
A discuss�o em torno da tese da imunidade de rebanho por contamina��o em vez de por vacina��o, e se essa tese foi ou n�o colocada em pr�tica no Brasil durante a pandemia - potencialmente contribuindo para as mais de 500 mil mortes por COVID-19 no pa�s -, pode ganhar um novo cap�tulo jur�dico, embora longo e de dif�cil resolu��o.
Senadores da CPI da COVID t�m discutido a possibilidade de denunciar o presidente Jair Bolsonaro ao Tribunal Penal Internacional (TPI), corte em Haia, na Holanda, encarregada de julgar indiv�duos acusados de quatro tipos de crimes graves: crimes contra a humanidade, genoc�dio, crimes de guerra e crimes de agress�o — em que pol�ticos e militares podem ser responsabilizados por invas�es ou ataques de grandes propor��es.
A discuss�o de Bolsonaro se tornar alvo do TPI por conta da gest�o da pandemia j� ocorria no ano passado , mas volta a ganhar corpo com os depoimentos da CPI. O argumento de parte dos senadores � de que j� h� ind�cios de que teria havido intencionalidade da administra��o federal em "infectar" deliberadamente a popula��o na busca pela imunidade de rebanho - algo negado oficialmente pelo governo e seus defensores.
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil explicam, no entanto, que um caso do tipo teria grandes obst�culos para avan�ar no TPI - como, por exemplo, comprovar que houve dolo por parte do presidente brasileiro (ou seja, inten��o de infectar deliberadamente a popula��o) at� explicar por que a Justi�a brasileira n�o daria conta de lidar com a quest�o ( entenda abaixo ).
Al�m disso, a maioria das den�ncias que chegam ao TPI costumam n�o passar pelo crivo rigoroso da Procuradoria do tribunal, e um dos motivos disso � que a corte internacional n�o tem como atribui��o substituir os sistemas judiciais nacionais dos pa�ses.
Consultada pela BBC News Brasil, a assessoria do senador Omar Aziz (PSD-AM), presidente da CPI da COVID, afirmou que at� o momento n�o foi formalizada nenhuma inten��o de entregar o relat�rio final da CPI ao tribunal internacional - trata-se apenas de uma possibilidade discutida por senadores da comiss�o.
O senador Humberto Costa (PT-PE), membro da CPI, afirmou na ter�a-feira (22/6) que � muito cedo para pensar em levar o caso a Haia, mas n�o descartou que a medida seja adotada caso se conclua nas investiga��es da CPI que houve "crime contra a humanidade" por parte do presidente.
"Ainda � muito cedo para essa especula��o", disse Costa � BBC News Brasil, embora ele ao mesmo tempo opine que, a partir dos depoimentos ouvidos at� agora, "j� existem elementos suficientes para colocar que o governo adotou isso [imunidade de rebanho] como estrat�gia. A ideia era o maior n�mero poss�vel de pessoas se contaminarem na expectativa de com isso gerar uma imunidade de uma parcela delas e o v�rus parar de circular".
Jair Bolsonaro j� � alvo de cinco representa��es criminais no TPI, e uma nova queixa relacionada � gest�o da pandemia foi apresentada por profissionais de sa�de em julho de 2020 .
Imunidade de rebanho
Do ponto de vista cient�fico, a imunidade de rebanho � obtida por meio de vacina��o, criando-se uma prote��o coletiva contra determinada doen�a. Em contrapartida, a ideia de imunidade de rebanho por contamina��o n�o tem respaldo cient�fico e � algo que, no caso da COVID-19, potencialmente aumenta o n�mero de adoecimentos e mortes e d� oportunidade para o v�rus se proliferar descontroladamente e, por consequ�ncia, desenvolver novas variantes mais perigosas.

Embora o Minist�rio da Sa�de nunca tenha oficialmente adotado a estrat�gia de imunidade de rebanho sem vacinas, Bolsonaro afirmou diversas vezes que a contamina��o da maioria da popula��o era inevit�vel e que "ajudaria a n�o proliferar" a COVID-19.
