
Para o fil�sofo, escritor, palestrante e professor universit�rio Mario Sergio Cortella, o isolamento social tem trazido � tona mem�rias da juventude. No in�cio dos anos 70, aos 18 anos de idade e em busca de uma experi�ncia religiosa mais intensa, o ent�o estudante de filosofia decidiu viver tr�s anos enclausurado em um convento da Ordem dos Carmelitas Descal�os.
Embora tenha decidido n�o seguir com a carreira religiosa ao descobrir-se apaixonado pela doc�ncia, afirma que a experi�ncia reverbera at� hoje, principalmente no recolhimento da pandemia. "Afora as quatro horas no per�odo da manh� em que eu ficava na universidade de segunda a s�bado, no restante do dia eu tinha companhia por umas duas horas apenas", relembra.Da janela de sua cela, como era chamado seu quarto no convento, via-se o pico do Jaragu�, recorda o professor e autor de best-sellers, que afirma jamais ter previsto que o aprendizado daqueles dias voltaria a ser t�o �til em 2020, aos 66 anos.
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Trabalhando em esquema de home office e na divulga��o do livro A diversidade: Aprendendo a Ser Humano, em que aborda o preconceito racial, o escritor e a mulher, Cl�udia, t�m se revezado tamb�m nas tarefas dom�sticas, �s quais o jovem Cortella se dedicava com afinco nos seus dias de convento.
"No convento todos n�s t�nhamos que trabalhar o tempo todo", diz o professor, que era respons�vel pela cria��o de coelhos e pelo cultivo dos pinheiros na comunidade.
Lidando "sem sufoco" com o isolamento atual, sua maior preocupa��o no momento � justamente com o "fosso" existente entre as diferentes condi��es em que muitos brasileiros est�o enfrentando a pandemia.
"Se n�s n�o dermos conta, enquanto na��o, do cuidado com aqueles que s�o mais vitimados pela aus�ncia de recursos financeiros, de emprego decente, de alimenta��o, de uma moradia saud�vel, se n�s n�o cuidarmos disso desde agora haver� um aprofundamento desses fossos", alerta o acad�mico, que defende que um dos pap�is da filosofia � iluminar o caminho sobre os perigos em tempos de ang�stia como o atual.
Adepto do "otimismo cr�tico", como ele define, Cortella diz que a pandemia levanta questionamentos �ticos a todos os brasileiros sobre como foi poss�vel que a situa��o chegasse a tal ponto.
"A quest�o n�o � s� eu chegar ao final desse t�nel escuro que � a pandemia, e ali respirar aliviado porque eu o atravessei. � como � que eu chegarei? Se eu chegarei com dec�ncia, se eu chegarei com a ideia de que mereci mesmo atravessar e l� chegar, ou se chegarei envergonhado", afirma.
"Para que eu n�o tenha nenhuma vergonha de deixar de fazer o que eu deveria ter feito, de ter esquecido que eu poderia ter feito, e mais do que tudo, aquilo que � parte de uma solidariedade que neste momento n�o pode de modo algum ser s� ret�rica, 'estamos juntos!', 'estou com voc�!'. Como � que � isso no cotidiano?", questiona.
"O descuido vem da onde? Ele n�o vem s� daquilo que se faz, mas tamb�m daquilo que n�o se faz. Vem tamb�m n�o s� daquilo que se diz, mas daquilo que se omite. O descuido vem quando h� aus�ncia de compaix�o, aus�ncia de transpar�ncia, e n�s podemos ter isso em v�rias na��es e tamb�m na nossa encontramos isso."
Cortella diz, no entanto, acreditar que prevalecer� a capacidade humana de reinventar novos modos de supera��o.
"Persiste em mim a possibilidade de imaginar algo que eu sempre lembro e que os nosso av�s, bisav�s, trisav�s, diziam sempre: n�o h� bem que sempre dure, nem mal que nunca se acabe."
Leia os principais trechos da entrevista, concedida por meio de teleconfer�ncia:
BBC News Brasil - Eu sei que o senhor � um otimista nato. Na quarentena o senhor continua otimista? Como tem sido esse isolamento para o senhor?
