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Estado de Minas BRASIL

Inc�ndio na boate Kiss: as fortes lembran�as de sobreviventes ap�s 10 anos

Inc�ndio em Porto Alegre foi o segundo maior da hist�ria no pa�s em n�mero de mortos


26/01/2023 15:01 - atualizado 26/01/2023 15:01

Fachada da Boate Kiss, em Santa Maria
Fachada da Boate Kiss, em Santa Maria (foto: Marizilda Cruppe)
O doutorando em Veterin�ria Gustavo Cadore, de 31 anos, chegou � boate Kiss por volta das duas e meia da manh�. Embora j� tivesse ido l� outras vezes, nunca achou a casa t�o cheia. Naquela noite, a festa 'Agromerados' reunia estudantes de seis cursos da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

 

Gustavo estava em frente ao palco quando, �s tr�s e dezessete, o vocalista da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos, de 32 anos, acendeu um artefato pirot�cnico. Em poucos segundos, uma fagulha alcan�ou o revestimento de poliuretano do teto do palco. As chamas logo se alastraram. Ao ouvir os primeiros gritos de "� fogo!", Gustavo saiu correndo. Foi quando ouviu um estrondo e, em seguida, as luzes se apagaram. No empurra-empurra, caiu e foi pisoteado. "N�o posso morrer aqui", pensou.

 

Com dificuldade, o rapaz conseguiu se levantar. Por tr�s vezes, tentou encontrar uma sa�da, mas n�o conseguiu. "Preciso me manter calmo", repetia, baixinho. O longo caminho at� a rua inclu�a, entre outros obst�culos, grades de ferro usadas na organiza��o das filas.


Destruição provocada pelo incêndio dentro da boate
Destrui��o provocada pelo inc�ndio dentro da boate (foto: Kiss: Que N�o Se Repita/Divulga��o.)

 

Quando menos esperava, Gustavo avistou uma fresta de luz vinda do lado de fora. Cambaleante, cruzou a entrada do n�mero 1.925 da rua dos Andradas, no Centro de Santa Maria (RS). Foi naquele endere�o que, na madrugada de 27 de janeiro de 2013, 242 pessoas perderam a vida — 90% delas tinham entre 18 e 30 anos.

 

Leia: Boate Kiss: quatro r�us s�o soltos ap�s a Justi�a anular o j�ri 

 

"Era imposs�vel respirar. Parecia que respirava fogo", relata Gustavo, um dos 636 sobreviventes da trag�dia. "At� hoje, n�o me esque�o dos gritos de desespero. Nunca v�o sair da minha cabe�a".

'Cara, tua pele est� caindo!'

Do lado de fora da boate, Gustavo sofreu um apag�o. Acordou minutos depois, sentado no meio-fio.


Gustavo Cadore, sobrevivente da Boate Kiss
Gustavo Cadore teve 40% do corpo queimado (foto: Divulga��o)

 

Na rua, volunt�rios participavam do resgate das v�timas. Alguns deles, munidos de machados cedidos pelo Corpo de Bombeiros, tentavam improvisar uma "sa�da de emerg�ncia" na fachada do pr�dio.

 

Ainda desnorteado, Gustavo saiu vagando pelas ruas do bairro. De seus bra�os, sa�a uma fuma�a preta. "Cara, tua pele est� caindo!", avisou um desconhecido. "N�o, cara. Isso aqui � a minha camisa. Deve ter rasgado no tumulto", explicou Gustavo. "N�o, cara!", insistiu o sujeito. "Tu t� sem camisa!".

 

Leia: Boate Kiss: MP recorre da anula��o do julgamento 


Fachada da boate Kiss após a tragédia
Volunt�rios tentaram improvisar uma 'sa�da de emerg�ncia' na fachada do pr�dio para ajudar no resgate das v�timas (foto: Kiss: Que N�o Se Repita/Divulga��o)

 

Foi quando Gustavo se deu conta, pr�ximo a um poste de luz, que a pele de seu bra�o estava presa apenas pelo pulso. O universit�rio foi levado de ambul�ncia para o Hospital da Caridade, em Santa Maria. E, de l�, transferido em um helic�ptero para o Hospital de Pronto-Socorro, em Porto Alegre. Permaneceu em coma por nove dias. Quando acordou, no dia 5 de fevereiro, descobriu que teve 40% do corpo queimado.

 

A temperatura na boate, segundo estimativas, chegou a 300 graus na madrugada de 27 de janeiro de 2013.

'Preciso devolver esses meninos e meninas para as suas m�es'

Quando a enfermeira Liliane Duarte, de 48 anos, chegou � boate Kiss, por volta das quatro e quarenta e cinco da manh�, Gustavo Cadore e os demais sobreviventes j� tinham sido socorridos.