"Muitos pegar�o isso [o v�rus] independente [sic] dos cuidados que tomem. Isso vai acontecer mais cedo ou mais tarde", afirmou Bolsonaro em 15 de mar�o de 2020 � CNN Brasil.
No m�s seguinte, Bolsonaro afirmou que "o v�rus vai atingir 70% da popula��o, infelizmente � uma realidade".
Em live no �ltimo dia 17 de junho, Bolsonaro afirmou, erroneamente, que "todos que contra�ram o v�rus est�o vacinados, at� de forma mais eficaz que a pr�pria vacina". Isso n�o � verdade: a infec��o por COVID n�o impede uma reinfec��o, principalmente diante da circula��o de cepas mais perigosas do coronav�rus. Al�m disso, os cientistas ainda n�o sabem, com clareza, o quanto uma infec��o de fato produz de imunidade no corpo.
E na �ltima sexta-feira (25/6) o ministro da Economia, Paulo Guedes, tamb�m mencionou, em uma audi�ncia, da aposta na imunidade de rebanho. "A ideia de imunidade de rebanho foi uma ideia difindida l� no in�cio (da pandemia). N�o se falou em barreira sanit�ria, testagem em massa, vacinas, nada disso. A ideia � vamos aos poucos porque, se for todo mundo ao mesmo tempo, explode a capacidade hospitalar".
Em depoimento � CPI da COVID em 11 de junho, o m�dico sanitarista Claudio Maierovitch, ex-presidente da Anvisa, afirmou que se tentou "produzir imunidade de rebanho � custa de vidas humanas".
"O governo se manteve na posi��o de produzir imunidade de rebanho, com essa conota��o toda, para a popula��o, em vez de adotar medidas reconhecidas pela ci�ncia para enfrentar a crise", declarou Maierovitch.
Esse argumento � a base das discuss�es sobre uma poss�vel queixa contra Bolsonaro no TPI - de intencionalidade na ado��o de uma pol�tica que acabaria se provando danosa � popula��o.
No entanto, a jurista brasileira Sylvia Steiner, que foi ju�za do TPI entre 2003 e 2016, explica que seria preciso coletar um conjunto robusto de provas para que um caso do tipo conseguisse avan�ar na corte internacional.
"Em rela��o � CPI, seria necess�rio aguardar um pouco mais os depoimentos para ver se, para al�m de uma pol�tica desastrosa, houve um projeto de for�ar a imunidade de rebanho por contamina��o. Se isso ficar demonstrado, n�o digo que possa configurar crime contra a humanidade, mas pode ser melhor explorado [juridicamente]", diz Steiner � BBC News Brasil.
Ela explica que uma pol�tica de sa�de, mesmo que mal executada, por si s� n�o necessariamente vai ser entendida pelo TPI como um ataque deliberado � popula��o.
"Se houve uma pol�tica de Estado para for�ar a contamina��o, a� a coisa pode mudar. Mas � cedo para chegar a essa conclus�o."
O jurista Belis�rio Santos Junior tamb�m aponta obst�culos que conheceu em primeira m�o na tramita��o do TPI: ele � integrante da Comiss�o Arns, entidade de direitos humanos que � coautora de uma das queixas j� apresentadas contra Bolsonaro no tribunal internacional. Trata-se de um pedido feito em 2019 por uma investiga��o preliminar das a��es do presidente brasileiro por "incita��o ao genoc�dio e ataques sistem�ticos contra popula��es ind�genas". No momento, a queixa est� sob an�lise da Procuradoria do TPI.
Santos explica � BBC News Brasil que qualquer den�ncia relacionada � gest�o da pandemia teria de demonstrar claramente o eventual "atentado doloso deliberado contra a sa�de", al�m de explicar por que a Justi�a brasileira n�o teria sido capaz de reagir a isso, gerando-se portanto a necessidade de se recorrer � Justi�a internacional.