Mario Sergio Cortella - S�o dois momentos e dois movimentos que n�o s�o id�nticos. Para mim n�o � t�o complexo o isolamento, por v�rias raz�es. Primeiro, eu estou habituado a um trabalho, uma atividade que, embora em v�rios momentos seja em meio ao p�blico, a palestras, a viagens, � conviv�ncia, a hot�is, cidades, etc, ainda assim, uma parte da minha atividade � mais quieta, na medida em que eu tamb�m escrevo, tamb�m fa�o atividades que me colocam em um certo sil�ncio.
Do ponto de vista material, das circunst�ncias, eu n�o tenho e n�o tive at� o momento nenhum obst�culo intranspon�vel, em rela��o �s minhas provis�es, �s minhas capacidades, minhas necessidades. Cl�udia, com quem sou casado e eu, em todo esse tempo, partilhamos nossas tarefas e cada um de n�s continua atuando, naquilo que � poss�vel, pelo trabalho a partir de casa.
H�, no entanto, uma agonia muito grande na medida em que a gente, mesmo estando protegido, sabe o n�mero de pessoas que, em uma atividade essencial, que n�o � o caso da minha, t�m que se colocar em uma vulnerabilidade maior.
Por isso eu n�o passo por nenhum tipo de sufoco neste momento, exceto o sufoco interior relativo � preocupa��o com a vida em geral, com outras pessoa � minha volta, n�o s� a fam�lia, o ciclo de amigos, mas todo o conjunto do modo da vida humana que sofreu ali uma altera��o.
Mas como voc� lembrava, eu tenho sim um otimismo cr�tico, n�o � um otimismo ing�nuo em que eu acho que tudo ficar� bem, que basta n�s aguardarmos e vir�. Mas eu acho que n�s humanos e humanas somos capazes, na nossa trajet�ria, na reinven��o de muitos modos de supera��o.
Esse [momento] � muito complexo, instigou a necessidade de maior humildade da nossa parte, especialmente quanto � nossa suposi��o equivocada de que �ramos absolutamente invenc�veis. Mas tamb�m nos gerou outros modos de contato e rela��o.
Por isso, persiste em mim a ideia da esperan�a ativa, persiste em mim a possibilidade de imaginar algo que eu sempre lembro e que os nosso av�s, bisav�s, trisav�s, diziam sempre: n�o h� bem que sempre dure, nem mal que nunca se acabe.
Eu n�o supus, aos 66 anos de idade que eu tenho, que eu encontraria essa condi��o. E fico imaginando o que dir�o meus quatro netos daqui a 30, 40 anos, o que que eles viveram. O que que isso significou, qual foi o impacto na vida deles. Isto �, como � que ser� relatado o passado em um futuro daqui a algumas d�cadas.
BBC News Brasil - O senhor, quando morava em Londrina, pertencia � ordem cat�lica dos Carmelitas Descal�os, onde o senhor viveu um per�odo enclausurado.
Cortella - �, mas n�o foi em Londrina (PR). Eu nasci em Londrina, meus pais paulistas estavam ali no norte do Paran�. De l� sa� para a cidade de S�o Paulo, onde moro at� hoje, no final do ano de 1967.
E aqui eu estudei, terminei o que seria o antigo gin�sio. E quando eu entrei na universidade, quando terminei o primeiro ano de filosofia, eu tinha 18 anos. Decidi que eu queria fazer uma experi�ncia religiosa mais intensa.
A religiosidade � uma heran�a familiar, minha fam�lia tem uma tradi��o familiar cat�lica, minha m�e — hoje com 91 anos de idade, e moramos perto, a um quarteir�o e meio — tem forma��o cat�lica.
Eu sempre tive a perspectiva de que poderia, na minha profiss�o, mais adiante, tamb�m ter a escolha da atividade da prega��o, do trabalho mission�rio, que � algo que eu tinha desde Londrina, como uma condi��o mais direta.
