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Estado de Minas ESCRITOR ANALISA SIGNIFICADO

Escritor analisa o significado do rep�dio de deputados a livro de poesia

Leonardo Villa-Forte critica a iniciativa de deputados de Santa Catarina, que publicaram mo��o contra a obra 'Um �tero � do tamanho de um punho', da poeta Ang�lica Freitas, adotado no vestibular da UFSC


postado em 25/10/2019 04:00 / atualizado em 25/10/2019 10:18

(foto: Renata Freitas)
(foto: Renata Freitas)

“Existem livros �timos, livros bons, ruins, p�ssimos e existe esse livro aqui. Eu n�o t� privando as pessoas de escreverem o que elas bem entenderem, o problema � que esse livro tem alguns problemas…”

� ter�a-feira na Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina (Alesc). Estamos em Florian�polis, no Centro C�vico Tancredo Neves, dentro do Pal�cio Barriga Verde. Dezessete de setembro, duas e meia da tarde. Antes de o deputado Jess� Lopes iniciar o pronunciamento acima, o presidente da sess�o, deputado J�lio Garcia, havia saudado a C�mara Municipal Mirim do munic�pio de Pinheiro Preto, formada por estudantes, em m�dia, entre 11 e 17 anos. Em seguida, o deputado Padre Pedro Baldissera reconheceu a import�ncia da Romaria da Terra e das �guas, que no domingo anterior reunira mais de 10 mil pessoas em S�o Jos� do Cerrito. O orador seguinte � Jess� Lopes, que falava sobre livros. Jess� havia se dirigido ao p�lpito, assumira o microfone e, odont�logo de forma��o, revelava duas facetas antes ocultas: as de educador e cr�tico liter�rio.

“…esse livro tem alguns problemas”, continua Jess� Lopes. “O principal deles � que est� no edital do vestibular para a Universidade Federal de Santa Catarina. Vou ter o desprazer de discorrer um pouco dessas lindas poesias, que est�o dentro desse livro, pro seu filho que vai ter obriga��o de ler para prestar vestibular. Por exemplo, ‘Era uma vez uma mulher que n�o perdia a chance de enfiar o dedo no �nus. No pr�prio ou no dos outros. O polegar, o indicador, o m�dio, o anular ou o mindinho’. Espero que voc�s n�o estejam se sentindo mal, porque isso aqui � pra pessoas de 16, 17 anos”, diz Jess�, parecendo n�o se importar com a presen�a dos membros da C�mara Mirim, alguns ainda mais novos. “Tem outro poema: ‘Um �tero � do tamanho de um punho. Num �tero cabem capelas. Cabem bancos, h�stias, crucifixos. Cabem padres de pau murcho. Cabem freiras de seios quietos’. Olha, n�o tem problema nenhum que a gente expresse o que temos vontade, desde que n�o fa�amos como obrigatoriedade de estar levando isso para alunos, alunos em forma��o, que precisam de coisas de qualidade, coisas que v�o levar para a vida. � lament�vel pessoas que t�m a condi��o de escrever uma coisa dessas aqui. Deputado Ismael, voc� que � devoto de Jesus Cristo, imagina a minha cara de idiota pedindo esse livro na livraria.”

“Parab�ns, deputado Jess�, pela interven��o”, congratula o deputado Ismael dos Santos. “Lamentamos esse tipo de literatura que em nada constr�i um pa�s cidad�o.”

“N�o sei por que o aluno precisa saber que tipos de objetos podem ser introduzidos nas genit�lias e qual a import�ncia disso para a ci�ncia”, comenta a deputada Ana Campagnolo, mostrando ter faltado �s aulas de literatura. Tivesse reparado no poema, notaria que os versos tratam, muitas vezes, de met�foras e nem sempre de objetos reais concretamente introduz�veis nas genit�lias. Ou ela acha que d� para realmente introduzir bancos e capelas na genit�lia de algu�m?

“� um desrespeito com o cidad�o que vai � igreja e � devoto de Jesus Cristo”, pondera Jess�. “Est� ferindo todos os valores crist�os e obrigando todos os alunos a lerem isso”, acrescenta indignado, esquecido de que o Estado � laico.

“Literatura de p�ssima qualidade”, vaticina o deputado Bruno Souza, outro que subitamente parece ter meditado sobre crit�rios liter�rios.
E a mo��o de rep�dio vai � vota��o.

Encerrada a cena, pe�o desculpas ao leitor por faz�-lo ler tais di�logos.  A verdade � que n�o os inventei, eles aconteceram. Naquela data, foi proposta na Alesc uma mo��o de rep�dio � ado��o do livro Um �tero � do tamanho de um punho no vestibular da UFSC. Ou, como o deputado orador da sess�o chegou a dizer, Meu �tero � do tamanho de um punho.

O livro de Ang�lica Freitas, lan�ado pela Cosac Naify em 2012, talvez seja o que mais carreguei pelos mais de 10 estados do Brasil onde j� ministrei oficinas de escrita. Algumas inclu�ram jovens. Costumam ficar animad�ssimos ao conhecer a poesia ir�nica e provocativa de Ang�lica, seu tom ferino, por�m sereno, e a indaga��o de que seus poemas fazem em torno do que � ser mulher na sociedade hoje. Mulheres fora do padr�o constru�do, mulheres que desejam de maneiras diversas, que desejam coisas diferentes, e como s�o olhadas e tratadas. Ora, se as diferen�as entre as pessoas e as maneiras como s�o tratadas n�o s�o importantes para ser mostradas a quem est� em forma��o, o que mais seria? Alguns jovens at� ficam agitados – querendo fazer poesia – ao descobrir, no livro, a inspirada sess�o de poemas feitos a partir de buscas no Google. � esse tipo de descoberta que a lament�vel mo��o de rep�dio busca impedir.