Isso � algo dif�cil de ser demonstrado em um momento em que a pr�pria CPI ainda est� em andamento, explica o jurista - embora ele destaque que o n�mero de mais de 500 mil mortos por COVID-19 no Brasil seja "algo dantesco e maior do que muitos genoc�dios somados", algo que pode ter um peso importante em uma eventual den�ncia.
O jurista destaca ainda que o TPI "n�o � o rem�dio para todos os males" jur�dicos, inclusive porque as den�ncias feitas � corte t�m um caminho longo a percorrer at� de fato serem convertidas em julgamentos - quando o s�o.

Nos quase 20 anos desde sua implementa��o, o TPI promoveu 30 julgamentos, resultando na pris�o de 17 pessoas. Outras 13 s�o consideradas foragidas, entre elas pol�ticos internacionalmente conhecidos, como Omar al-Bashir, ex-presidente do Sud�o e acusado de homic�dio, exterm�nio, tortura e estupros na regi�o de Darfur; e o l�der rebelde Joseph Kony, do Ex�rcito de Resist�ncia do Senhor, grupo acusado de homic�dios, escravid�o sexual e estupro e outros atos desumanos em Uganda.
'Resultado final de pandemias'
O tema da imunidade de rebanho come�ou a ser investigado pela CPI da COVID a partir de depoimentos como o do ex-ministro da Sa�de Luiz Henrique Mandetta, que afirmou ter tido a "impress�o" de que o governo Bolsonaro pretendia adotar essa medida no pa�s.
"A impress�o que eu tenho � que era alguma coisa nesse sentido [de buscar a imunidade de rebanho], o principal convencimento, mas eu n�o posso afirmar", afirmou o ex-ministro � CPI.
Uma minoria de cientistas internacionais chegou a aventar essa ideia ou coloc�-la em pr�tica em alguns pa�ses, como o Reino Unido, mas ela foi rapidamente abandonada depois que estudos come�aram a mostrar que ela resultaria na perda de milhares de vidas.
Isso porque a contamina��o pelo novo coronav�rus, al�m de potencialmente levar � morte pessoas de diferentes idades e condi��es de sa�de, n�o necessariamente impede uma reinfec��o, nem protege contra variantes mais perigosas do v�rus.
Apontado como um dos principais influenciadores de Bolsonaro nesse tema, o deputado Osmar Terra (MDB-RS) afirmou nesta ter�a (22/6) � CPI da Covid que nunca defendeu a "tese de imunidade de rebanho".
"Essa ideia de imunidade de rebanho ser uma proposta [de governo] � um absurdo. A imunidade de rebanho � um resultado final" de pandemias, disse. "A imunidade de rebanho nunca foi uma estrat�gia, � uma constata��o de como termina uma pandemia. Isso est� em todos os livros."
No entanto, declara��es pr�vias de Terra contradizem isso. Em 12 de dezembro de 2020, quando tinham se passado nove meses de pandemia, ele afirmou que "� bem prov�vel que em algumas semanas cheguemos a imunidade coletiva, ou imunidade de rebanho".
Essa e outras falas de Terra sobre o assunto foram exibidas em v�deo na CPI durante o depoimento do deputado.
Terra afirmou, ainda, que n�o acredita que suas opini�es tenham tido influ�ncia sobre as decis�es tomadas por Jair Bolsonaro.
Senadores governistas, por�m, t�m defendido o direito de o presidente se consultar com pessoas de fora do Minist�rio da Sa�de.
"Pedir sugest�es, filtrar, � uma obriga��o de cada gestor. N�o tem nada a ser recriminado de qualquer gestor p�blico, seja ele prefeito, governador, presidente", declarou o senador Jorginho Mello (PL-SC) durante o depoimento de Terra. "Ouvir as pessoas � uma coisa muito salutar e evita o erro. Se aconselhar e depois tomar a posi��o que quiser tomar."
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