no endere�o era disponibilizada. Com o funcionamento do programa, 754 pontos da cidade contam com pain�is informando quanto tempo falta para a chegada de cada coletivo. Mas a principal inova��o est� no celular, que traz a mesma informa��o para todos os cerca de 9 mil pontos da cidade, permite tra�ar rotas com transporte coletivo e informa itiner�rio e hor�rios de todas as linhas de BH.
Para o contador Flayterp Andrade, de 31 anos, que mora no Bairro Maraj�, Oeste de BH, e vai todos os dias de �nibus para o trabalho no Bairro Floresta, Leste da cidade, o app � de grande utilidade, porque sinaliza em tempo real onde est� o coletivo. “Permite organizar melhor o tempo e evita pontos de �nibus lotados de pessoas fora dos hor�rios”, afirma. Ele costuma usar o metr� muito pouco, mas diz que seria muito �til se a mesma tecnologia estivesse presente no sistema. “Nas esta��es nunca sabemos quando o trem vai passar”, afirma.
Segundo o Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros Metropolitano (Sintram), j� est� dispon�vel para download gratuito o aplicativo �timo App, que permite ao usu�rio verificar em quanto tempo os �nibus do sistema que serve � Grande BH passar�o em cada ponto. O aplicativo, que por enquanto funciona em fase de testes, ser� lan�ado oficialmente em breve. Consultada sobre o assunto, a Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU), respons�vel pelo metr�, n�o se pronunciou.
S�rie de reportagens
Desde domingo o Estado de Minas publica a s�rie "Para onde vamos", que discute o impacto da tecnologia dos aplicativos de transporte para a mobilidade de Belo Horizonte e quais s�o as perspectivas da cidade para o futuro. No primeiro dia, a s�rie contextualizou impactos positivos e negativos das mudan�as e trouxe o desafio dos patinetes el�tricos. Na segunda-feira, o assunto foi a consolida��o do transporte de passageiros por meio dos apps e tamb�m os desafios relacionados � seguran�a trazidos pelas novas ferramentas nos celulares. Na ter�a-feira, a reportagem abordou a populariza��o das motocicletas a servi�o de entregas por aplicativos e o que esse cen�rio gerou para a seguran�a do tr�nsito. Na quarta-feira, foi publicada uma discuss�o sobre as rela��es de trabalho trazidas pelos aplicativos e as repercuss�es para a economia. A s�rie termina neste s�bado, com as mudan�as dos �ltimos cinco anos para os taxistas.