 

Leia: Boate Kiss: Fux susta eventual habeas corpus e barra soltura dos condenados 

 

Capit� do Hospital da Brigada Militar de Santa Maria, foi uma das primeiras pessoas a entrar no que sobrou da boate, enquanto os bombeiros ainda faziam o rescaldo do inc�ndio. Sua garganta queimava e seus olhos ardiam. Muitos policiais, ao se depararem com a pilha de corpos no hall de entrada, ca�am no choro.

 

�quela altura, os gritos de socorro ouvidos por Gustavo Cadore j� tinham silenciado. Em seu lugar, o barulho incessante de dezenas de celulares. Em um deles, o visor trazia, ao lado da palavra 'M�e', 134 liga��es n�o atendidas… "Preciso devolver esses meninos e meninas para as suas m�es", pensou Liliane.


Liliane Duarte
A enfermeira Liliane Duarte foi uma das primeiras pessoas a entrar no que sobrou da boate (foto: Divulga��o)

 

Mais da metade dos mortos estavam nos banheiros — o �nico local da boate que permaneceu com uma luz acesa durante a trag�dia. Muitos confundiram o alerta luminoso com "Sa�da de Emerg�ncia".

'Sabia que era ela, mas tinha esperan�a de que n�o fosse…'

Enquanto os sobreviventes eram levados para um dos sete hospitais de Santa Maria, as v�timas eram transportadas em caminh�es para o Centro Desportivo Municipal, o Farrez�o. Por falta de vagas no Instituto M�dico Legal (IML), o gin�sio foi transformado em necrot�rio.

 

Sob uma lona preta, os corpos dos rapazes foram colocados � direita da porta da entrada e os das mulheres, � esquerda. Com panos umedecidos, volunt�rios limpavam o rosto coberto de fuligem das v�timas para facilitar o reconhecimento das fam�lias. Sobre os corpos, objetos pessoais, como chaves, documentos e batons, foram guardados em sacos pl�sticos.


Banheiro da boate destruído
Mais da metade dos mortos estavam nos banheiros da boate (foto: Kiss: Que N�o Se Repita/Divulga��o)

 

Algumas fam�lias, por�m, se recusavam a admitir que seus filhos e filhas tinham morrido na trag�dia. "N�o � ela!", insistia uma m�e, olhando pela terceira vez. Liliane perguntou se sua filha tinha alguma tatuagem. "Sim, um cora��o, com o nome dela", respondeu. Quando a enfermeira puxou a lona que cobria a perna da jovem, a mulher teve uma crise de choro: "Eu sabia que era ela, mas tinha esperan�a de que n�o fosse…".

 

Perto dali, um pai, inconsol�vel, conversava com a filha morta: "Te avisei tanto para tomar cuidado. Olha o que aconteceu. Voc� est� a� agora".

 

A prefeitura de Santa Maria liberou o Farrez�o para a realiza��o de um vel�rio coletivo. Mas, por medida de seguran�a, os corpos deveriam ser velados em caix�es lacrados. Motivo: a toxicidade da fuma�a inalada pelas v�timas.


Fileiras de caixões em velório coletivo
Muitos parentes e amigos se despediram das v�timas em um vel�rio coletivo (foto: Kiss: Que N�o Se Repita/Divulga��o.)

 

Ao lado de um caix�o, uma m�e cantarolava para o filho sua m�sica favorita: "Me desespero a procurar / Alguma forma de lhe falar / Como � grande o meu amor por voc�…".

'N�o estava do lado do meu filho no momento em que ele mais precisou de mim'

Gustavo e Liliane foram duas das mais de 100 pessoas que Daniela Arbex entrevistou, entre sobreviventes da trag�dia, familiares de v�timas, equipes de resgate e profissionais da sa�de, para o livro Todo Dia A Mesma Noite — A Hist�ria N�o Contada da Boate Kiss (Editora Intr�nseca). Desde as primeiras apura��es at� o ponto final, a jornalista levou cerca de dois anos e meio para concluir o trabalho. Neste per�odo, emagreceu dez quilos, perdeu metade dos cabelos e come�ou a fazer terapia.

 

"Qualquer um de n�s poderia estar dentro daquela boate naquela noite. Ou, ent�o, poderia ter perdido algu�m dentro daquela boate naquela noite", admite. "Uma das frases que mais ouvi durante os depoimentos foi: 'N�o estava do lado do meu filho no momento em que ele mais precisou de mim'. Isso me impactou".

 

O inc�ndio da Kiss entrou para a hist�ria como o segundo maior do Brasil em n�mero de mortos. S� perde para o do Gran Circo Norte-Americano, no dia 17 de dezembro de 1961, em Niter�i (RJ): 503 v�timas fatais.

