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Estado de Minas Mineiridade

Entrevista com Walderez Ramalho: Existe um "jeito de ser mineiro"?

Pesquisador que se aprofundou nos terrenos da pol�tica, da cultura e do comportamento explica como se deu a apropria��o de um certo "esp�rito das montanhas"


Minas 300 Anos
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Minas 300 Anos
postado em 02/12/2020 11:35 / atualizado em 02/12/2020 13:04

(foto: ALEXANDRE GUZANSHE/EM/D.A PRESS )
(foto: ALEXANDRE GUZANSHE/EM/D.A PRESS )

 
O jeito mineiro de ser tem nome: mineiridade. Mas n�o pense, caro leitor, que se trata apenas de uma forma de falar, de levar a vida ou de viver longe do litoral. O conceito vai bem al�m das montanhas e, para desvendar esse fascinante universo, o historiador Walderez Ramalho mergulhou fundo nas �guas da pol�tica, da cultura e do comportamento.

O resultado est� na disserta��o de mestrado “A historiografia da mineiridade: trajet�rias e significados na hist�ria republicana do Brasil”, defendida na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Natural de Governador Valadares, na Regi�o Leste do estado, e doutorando em hist�ria pela Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), com est�gio na Universidade de Gante, na B�lgica, Ramalho pesquisou os amplos aspectos que tentam definir a mineiridade. E revela que h� refer�ncias documentais versando sobre um suposto “car�ter” ou “identidade” mineira desde o per�odo colonial, entre eles um famoso documento atribu�do ao conde de Assumar justificando suas a��es de repress�o ap�s a Revolta de Vila Rica, em 1720.

Ramalho diz que existe um sentimento de pertencer a Minas Gerais compartilhado de variadas formas, “mas n�o se pode elaborar esse sentimento em um conceito fechado e definitivo”. Foi assim, explica, que Guimar�es Rosa definiu a mineiridade em um ensaio cl�ssico de 1957, uma verdadeira declara��o de amor a Minas Gerais: “MINAS: patriazinha.

Minas – agente olha, se lembra, sente, pensa. Minas – a gente n�o sabe”. Em entrevista ao Estado de Minas, o pesquisador d� detalhes sobre esses estudos que sondam um pouco da alma mineira.

O que significa mineiridade?

Mineiridade � um termo que faz refer�ncia a um conjunto de significados simb�licos e culturais ligados a um suposto “modo de ser mineiro”. Entretanto, os significados espec�ficos ligados a esse termo variaram bastante ao longo do tempo, como demonstrei na minha disserta��o de mestrado. Justamente por n�o ter um sentido fixo e definido, ou por ter um significado aberto, o tema foi t�o visitado e � discutido por intelectuais, artistas, pol�ticos e cidad�os mineiros em geral. H� um sentimento de pertencer a Minas Gerais que � compartilhado de variadas formas, mas n�o se pode elaborar esse sentimento em um conceito fechado e definitivo.

Quando surge esse conceito?

Existem refer�ncias documentais que versam sobre um suposto “car�ter” ou “identidade” mineira desde o per�odo colonial, por exemplo, em um famoso documento atribu�do ao conde de Assumar justificando suas a��es de repress�o ap�s a Revolta de Vila Rica, em 1720. Em rela��o ao termo “mineiridade” propriamente dito, a historiografia considera que o primeiro a empreg�-lo foi Aires da Mata Machado Filho, em confer�ncia proferida em 1937, em Diamantina, sobre o escritor Couto de Magalh�es. Gilberto Freyre, c�lebre int�rprete do Brasil, deu sua pr�pria vers�o do sentido de “mineiridade” em outra confer�ncia, realizada em julho de 1946 na Faculdade de Direito de Belo Horizonte, com o t�tulo “Ordem, liberdade, mineiridade”.

� poss�vel detectar a mineiridade no cotidiano da popula��o?