E ao fazer 18 anos e entrar na universidade eu decidi que ia entrar em uma ordem religiosa na qual pudesse viver uma experi�ncia de clausura, isto �, enquanto estava na universidade, que eu pudesse ficar fechado numa clausura aprendendo coisas, lidando com a vida, olhando mais para o ch�o e n�o apenas para o alto das coisas e, portanto, fiquei tr�s anos em um convento da Ordem Carmelitana Descal�a, na Rodovia Anhanguera, no km 18,5.
Da janela da minha "cela", do meu quarto, dava para ver o pico do Jaragu� inteirinho. N�o existe mais esse convento, aquele espa�o do convento foi mais tarde vendido pela ordem, que foi para outro lugar, e at� hoje ele abriga um complexo local de produ��o de not�cia, de informa��o, de televis�o, � sede de uma das TVs que n�s temos no Brasil (nota do editor: s�o os est�dios do SBT).
Esses pinheiros, alguns que eu ajudei a plantar e que eram pequenas mudas, olha s�, 45 anos depois, esses pinheiros hoje s�o �rvores imensas. E quando eu vou � emissora de TV e passo pelo estacionamento eu olho os pinheiros dos dois lados, que eu ajudei a fazer.
Entendi que minha rota de vida n�o se daria naquela dire��o, que eu gostava mesmo da doc�ncia porque num convento e numa atividade mission�ria que acontecia nos intervalos da universidade, eu gostava muito de atividades de conviv�ncia em regi�es distantes no Brasil. Estive na Amaz�nia algumas vezes, em comunidades de na��es ind�genas, e outras em comunidades mais distantes.

BBC News Brasil - A minha curiosidade �: agora, nessa experi�ncia de isolamento, isso despertou mem�rias do senhor dessa �poca? Tem aspectos que o senhor compara?
Cortella - Claro, em v�rios momentos. Porque em uma ordem religiosa, especialmente em uma ordem carmelitana, embora a gente n�o fique isolado de modo cont�nuo, existe um isolamento program�tico, isto �, momentos em que a solid�o � necess�ria para a medita��o, para a produ��o, para o estudo.
Digamos que, afora as quatro horas que eu passava na universidade toda manh�, no restante do dia eu tinha companhia por apenas duas horas. Tamb�m no restante eram momentos de quietude.
At� quando se ia para a capela, naquilo que se chama no mundo religioso cat�lico das ordens de momento do of�cio, se fazia ali um momento de sil�ncio, de reclus�o. Por isso eu reavivei v�rias situa��es desse tipo — embora hoje eu n�o possa dizer que seja cat�lico, porque seria ofensivo dizer que sou um praticante de uma religi�o dado que n�o frequento igrejas, n�o vou a cultos, etc —, a ideia da forma mais isolada de ser, o sil�ncio, dado que o convento ficava afastado da beirada da estrada, havia um sil�ncio imenso naquele lugar. E tamb�m daquilo que � o trabalho dom�stico, digamos.
Durante boa parte da minha vida eu contei com aux�lio de pessoas em rela��o a alimenta��o, roupa, faxina, limpeza, por conta de ter uma atividade externa. Mas no convento, n�o. No convento, todos n�s t�nhamos que trabalhar o tempo todo. Um dos lemas cl�ssicos que o cristianismo coloca a partir de uma carta de um dos ap�stolos que n�o conheceu Jesus, mas � o principal te�logo na origem crist�, que � Paulo, em uma das cartas de Paulo, ele diz: quem n�o trabalha n�o come.
E eu tinha duas atividades: afora ter que cuidar das minhas coisas, afora o fato de que n�s n�o t�nhamos propriedade privada no convento, isto �, tudo era comunit�rio. At� financeiramente. Se eu recebesse algum presente, algum dinheiro, alguma contribui��o, era colocada em uma caixinha, literalmente, uma caixa de sapato. E ali, quem precisava pegava, e quem tinha, colocava.
Esse modo de vida comunit�ria foi facilitador, mas eu cuidava de duas coisas: a mim cabia cuidar de algo que hoje eu acho um pouco estranho, eu ajudava a cuidar de coelhos, que compunham parte da alimenta��o do convento.
E a segunda: eu cuidava dos pinheiros, isto �, da �rea imensa de pinheiros que se tinha, e como sabem muitas pessoas, ele pega fogo com facilidade. Porque ele tem uma resina. Ent�o, para manter toda a parte de baixo sempre limpa.