'Produzir mem�ria para evitar o esquecimento'

No ano em que o inc�ndio da boate Kiss completa uma d�cada, o livro de Daniela Arbex acaba de ganhar uma vers�o para o streaming, escrita por Gustavo Lipsztein e dirigida por J�lia Rezende. A miniss�rie ficcional Todo Dia A Mesma Noite tem cinco epis�dios e acaba de estrear no cat�logo da Netflix.


Atores Pedro Sol, Raquel Karro e Paulo Gorgulho segurando velas em vigília durante cena da minissérie 'Todo Dia A Mesma Noite', da Netflix
Os atores Pedro Sol, Raquel Karro e Paulo Gorgulho em cena da miniss�rie 'Todo Dia A Mesma Noite' (foto: Guilherme Leporace / Netflix)

 

O recorte escolhido pela cineasta � o de mostrar a luta das fam�lias que, al�m de perderem seus filhos e filhas no inc�ndio, ainda tiveram que enfrentar o Minist�rio P�blico. Quatro pais foram processados por cal�nia e difama��o. "A pergunta que me fiz ao receber o convite foi: por que contar essa hist�ria?", explica a diretora. "Queremos produzir mem�ria para evitar o esquecimento. Dar voz �queles que viveram uma trag�dia que, dez anos depois, segue sem resposta da Justi�a brasileira".

 

Na miniss�rie da Netflix, Gustavo virou Fernando (Nicolas Vargas) e Liliane, Idalina (Gabriela Munhoz).

'Querem que a hist�ria de seus filhos n�o seja apagada'

O munic�pio de Santa Maria, que tem hoje cerca de 296 mil habitantes, fica a 290 quil�metros de Porto Alegre. A quinta maior cidade do Rio Grande do Sul � conhecida como "a cidade dos estudantes" por causa da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), fundada em dezembro de 1960.


Destruição provocada pelo incêndio dentro da boate1
Investiga��o apontou irregularidades, como excesso de lota��o, extintores quebrados e falta de treinamento (foto: Kiss: Que N�o Se Repita/Divulga��o)

 

Ga�cho de Passo Fundo, Marcelo Canellas cresceu em Santa Maria e se formou em Jornalismo pela UFSM. Foi amigo de inf�ncia de Mauro Hoffmann, um dos s�cios da boate e r�u do processo. Os dois estudaram juntos da primeira � oitava s�rie. Como rep�rter da TV Globo, Canellas viajou incont�veis vezes para Santa Maria e fez dezenas de reportagens sobre o caso.

 

"O que mais me surpreendeu foi a resili�ncia das fam�lias. Em geral, as pessoas desistem; eles, n�o. N�o baixam a guarda, v�o at� o fim. Querem que seus filhos n�o sejam esquecidos, que a hist�ria deles n�o seja apagada".


Mural de fotos das vítimas da tragédia
90% das v�timas tinham entre 18 e 30 anos (foto: Kiss: Que N�o Se Repita/Divulga��o.)

'A impunidade � um convite para novas trag�dias'

Diretor da s�rie documental Boate Kiss — A Trag�dia de Santa Maria, dispon�vel no Globoplay a partir do dia 26, Canellas refaz toda a cronologia do inc�ndio, desde a inaugura��o da boate, em julho de 2009, at� a anula��o do julgamento, em agosto de 2022.

 

Ao todo, realizou cerca de 30 entrevistas e totalizou 1,3 mil horas de material. Entre outros entrevistados, ouviu os tr�s ex-presidentes da Associa��o dos Familiares de V�timas e Sobreviventes da Trag�dia de Santa Maria (AVTSM):

 

Adherbal Ferreira, o pai da Jeniffer, que teve a ideia de fundar a associa��o na missa de s�timo dia da filha; S�rgio Silva, o pai do Augusto, que se mudou de Santa Maria depois de sofrer um infarto e colocar duas pontes de safena, e Fl�vio Jos� da Silva, o pai da Andrielle, um dos processados por representantes do MP.

 

Andrielle Righi da Silva comemorava seus 22 anos na Kiss. Outras 18 pessoas faziam anivers�rio naquele dia.

 

O atual presidente da AVTSM � o psic�logo Gabriel Barros, de 28 anos, que mora a poucos metros do local da trag�dia. Por muito tempo, se culpou por ter sobrevivido e seus amigos, n�o. Levou mais de oito anos at� conseguir falar sobre o que aconteceu.