Em minha pesquisa, considerei a mineiridade como um discurso, uma representa��o simb�lica, e n�o como uma “ess�ncia” que supostamente definiria toda e qualquer pessoa nascida ou que mora em Minas Gerais. Assim, n�o foi minha inten��o definir quais caracter�sticas pertencem ou n�o ao “mineiro/a”, mas sim analisar como os discursos da mineiridade mobilizaram uma s�rie de sentidos e imagens sobre o “ser mineiro”, muitos dos quais ainda se fazem presentes na forma de estere�tipos (“desconfiado”, “tradicionalista”, “hospitaleiro”, “comedido”, entre outros). 

Esses significados n�o est�o inscritos no DNA das pessoas desde o seu nascimento at� a sua morte, mas s�o, antes de tudo, constru��es imagin�rias que, de fato, exercem sua influ�ncia na experi�ncia concreta. S�o importantes porque d�o sentido para as a��es e valores compartilhados em uma comunidade, mas isso n�o significa que qualquer comportamento ou vis�o de mundo divergente seja “anormal” ou “desviante” do padr�o aceit�vel. Se fosse assim, a “mineiridade” seria uma pris�o e traria mais desvantagens que vantagens para a vida.

E do ponto de vista das a��es pol�ticas?

O discurso da mineiridade desempenhou fun��o importante para projetar Minas no cen�rio pol�tico nacional. A esse termo est� associada a ideia de “equil�brio”, “pondera��o”, “concilia��o”, e “senso grave da ordem” (express�o cunhada por Jo�o Pinheiro no in�cio do s�culo 20), entre outros sentidos. Nem sempre, por�m, as lideran�as pol�ticas mineiras se comportaram historicamente de acordo com essas imagens.

Por que o senhor decidiu estudar esse assunto?

Eu me interessei pelo tema por me deparar frequentemente com afirma��es do tipo “o mineiro � isso ou aquilo”, e tinha interesse de saber de onde surgiram essas imagens, de onde vieram essas ideias sobre uma “identidade mineira”. Do ponto de vista acad�mico, tinha interesse em abordar essa quest�o de uma perspectiva da teoria e hist�ria da historiografia, que � o meu campo de atua��o. 

E o interesse pelo per�odo republicano se deu por dois grandes motivos: por um lado, porque foi nesse per�odo que os discursos sobre a mineiridade come�aram a aparecer com maior frequ�ncia na historiografia e no meio pol�tico; por outro, porque a partir da d�cada de 1980 houve um deslocamento na literatura consultada: cada vez mais os autores deixaram de ver a mineiridade como uma “ess�ncia” fixa e imut�vel que toda pessoa em Minas traz consigo, e mais como um discurso e uma representa��o que variou historicamente e desempenhou fun��es espec�ficas ao longo do tempo.

Em que momentos da hist�ria a mineiridade est� mais presente?

No campo intelectual, interpreta��es sobre o “ser mineiro” proliferaram desde as primeiras d�cadas do s�culo 20, quando Minas Gerais se afirmava como uma das grandes for�as pol�ticas do pa�s, ao lado de S�o Paulo. Desde ent�o, o tema da mineiridade � revisitado com frequ�ncia nos estudos acad�micos, na literatura e nas artes em geral. No campo da pol�tica, o termo apareceu com for�a em momentos cr�ticos da hist�ria do pa�s – por exemplo, com o fim do Estado Novo e na publica��o do Manifesto dos Mineiros –, ou mesmo no per�odo da redemocratiza��o do pa�s, em 1985, quando Tancredo Neves fez frequentes men��es ao jarg�o para justificar o seu papel de conciliar o pa�s e promover uma nova ordem democr�tica.

Antes, diziam que a Presid�ncia da Rep�blica passava pelo Pal�cio da Liberdade. Isso era mineiridade ou resqu�cio da dobradinha “caf� com leite”?

