
Em entrevista exclusiva ao Estado de Minas, o jornalista Laurentino Gomes revela as surpresas que teve na apura��o do seu extenso trabalho para escrever Escravid�o. E tamb�m aponta a desigualdade social e o preconceito racial como legados da escravid�o. "Quando a gente fala de desigualdade social no Brasil, est� falando de uma aboli��o que abandonou os escravos e seus descendentes � pr�pria sorte. Ent�o, essa foi a minha primeira surpresa: ver o quanto o assunto � importante. A escravid�o explica todos os grandes eventos hist�ricos no Brasil, a pr�pria coloniza��o, nossos ciclos econ�micos, a guerra contra os holandeses, a independ�ncia, a Rep�blica", afirma. O escritor revela tamb�m que Minas Gerais ser� o destaque do segundo livro da s�rie, que abordar� a escravid�o no s�culo 18, no ciclo do ouro e da minera��o. "Esse leque de cores brasileiras, da diversidade brasileira de hoje, � plantado principalmente em Minas Gerais do s�culo 18, por isso me interessa muito. Esse livro vai ser basicamente em Minas Gerais", conta.
Qual foi o principal aprendizado durante a pesquisa e a produ��o do livro?
O principal aprendizado foi a import�ncia do tema. Quando estudei no ensino fundamental, m�dio, mesmo na faculdade, eu simplesmente n�o tive contato com a escravid�o. Passava pela Princesa Isabel, Lei �urea e olha l�. Ao pesquisar esse assunto, me dei conta que n�o tem nenhum outro tema t�o importante na hist�ria do Brasil. Tudo que j� fomos, o que somos hoje e o que a gente vai ser daqui para frente tem a ver com as ra�zes africanas. N�o s� do ponto de vista cultural, n�o s� do ponto de vista num�rico. O Brasil foi o maior territ�rio escravista da Am�rica. 5 milh�es de escravizados entraram no Brasil em tr�s s�culos e meio, como tamb�m eu diria que o principal desafio do Brasil no s�culo 21 � enfrentar o legado da escravid�o, que � sin�nimo de desigualdade social. Quando a gente fala de desigualdade social no Brasil, est� falando de uma aboli��o que abandonou os escravos e seus descendentes � pr�pria sorte. Ent�o, essa foi a minha primeira surpresa: ver o quanto o assunto � importante. A escravid�o explica todos os grandes eventos hist�ricos no Brasil, a pr�pria coloniza��o, nossos ciclos econ�micos, a guerra contra os holandeses, a independ�ncia, a Rep�blica... o pano de fundo, o alicerce disso tudo � a escravid�o. Explica a forma como as coisas foram acontecendo. Estrategicamente, a quest�o mais fundamental que o Brasil tem que enfrentar no s�culo 21 � a desigualdade, portanto � o legado da escravid�o, e tamb�m a quest�o do preconceito racial. Criamos alguns mitos a respeito de n�s mesmos, por exemplo, aparece com muita for�a em Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, que ter�amos tido uma escravid�o branda, ben�fica, patriarcal e o resultado seria uma grande democracia racial. A� voc� olha o Brasil de hoje, entra numa rede social agora, e voc� vai ver o quanto somos preconceituosos. Ent�o, essas foram as minhas principais surpresas. E tamb�m as vis�es conflitantes a respeito da escravid�o: tem uma hist�ria branca e tem uma hist�ria negra. E por isso que tive esse desafio. Desenvolvi essa ideia do olhar, um olhar que olha as duas divis�es e tenta fazer uma s�ntese, de uma forma respeitosa, mas muito atenta �s vis�es contradit�rias que o tema desenvolveu at� hoje.
Que mitos voc� desconstr�i no livro?