BBC News Brasil - Falando um pouco agora de outro aspecto da pandemia sobre o qual o senhor fala muito, que � a cidadania. Essa pandemia evidenciou que muitos brasileiros n�o t�m esse direito � cidadania, a direitos b�sicos, e quest�es de desigualdade com as quais n�s convivemos na sociedade viraram uma quest�o de vida ou morte. Como essa conviv�ncia de n�s brasileiros com tantas pessoas sem cidadania nos afeta?
Cortella - Uma das quest�es mais s�rias deste momento � n�s trazermos � mente algumas perguntas decisivas, especialmente no campo �tico. A pandemia evidenciou desigualdades, fissuras, fossos. Ela n�o os criou ainda, mas vai cri�-los.
Se n�s n�o dermos conta, enquanto na��o, do cuidado com aqueles que s�o mais vitimados pela aus�ncia de recursos financeiros, de emprego decente, de alimenta��o, de uma moradia saud�vel, se n�s n�o cuidarmos disso desde agora, haver� um aprofundamento desses fossos. Esses fossos existiam, mas agora ganharam uma nitidez imensa. Eles est�o � nossa volta como parte daquilo que no jornalismo se chama de pauta. Uma pauta cotidiana, que est� � mostra.
H� duas atitudes poss�veis: uma � fechar os olhos e imaginar que n�o est� acontecendo, o que n�o s� � tolo, como de nada adiantar� em rela��o a levar a uma solu��o. A segunda forma � fazer-se uma pergunta que �: mas o que foi que eu fiz? Porque uma tend�ncia nossa nessas situa��es � dizer: o que foi que eu fiz? Porque a resposta � f�cil (...): eu n�o fiz nada para isso (pandemia) acontecer.
Mas a pergunta tem que ser outra: o que foi que eu n�o fiz? O que que eu deixei de fazer, eu Cortella, como uma pessoa que vive nesta na��o, para que coisas como essas que agora est�o sendo evidenciadas chegassem em um n�vel que ganham uma caracter�stica aterrorizante para quem nessa situa��o j� est�?
Segundo: se aquilo que eu deixei de fazer � algo que eu n�o posso refazer, porque aquele tempo n�o existe, o que eu posso fazer desde agora? � necess�rio que a gente olhe sempre com uma perspectiva: face aquilo que temos, ou a pessoa diz 'o que eu posso fazer', de modo entregue, desanimado, at� acovardado e, eventualmente, c�mplice. Ou coloca um ponto de interroga��o e diz 'o que eu posso fazer?' E sai em busca de uma resposta e vai busc�-la.
Ser� vergonhoso, e eu venho insistindo nesse tema, todas as vezes que algu�m toca nesse assunto como voc� agora fez. A quest�o n�o � s� eu chegar ao final desse t�nel escuro que � a pandemia, e ali respirar aliviado porque eu o atravessei. �: como � que eu chegarei? Se eu chegarei com dec�ncia, se eu chegarei com a ideia de que mereci mesmo atravessar e l� chegar, ou se chegarei envergonhado.
� preciso tamb�m que eu me sinta mais respeitoso comigo e olhe tudo o que houve para que eu n�o tenha nenhuma vergonha de deixar de fazer o que eu deveria ter feito, de ter esquecido que eu poderia ter feito, e mais do que tudo, aquilo que � parte de uma solidariedade que neste momento n�o pode de modo algum ser s� ret�rica, "estamos juntos!", "estou com voc�!". Como � que � isso no cotidiano?
Ora, nosso pa�s passar� por momentos mais dif�ceis do que estamos vivendo agora no ponto da capacidade de acesso a bens, a meios, ao provimento da vida. O mundo passar�, mas n�s tamb�m. (...) Por isso volto e concluo: O que foi que eu n�o fiz? E a� pensar no que eu devo fazer.