Que adolescentes conhe�am a diversidade na poesia, uma poesia t�o f�rtil que algu�m de mentalidade regressiva infelizmente queira restringir sua circula��o, � algo que s� podemos louvar. O triste � termos de conviver com agentes de poder cujos discursos n�o expandem nada, n�o t�m nenhum interesse pela vida, por suas possibilidades, pela diferen�a, e apenas celebram a si mesmos, em seu marasmo e amargura

 
Felizmente, Um �tero � do tamanho de um punho, segundo livro de Ang�lica Freitas, recentemente reeditado pela Companhia das Letras, vem cumprindo papel especial dentro da literatura contempor�nea brasileira. Tornou-se um cl�ssico dos nossos tempos, influenciando parte significativa da poesia publicada nos �ltimos anos. L� fora os leitores tamb�m se entusiasmaram com o trabalho da poeta. Seus poemas foram traduzidos para Estados Unidos, Alemanha, Espanha, Fran�a e M�xico, entre outros. Volta e meia ela � convidada para festivais nacionais e estrangeiros. Sabemos, no entanto – basta olhar o semblante de alguns no poder –, que eles odeiam o entusiasmo. Odeiam a descoberta. A diferen�a. Se h� algum lema que os guia, �: continuaremos sempre os mesmos.

Em nome de continuar sempre os mesmos, recusam-se at� a estudar. E depois v�m falar de escola e universidade… Com qual autoridade? Se recorressem a Freud, por exemplo, saberiam que a sexualidade est� j� presente na crian�a. Obviamente, n�o como a dos adultos, isso est� posto. Mas, mesmo tendo boas condi��es, trabalhando em cargos relevantes, eles n�o estudam. Estudar seria um perigo: estudar muda. E eles n�o podem mudar. Mudar � um risco �s suas cren�as. Aferram-se a elas. Acreditam, assim, parecerem respeit�veis e dur�es, quando, de fora, percebemos o arremedo de ressentimento e fragilidade. N�o seria problema, se o papel ao qual se prestaram n�o afetasse nossas vidas, a arte, a cultura e a educa��o no pa�s.

Nesse caso, talvez o problema seja a sexualidade da mulher – e haver uma mulher que escreva sobre o corpo sem que ele passe por certo prisma do prazer masculino heterossexual, mas sim, quando o faz, pelo que ele tem de opressivo.  Para o deputado, “� lament�vel pessoas que t�m a condi��o de escrever uma coisa dessas”. � o que ele disse, direcionando sua fala n�o s� para a obra como para a autora. Triste.

O cerceamento ao imagin�rio parte de quem se ressente da vida vivida de uma forma que eles n�o vivem. Uma mulher que gosta, � o horror para esses tipos. Como demonstrou recentemente o prefeito carioca, pastor Marcelo Crivella, ao menosprezar senten�a oficial de uma ju�za porque a ju�za gosta de usar vestidos, manter seu cabelo arrumado e fazer tatuagens:

“A ju�za tem seus 40 anos e � muito bonita. Uma beleza de parar o tr�nsito, mas n�o precisa praticar, n�? N�o precisa praticar. Interessante, porque � dif�cil encontrar mulher teimosa. Isso � raro, n�o � gente? Normalmente, elas concordam, n�? Normalmente…”

Nota-se como precisamos ler Ang�lica Freitas. Dava at� para fazer um poema com isso. Um poema, como alguns do livro, que expusesse a indig�ncia mental, a pobreza da vis�o de mundo, a sensibilidade tosca de certos sujeitos. Um poema que impactasse, ao escancarar discursos que procuram cercear o outro. A poesia, pelo contr�rio, n�o procura cercear, ela � via de contato com o outro.  Outra linguagem, outras ideias, sensa��es. Outras formas de olhar para as coisas, os corpos, as palavras, para si mesmo. E para a pr�pria poesia. Que adolescentes conhe�am a diversidade na poesia, uma poesia t�o f�rtil que algu�m de mentalidade regressiva infelizmente queira restringir sua circula��o, � algo que s� podemos louvar. O triste � termos de conviver com agentes de poder cujos discursos n�o expandem nada, n�o t�m nenhum interesse pela vida, por suas possibilidades, pela diferen�a, e apenas celebram a si mesmos, em seu marasmo e amargura.

No dia seguinte � sess�o na Assembleia, a mo��o de rep�dio foi aprovada.

Uma can��o 
popular (s�culos 19-20)

uma mulher incomoda
� interditada
levada para o dep�sito
das mulheres que incomodam

loucas louquinhas
tant�s da cabe�a
ataduras banhos frios
descargas el�tricas

s�o porcas permanentes
mas como descobrem os maridos
enriquecidos subitamente
as porcas loucas trancafiadas
s�o muito convenientes

interna, enterra

*Leonardo Villa-Forte � autor de Escrever sem escrever: literatura e apropria��o no s�culo XXI (ensaio/teoria), O princ�pio de ver hist�rias em todo lugar (romance), O explicador (contos) e Pagin�rio (interven��es urbanas)



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