O Zumbi � um caso t�pico? Existe uma constru��o mitol�gica do Zumbi, especialmente durante o s�culo 21, como o her�i dos destitu�dos, n�o s� da causa negra, mas tamb�m dos oper�rios, dos camponeses, de todos os exclu�dos da sociedade brasileira. E tem outra constru��o que est� em andamento atualmente, e que vem muito por exemplo de um movimento que chamaria quase que de supremacismo branco no Brasil, que tenta mostrar o Zumbi com senhor de escravo, desqualificado, e que n�o tem import�ncia nenhuma. Ent�o, o que me impressiona nesses personagens hist�ricos � que, �s vezes, quanto mais difuso ele �, quanto menos informa��o concreta e documental voc� tem, mais f�cil � construir o imagin�rio sobre ele. E o Zumbi � um caso t�pico. Se sabe muito pouco a respeito de Zumbi, ali�s, h� d�vida sequer se houve um ser humano l� em Palmares chamado Zumbi, nome pr�prio. Aparentemente, era uma nomenclatura militar, era um chefe militar. Teriam existidos v�rios zumbis e o �ltimo deles morreu lutando em 1695. Mas da� o Zumbi vai adquirindo novas roupagens ao longo do tempo. � personagem em permanente constru��o e reconstru��o, como acontece com outros personagens na hist�ria do Brasil: Tiradentes, dom Pedro I, Pedro II. Eles v�o sendo modificados de acordo com a forma como olhamos para o passado. Por isso, � importante ser transparente na hora de escrever um livro, tem que explicar essas diferentes vis�es, sem cair na tenta��o de assumir uma vers�o apenas, sem observar o outro.
Como escritor branco, qual seu lugar de fala para discutir um tema como escravid�o?
A primeira � que escravid�o nem sempre foi sin�nimo da cor da pele negra, como mostro no livro. Essa � uma constru��o recente, do s�culo 16, 17, em que se desenvolveu uma ideologia racista com base at� teol�gica, que falava da maldi��o de Cam, filho de No� que tinha sido amaldi�oado e ter ido para a �frica e os seus descendentes teriam se tornado negros e portanto candidatos naturais � escravid�o. Essa era uma coisa muito discutida nessa �poca para justificar a ideia de que os africanos seriam candidatos naturais a serem escravizadas. Mas at� o fim do s�culo 17, a maioria dos escravos no mundo eram brancos. Mostro livro que a pr�pria palavra escravo, slave, slavos em latim, vemde de povo eslavo, branco de olhos azuis, que era escravizado no Leste da Europa aos milh�es desde a �poca do Imp�rio Romano e vendidos no Mediterr�neo. Ent�o isso � uma coisa recente. N�o podemos fazer essa associa��o autom�tica entre escravid�o e negritude, inclusive cair na armadilha da ideologia racista que justificou a escravid�o no Brasil. A segunda raz�o pela qual me sinto confort�vel nesse lugar de fala � que escravid�o � assunto de todos n�s brasileiros. Cito uma frase do embaixador Alberto da Costa e Silva: “Todos n�s que estamos vivos temos a ver com a escravid�o, por que ou somos descendentes de escravos ou de senhores de escravos ou de imigrantes europeus que chegaram aqui para substituir a m�o de obra escrava ou de ind�genas, que foram escravizados e exterminados no passado. Al�m disso, do ponto de vista de responsabilidade social, de cidadania, a escravid�o � assunto com a qual todos n�s brasileiros dever�amos nos preocupar. Ali�s, dizer inclusive que escravid�o � assunto apenas de negro ou de afrodescendente � fugir do assunto, � tentar escapar da responsabilidade de enfrentar o legado da escravid�o. Ent�o, escravid�o � assunto de todos n�s. Quem tiver alguma coisa para se manifestar, deve, especialmente, como � esse caso, que � tentar infundir algum tra�o de racionalidade. Numa discuss�o que hoje est� muito popularizada, muito intolerante nas redes sociais. Ent�o, a melhor forma que de enfrentar isso � pelo estudo da Hist�ria. A� sim, a gente infunde algum tra�o de racionalidade nesse tema.
A elite e a classe m�dia brasileir�o ainda mant�m mentalidade escravista?