BBC News Brasil - A pandemia, al�m de mexer com a nossa rotina, nos traz novos questionamentos �ticos, sobre como convivemos com isso at� agora. E quando se fala do poder p�blico? Em muitos pa�ses, o governante teve esse papel de unir as pessoas, dar esse sentimento de na��o. Aqui no Brasil nosso presidente tem sido mal avaliado na condu��o da pandemia e acusado de demonstrar pouca solidariedade. Isso pode ser considerada uma postura anti�tica neste momento?
Cortella - Duas coisas. Primeiro, Mill�r Fernandes lembrava sempre, � verdade, que um povo que precisa de salvador n�o merece ser salvo. Afinal de contas, n�s temos que negar o que em larga raz�o teve Lima Barreto quando disse que no Brasil n�s n�o temos povo, n�s temos p�blico.
H� pouco menos de 100 anos, ele dizia, com toda raz�o, e porque � parte da nossa trajet�ria a postura de espectadores daquilo que est� acontecendo � nossa volta. � algo que agrava a circunst�ncia, mas n�o � uma fatalidade que nos leve a ficarmos sem a��o.
Neste momento eu acho extremamente desconcertante o modo como a gest�o do Executivo federal vem fazendo a condu��o daquilo que � a atual crise profunda que o pa�s vive. N�s temos exemplos cotidianos de colis�es internas.
Voltando ao teu ponto de partida: ser� que � anti�tico? Se a gente entender a �tica como sendo o cuidado com a vida coletiva. Todas as vezes que h� um descuido isso acaba se tornando anti�tico. E o descuido vem da onde? Ele n�o vem s� daquilo que se faz, mas tamb�m daquilo que n�o se faz.
Vem n�o s� daquilo que se diz, mas daquilo que se omite. O descuido vem quando h� aus�ncia de compaix�o, aus�ncia de transpar�ncia, e n�s podemos ter isso em v�rias na��es e tamb�m na nossa encontramos isso.
Ali�s, uma das coisas que nos faz falta hoje s�o lideran�as comprometidas com a preserva��o da integridade das vidas do pa�s, de modo que n�o se resvale apenas para a disputa no campo da ideologia ou da pol�tica.
BBC News Brasil - H� um clima de conflito entre os poderes, e se discute se h� riscos para a democracia. Isso preocupa o senhor?
Cortella - Eu tenho um livro com o Renato Janine Ribeiro que eu gosto muito do t�tulo dele, do conte�do tamb�m: Pol�tica para n�o ser idiota foi lan�ado h� muitos anos e � um di�logo entre n�s. E n�s ali lembramos que a palavra idiota significava uma pessoa que ficava olhando s� para o pr�prio umbigo, que n�o era capaz de tomar conta tamb�m da vida da comunidade. E pol�tico era aquele que ajudava a cuidar da comunidade.
Sendo eu um cidad�o, eu n�o sou um pol�tico institucional, eu n�o sou um pol�tico partidarizado, n�o sou um pol�tico formalizado como atividade profissional. Mas eu sou um cidad�o, por isso eu sou algu�m que tem que se interessar pela vida da comunidade.
Eu nasci em 1954. A primeira vez que eu votei para a Presid�ncia da Rep�blica foi em 1989, 100 anos ap�s a proclama��o da Rep�blica.
E eu j� era algu�m que estava como adulto, j� era pai. Isso significa que essa castra��o de alguns dos mecanismos do cidad�o em rela��o ao voto (ocorreu) durante um per�odo. Havia um movimento de censura, havia uma atividade em que se tinha uma repress�o a v�rias manifesta��es, e o nosso pa�s ultrapassou essa fase.
Nosso tempo republicano n�o � t�o extenso, ele tem 131 anos. Mas dentro dessa Rep�blica, desde 1989, n�s ainda temos um per�odo muito restrito de democracia no sentido mais amplo.
N�s tivemos durante o per�odo republicano governos em que o voto era censit�rio, em que se votava a partir do tanto de propriedade que se tinha. A proibi��o do voto ao analfabeto at� 1988 na nossa Constitui��o tirou do circuito da possibilidade de escolha milh�es e milh�es de brasileiros.
Nossa democracia � muito recente. Pessoas com mais idade como eu entendem mais fortemente qual � o impacto que traz a aus�ncia da democracia na possibilidade de liberdade de a��o, de pensamento.