As duas coisas. De fato, eu demonstrei na minha disserta��o que a ideia de Minas Gerais como centro pol�tico do Brasil � uma constante nos usos pol�ticos da mineiridade. Ao lado da imagem do mineiro como naturalmente equilibrado, prudente e dotado do “senso grave da ordem”, muitos autores interpretam Minas como o estado que sintetiza o Brasil, como seu centro articulador no sentido geogr�fico, hist�rico, pol�tico e cultural. Dessa caracteriza��o nasceu tamb�m a ideia de que Minas possuiria uma natural voca��o para a pol�tica, de onde se procurava justificar e promover a influ�ncia do estado nos neg�cios pol�ticos do pa�s.

E essa � uma ideia da pol�tica republicana?

A ideia de Minas como vocacionada para a pol�tica � remetida at� antes do per�odo do “caf� com leite”– por exemplo, o Minist�rio da Concilia��o criado durante o reinado de dom Pedro II para pacificar o pa�s foi liderado por um pol�tico mineiro, Hon�rio Hermeto Carneiro Le�o, o marqu�s do Paran�. Mas essa imagem foi sem d�vida fortalecida durante a Rep�blica Velha, e permaneceu bastante ativa na hist�ria republicana do Brasil (fim da Era Vargas, o governo de JK, a participa��o de Minas no Golpe de 1964 e, mais tarde, tamb�m na redemocratiza��o do pa�s com figuras como Tancredo Neves e Itamar Franco).

Com os novos tempos, a mineiridade desapareceu ou se transformou?

Se entendermos a mineiridade n�o como ess�ncia, mas como um discurso, ent�o ela est� sempre em transforma��o. Gosto de dar como um exemplo da historicidade do discurso do “ser mineiro” a contradi��o entre dois importantes int�rpretes da mineiridade. Em 1904, o c�lebre historiador Diogo de Vasconcelos escreveu em seu livro Hist�ria antiga das Minas Gerais que a “alma mineira” se caracterizaria pelo respeito � ordem e a coopera��o obediente com os governos. J� seu neto, Sylvio de Vasconcelos, escreveu em seu c�lebre ensaio de 1968, intitulado Mineiridade: ensaio de caracteriza��o, exatamente o oposto. 

Para Sylvio, o que caracterizaria a mineiridade seria a insubmiss�o e o amor � liberdade, destacando a const�ncia das revoltas hist�ricas ocorridas em Minas Gerais. Ambos procuraram justificar suas afirma��es com fatos hist�ricos, mas cada um destacou partes espec�ficas dessa hist�ria e, principalmente, visavam a objetivos pol�ticos distintos. Diogo escreveu no momento de afirma��o de Minas Gerais durante a Rep�blica Velha, enquanto Sylvio escreveu durante a ditadura militar, procurando assim real�ar o aspecto da insubmiss�o e revolta entre os mineiros.

H� regi�o em que o mineiro � “mais mineiro”?

Essa quest�o tamb�m foi longamente discutida na historiografia da mineiridade. Houve quem dissesse que “mineiro” � apenas a pessoa originada da regi�o central do estado, ou quem tem origem nas cidades formadas no seio da minera��o. Os demais seriam os assim chamados “geralistas”, provenientes dos sert�es ao norte ou no Tri�ngulo, por exemplo. Essa divis�o entre “mineiros” e “geralistas” foi tema recorrente ao longo da hist�ria. Mas h� quem considere essa divis�o artificial, pois haveria uma �nica Minas Gerais comum a todos. E h� ainda quem diga que n�o existe “uma” Minas Gerais, mas sim, que “Minas s�o muitas”, para novamente citar o grande Guimar�es Rosa. N�o h� como se chegar a uma resposta conclusiva e definitiva a essa pergunta, mas � justamente dessa abertura que a mineiridade continua um tema fascinante, objeto de muitas reflex�es e debates. Em Minas e no Brasil.

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