A escravid�o criou de fato uma sociedade de castas no Brasil. No dia a dia, nas rela��es pessoais, nas rela��es sociais, nas rela��es de trabalho. Esse Brasil que criou mitos a respeito da sua democracia racial, de fato tem segrega��o t�o ou mais violenta do que ocorreu nos EUA, antes da luta pelos direitos civis do Martin Luther King. � s� ir ao Rio de Janeiro hoje, por exemplo, e observar quem mora naquelas comunidades e periferias mais insalubres, perigosas, dominadas pelo crime organizado e sem nenhum servi�o p�blico, sem nenhuma assist�ncia do Estado, a popula��o descendente de escravos. Quem mora nos bairros mais ricos de boa qualidade de vida, os brancos descendentes de europeus. Ent�o, existe uma segrega��o geogr�fica, f�sica no Brasil de hoje, embora a gente finja que n�o exista. E essa segrega��o � tamb�m nos indicadores sociais. Voc� pega todos os crit�rios de renda, moradia, sa�de, seguran�a, saneamento... quem � que ocupa os melhores postos de trabalho, tanto na administra��o privada, quanto na administra��o p�blica. Vai no Senado, no Congresso, no Supremo Tribunal Federal, na dire��o das empresas, ou pega as profiss�es mais qualificadas, como piloto de avi�o, arquiteto, m�dico, engenheiro uma minoria muito infama � constitu�da de descendentes de escravos africanos. A imensa maioria � descendente de colonos brancos, europeus. O que mostra que essa segrega��o � f�sica, geogr�fica, mas ela tamb�m � em termos de oportunidades. Embora essa popula��o seja majorit�ria, � a que menos t�m oportunidades. Isso mostra que o legado da escravid�o est� vis�vel, na paisagem f�sica das cidades brasileiras, no ambiente de trabalho e tamb�m nas estat�sticas do IBGE. � f�cil de ver.
Por que Minas Gerais guiar� o segundo livro sobre a escravid�o?
Esse primeiro volume, eu diria que tem mais �frica do que Brasil, por que para come�ar a estudar a hist�ria da escravid�o no Brasil, precisa olhar com muita aten��o o que era a �frica. Porque l� que est� a raiz africana, que cruzou o Oceano Atl�ntico e deu origem � escravid�o no Brasil, depois da ind�gena, evidentemente. Mas o s�culo 18 � importante por duas a��es. A primeira � num�rica. Depois da descoberta de ouro e diamante em Minas Gerais, entraram no Brasil 2 milh�es de escravos. � um n�mero t�o grande, que a popula��o brasileira no fiml do s�culo 17, que era de 300 mil habitantes, exclu�dos os �ndios, que n�o eram contados nas estat�sticas, salta para 3 milh�es na �poca da chegada da corte portuguesa. Dois milh�es eram escravos africanos, que entraram para trabalhar nas minas de ouro e diamante. � nessa expans�o da fronteira brasileira em dire��o a Goi�s, Mato Grosso, ao Centro-Oeste e � Amaz�nia. � no s�culo 18 tamb�m que eu diria que come�a de fato a nascer a �frica brasileira que temos hoje. E Minas Gerais � o cen�rio disso. Voc� tem as irmandades religiosas, uma escravid�o urbana e de servi�os em Minas Gerais, que � muito diferente da escravid�o nos engenhos de a��car de Pernambuco e da Bahia, porque � uma proximidade maior entre senhores e cativos, o que come�a a favorecer a alforria. Os escravos come�am a encontrar espa�os, por exemplo, na minera��o de ouro e diamante para fazer p� de meia, acumular uma certa poupan�a, comprar alforria. As mulheres passam a trabalhar em atividades urbanas de fornecimento de servi�os, comida, doce, servi�os dom�sticos e elas tamb�m se tornam protagonistas da alforria em Minas Gerais. No fim do s�culo 18, Minas Gerais � a maior concentra��o de escravos do continente americano, mas � tamb�m onde j� tem a maior popula��o livre, que seria uma caracter�stica muito importante do Brasil no s�culo 19. Ent�o, estudar Minas Gerais, tem comida, dan�as, m�sica, costumes… Esse leque de cores brasileiras, da diversidade brasileira de hoje, � plantada principalmente em Minas Gerais do s�culo 18, por isso me interessa muito. Esse livro vai ser basicamente em Minas Gerais.