Quando n�s temos hoje manifesta��es quase que cotidianas de algumas pessoas que se dizem avessas � democracia, embora na democracia se possa isso dizer, a grande diferen�a entre uma democracia e uma ditadura, que alguns reivindicam, � que em uma democracia eu posso reivindicar a ditadura, mas na ditadura eu n�o posso reivindicar a democracia. Essa � uma diferen�a decisiva.
Por outro lado, n�s brasileiros temos, eu digo vez ou outra, um afeto um pouco mais limitado pela nossa democracia. A gente n�o a afaga com tanta tranquilidade.
Uma democracia � aquela que fez com que os conflitos sejam coordenados, para que a gente n�o chegue ao confronto. O fato de algu�m pensar diferente de mim na pol�tica n�o significa que a pessoa esteja equivocada. Mas n�o � porque ela pensa como eu que s� por isso ela est� certa.
N�s podemos ter pensamentos diferentes, eles podem ser at� divergentes, est�o em campos separados, mas isso n�o coloca em mim o desejo de fazer com que essa pessoa seja enclausurada, detida, descartada, a menos que ela cometa algo que � considerado absolutamente criminoso, inconstitucional, uma brutalidade na nossa sociedade.
Por isso sim, � muito ruim n�s j� termos uma pandemia que � massiva e enquanto isso temos tamb�m que lidar com cont�nuas amea�as � nossa estabilidade democr�tica. Afinal, se algu�m tem algum tipo de inten��o em rela��o ao debate sobre a nossa democracia, esse n�o � o momento mais adequado.
Porque at� quem defende a presen�a de uma ditadura, por exemplo, essa ditadura o que faria em rela��o � pandemia no nosso pa�s? Ofereceria o qu�? S�o as institui��es democr�ticas que est�o atrapalhando o combate ao v�rus? O contr�rio.
Todas as vezes em que h� um abalo nas institui��es democr�ticas se retarda a condi��o de combate ao v�rus.
Seria uma contribui��o patri�tica t�o grande, n�o que a gente deixasse as nossas diferen�as, porque elas est�o abaixo ou acima de n�s, mas que elas fossem colocadas lateralmente nesse momento para que a gente pudesse lidar com aquilo que � decisivo.
BBC News Brasil - Neste momento em que estamos vivendo tantas crises ao mesmo tempo, a filosofia pode ajudar? Que pensamentos ela oferece para momentos de ang�stia como o atual?
Cortella - A filosofia n�o tem a finalidade de serenar. Mais do que isso, a tarefa da filosofia � levantar indaga��es sobre o sentido das coisas, por que fazemos o que fazemos.
BBC News Brasil - Me refiro a esse sentido, porque as pessoas est�o se questionando mais.
Cortella - Isso. A filosofia n�o � um conhecimento pr�tico no sentido operacional t�cnico. Ela � uma possibilidade de pensar o pr�prio pensamento, de pensar o sentido como significado e dire��o das nossas a��es. Nessa hora, auxilia.
N�o que ela v� fazer com que voc� passe a ter mais trabalho, que a economia se reative. Mas quando a gente mergulha em alguns pensadores, algumas convic��es, ela retira de n�s algumas de nossas certezas imobilizadas, e tamb�m nos coloca em um campo de criatividade.
O pensamento filos�fico, que � met�dico, estruturado, aumenta nossa condi��o de repert�rio para nossa criatividade de enfrentamento. Embora n�o seja consoladora, a filosofia ainda assim contribui para que a gente consiga entender que parte de aquilo que conosco est� n�o decorre de uma fatalidade, mas de uma circunst�ncia, que talvez n�s consigamos aprender mais com aquilo que estamos vivendo do que os danos que isso poder� trazer para quem passar pela pandemia sem qualquer tipo de cicatriz mais densa.
Pessoas ligadas a essa �rea, tamb�m da filosofia, t�m sido muito convidadas para participarem de conversas, de entrevistas, n�o porque a gente consiga dizer '� aqui que � a dire��o', mas porque a gente consegue, por vez ou outra, lembrar a frase de um fil�sofo mineiro que j� faleceu, o Neidson Rodrigues, 'a tarefa da filosofia � como a do farol no mar'. Aquele farol na ilha. A tarefa do farol n�o � dizer para onde voc� vai, � alertar em rela��o aos perigos.