 

"A dor que mais perdura � a dor da impunidade. A dor de saber que tudo aconteceu e n�o temos a responsabiliza��o necess�ria para dar uma garantia m�nima de que n�o vai acontecer de novo", observa. "A palavra supera��o n�o existe em nosso dicion�rio enquanto movimento coletivo. N�o temos como 'superar' nossas perdas e nossos lutos. Precisamos resgatar a mem�ria para termos chances de construir um futuro digno, para que os crimes cometidos n�o aconte�am novamente em nenhum lugar".

 

E alerta: "A impunidade � um convite para novas trag�dias".

'Me senti como um prisioneiro do meu pr�prio corpo'

O t�cnico em pr�tese dent�ria Delvani Rosso, de 30 anos, tamb�m estava na Kiss h� exatos dez anos. Foi salvo das chamas pelo irm�o, Jovani. Detalhe: na hora do resgate, Jovani n�o reconheceu Delvani. S� veio a saber da coincid�ncia quatro dias depois.


Destruição provocada pelo incêndio dentro da boate2
Investiga��o policial durou 55 dias e ouviu 800 testemunhas (foto: Kiss: Que N�o Se Repita/Divulga��o)

 

Com a camisa amarrada no rosto para impedir a inala��o de fuma�a, Jovani resgatou outros sobreviventes. Puxava os homens pelo cinto e as meninas pelo cabelo. Se puxasse pelo bra�o, arrancaria a pele deles. "Inalei tanta fuma�a que perdi as for�as. Antes de desmaiar, pedi perd�o a Deus. Por milagre, acordei na cal�ada, minutos depois. Me olhavam com pavor. Como se estivessem vendo um monstro. Ou um fantasma", lembra.

 

"No hospital, me senti como um prisioneiro do meu pr�prio corpo. Para me comunicar com as enfermeiras, precisava piscar os olhos", relata.


Marcelo Canellas entrevista os irmãos Delvani e Jovani Rosso
Os irm�os Delvani e Jovani Rosso est�o entre os 636 sobreviventes do inc�ndio (foto: TV Globo )

 

Pelo menos outros cinco rapazes n�o tiveram a mesma sorte de Jovani Rosso. Eles tamb�m retornaram � boate para buscar sobreviventes, mas n�o conseguiram sair de l� com vida.

'S� teremos descanso quando a Justi�a for feita'

Em homenagem aos mortos, o coletivo Kiss: Que N�o Se Repita, fundado em 2014, criou a exposi��o Tempo Perdido. Com recursos de Intelig�ncia Artificial, o projeto simula como estariam hoje, uma d�cada depois, oito v�timas da Boate Kiss. A iniciativa � do produtor editorial Andr� Polga, o fundador do coletivo.

 

Andr� n�o estava na Kiss na madrugada de 27 de janeiro de 2013, mas perdeu duas amigas no inc�ndio: as estudantes Allana Willers, de 18 anos, e Luana Facco Ferreira, de 19.

 

"242 n�o � s� um n�mero. S�o 242 fam�lias que precisam descansar. Ningu�m conseguiu viver seu luto. Tanto pessoal quanto judicialmente, tivemos que nos defender. A sociedade marginaliza nossa luta. Merecemos descanso. E s� teremos descanso quando a Justi�a finalmente for feita", afirma Polga.


Mulher em frente a mural com fotos das vítimas segurando cartaz em que se lê: 'Os assassinos estão livres'
Os quatro r�us no processo foram condenados, mas meses depois a senten�a foi anulada %u2014 e n�o h� data para novo julgamento (foto: Kiss: Que N�o Se Repita/Divulga��o.)

Por enquanto, n�o h� previs�o de quando a t�o desejada justi�a mencionada por sobreviventes ser� feita. A investiga��o policial durou 55 dias e ouviu 800 testemunhas. Entre outras irregularidades, apontou excesso de lota��o, extintores quebrados e falta de treinamento. Na confus�o, os seguran�as fecharam a �nica porta de acesso � boate e, sem saber do que estava acontecendo perto do palco, n�o deixavam os frequentadores sa�rem sem pagar a comanda.

 

Por fim, o inqu�rito policial responsabilizou 28 pessoas. Dessas, s� quatro foram denunciadas pelo MP: os s�cios da boate, Elissandro Spohr, de 39 anos, e Mauro Hoffmann, de 57; o m�sico Marcelo de Jesus, 42, e o produtor de palco Luciano Bonilha, 45, todos por homic�dio doloso.

 

Os quatro r�us foram levados a j�ri popular em dezembro de 2021. Depois de 10 dias de julgamento, foram condenados a penas que variavam de 18 a 22 anos de pris�o. Em agosto de 2022, por�m, os advogados de defesa recorreram e conseguiram anular a senten�a. N�o h� data para novo julgamento.

- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64397110


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