BBC News Brasil - Duas coisas que mudaram radicalmente agora, entre tantas, foi a educa��o. Muitos pais de repente se transformaram em professores e numa conviv�ncia com os filhos totalmente diferente. E outro p�blico que me vem � cabe�a � o jovem, que ia come�ar agora seu plano, sua educa��o, fazer o Enem, fazer a faculdade. O senhor como educador experimentad�ssimo, o que diria para esses dois p�blicos?
Cortella - Fico feliz que a gente conclua a nossa conversa com essa quest�o porque eu gosto muito de educa��o escolar tamb�m. O que a pandemia nesse novo modo nos ensina � que esta atividade que hoje � feita em casa n�o � substitutiva �quilo que a escola no dia a dia oferece. A escola � uma experi�ncia sociocultural insubstitu�vel.
Ela n�o � s� um local de aprendizado de conhecimentos e informa��es. Ela � de conviv�ncia, de aprendizado de valores, de cidadania, solidariedade. Portanto, hoje esse modo emergencial em que a escolariza��o est� sendo feita � complementar, ela n�o � suplementar.
Quando n�s cessarmos este momento, claro que a pr�pria escola ter� aprendido v�rias coisas. Uma delas � que, para recuperar uma parte do tempo que teve que ser adiado, alguns conte�dos ter�o de ser deixados de lado para que se compense os patamares de aprendizado e as refer�ncias.
E a� se notar� que, ao fazer a escolha de quais conte�dos podem ser deixados neste caminho, talvez eles n�o fossem necess�rios na rota que estava sendo trilhada. E esse � um aprendizado, que a gente chama de sele��o de conte�do ou organiza��o curricular, que � algo que nos ensinar� bastante.
Eu tenho visto colegas meus educadores de educa��o b�sica, e alguns t�m me dito isso nas escritas que fazem, nas redes sociais: nem n�s somos t�o ruins, dizem eles, como capacidade de aprender o mundo tecnol�gico, que a gente achou que n�o conseguiria, nem parte das crian�as e jovens � t�o preparada como suporiam.
E por �ltimo, no sentido literal da express�o, o jovem que se preparava para uma etapa sabe hoje que uma circunst�ncia, sendo ela de fato provis�ria, e se as autoridades p�blicas souberem lidar com esse momento, ela n�o alterar� tanto esse caminho.
Quando eu tinha 17 anos e ia para a universidade, 17, 18, 20 anos era um ter�o da vida m�dia, porque (vivia-se), em m�dia, 60 anos.
Ora, um menino ou uma menina de 16, 17 anos hoje est� em um quinto da vida dele. (...) Por isso, n�o � uma quest�o de impedir. � adiar uma circunst�ncia. (Isso) se as autoridades p�blicas forem capazes de usar a racionalidade pedag�gica para n�o produzir um assassinato das condi��es educacionais escolares, que s�o necess�rias.
Portanto, talvez n�s nos lembremos que esta circunst�ncia � s� um momento transit�rio, que ter� efeitos mais adiante, mas que a educa��o escolar, especialmente, vem aprendendo e vem ensinando bastante.
Nunca tantas pessoas entenderam que a escola n�o � s� um lugar para aprender os componentes curriculares, matem�tica, l�ngua estrangeira moderna, biologia, f�sica.
BBC News Brasil - E a valorizar os professores, n�?
Cortella - Quem sabe. Talvez, talvez. Veremos. � uma das coisas que se pode aprender e entender. Por isso, voltando ao ponto de partida, quando em 1973 eu entrei na universidade para fazer filosofia e depois, na sequ�ncia, no convento da ordem carmelitana descal�a, jamais eu poderia imaginar que n�s viver�amos uma situa��o como esta.
Mas tamb�m jamais achei, desde aquela �poca como tamb�m n�o acho agora, que n�o houvesse alternativa, que n�o houvesse sa�da. Ela � dif�cil, ela � complexa, mas ela n�o � imposs�vel.
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