Um atentado terrorista recente no Brasil lembrou um filme, em especial uma cena. Dois homens discutem. Um violento e outro melanc�lico. Um n�o pode ser sem o outro. O violento, com inflex�o de guru, diz que “uma na��o se tempera na porrada. Mesmo os americanos, com essa babaquice de democracia, vez ou outra d�o uma zerada na 'negrada' deles. Se a gente vai ficar dando for�a pra leseira dessa 'baianada' de merda, vamos chegar aonde?”.
A cena � de Garotas do ABC, de Carlos Reichenbach. Lan�ado em 2003, muita gente disse que colocar em cena o s�mbolo integralista era coisa "implaus�vel", uma fantasia descabelada do Carl�o porque esse ide�rio pertencia ao passado e talvez o diretor n�o conhecesse com precis�o o movimento para relacion�-lo a um grupelho fascistoide no s�culo 21 no ABC Paulista.
Apesar da falta de compreens�o t�pica de quem s� admite realismo, naturalismo e an�lise crua dos fatos no cinema, essa fala tinha a seu favor um evento: naquele ano tomou posse um presidente que havia sido oper�rio no ABC e, migrante nordestino, subia ao poder em uma transi��o tranquila: a democracia, enfim, funcionava. Ele estava na contram�o do apocalipse fascista preconizado pelo personagem de Selton Mello. 2003 era, aparentemente, o enterro de tipos como Salesiano.
Dezessete anos se passaram e ver esse filme hoje surpreende porque, entre outros deslumbres, conseguiu ir al�m do objetivismo hist�rico que muitas vezes � calcado em uma l�gica temporal ref�m dos eventos imediatos. Reichenbach evoca por meio de uma imagina��o exuberante nossa modernidade an�mala as estruturas duradouras e semiocultas de uma sociedade como a brasileira, em que coexistem diferentes tempos “que se adiantam e se atrasam”, como escreveu o soci�logo Jos� de Souza Martins, em uma trama composta por elementos po�ticos e contradi��es na forma de um melodrama de aventuras.
Esse acesso do filme ao fascismo recalcado e sua desambigua��o n�o se deu, necessariamente, por agenciar os sentidos mais literais e evidentes na vida social contempor�nea em 2002/2003, mas, sim, por explorar o imagin�rio social em uma f�bula de amplo repert�rio simb�lico – moderno e arcaico – em que temos, por exemplo, a viol�ncia “sagrada” do canga�o, a m�quina de sonhos da ind�stria cultural (da m�sica, do cinema) e tamb�m os s�mbolos p�trios �quela altura aparentemente desbotados (no caso, os do Ex�rcito, caros � fam�lia da protagonista Aur�lia) e, como j� dissemos, a letra sigma, o s�mbolo do integralismo, que condensa um conte�do recalcado no imagin�rio social e que reaparece de maneira distorcida e deslocada, mas significativa.
O diretor n�o quis dizer que Salesiano e sua gangue eram mera e simplesmente o integralismo recauchutado, mas aponta ali – na viol�ncia e no chamamento � ordem – o mesmo el� que animou o integralismo no Brasil e que, n�o superado, era nosso “esqueleto no arm�rio”.
Na �poca, Garotas do ABC foi acolhido com alguma condescend�ncia e pouca compreens�o. N�o � pra menos: existia algo de anacr�nico na sua recusa ao naturalismo, na invers�o que realizava nas l�gicas sociais bin�rias e da linguagem que n�o se conciliava com as expectativas cultivadas por um p�blico acostumado aos filmes mais convencionalmente pol�ticos."Esse desafio da imagina��o na sua pot�ncia � o que nos interessa aqui e o que pode estimular um debate prof�cuo nesse momento do pa�s"
O filme for�ava a imagina��o nos seus limites e isso � sempre motivo de alguma estranheza. Um gesto de liberdade como esse, fundado na imagina��o rebelde, � capaz de conceber outras narrativas para nosso passado e desvendar alguns vetores poss�veis de interpreta��o do presente. N�o fa�o aqui uma defesa l�rica ou rom�ntica da imagina��o na cria��o art�stica (no caso, cinematogr�fica), mas a proposi��o � pens�-la como um exerc�cio necess�rio de transfigura��o da miragem da realidade e que se recusa a responder �s expectativas cultivadas – sejam elas nobres ou vis.
Atual circunst�ncia pol�tica
Retomar um filme de quase duas d�cadas atr�s como Garotas do ABC para falar de hoje e de nossa vida p�blica, falar de cinema e do papel do cinema n�o � uma escolha aleat�ria ou conveniente. Esse desafio da imagina��o na sua pot�ncia � o que nos interessa aqui e o que pode estimular um debate prof�cuo nesse momento do pa�s.Um momento em que ocorre uma disputa entre formas de entender o passado e formas de projetar o futuro. Nossa atual circunst�ncia pol�tica � o retorno de um passado recalcado (como o sigma embaixo do blazer do protofascista de Garotas do ABC), ainda que se apresente falsamente como futuro, como novo.
Conjunturalmente, n�o � s� uma ruptura que vemos, mas um esfor�o (ainda que celerado) de mudan�a de paradigmas em uma obscenidade perversa. Assistimos a isso sentados em resigna��o lamuriosa ou, no melhor dos casos, em resist�ncia reativa que “bota a boca no trombone” com pouco ou nenhum resultado efetivo.
Quando acontece uma viol�ncia n�o basta s� “resistir”, mas se reinventar e buscar uma estrat�gia nova. A imagina��o nos sugere n�o s� a reconfigura��o de nossas pr�ticas sociais e pol�ticas, mas tamb�m de nossos paradigmas.
Tem�tica da mostra
Pensando em todas essas quest�es, “A imagina��o como pot�ncia” � a tem�tica da 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes e sugere a imagina��o como a via privilegiada para desafiar a no��o convencional de realidade (a interpreta��o dos fatos) e de realismo (no caso, a representa��o est�tica desses fatos) em um momento de constrangimento aos imagin�rios que est�o fora dos padr�es normatizados, uma guerra que n�o se d� s� no campo institucional, no caso das pol�ticas p�blicas, mas tamb�m no campo simb�lico, no que diz respeito � produ��o cultural como um todo.
Em 2019, foi poss�vel reconhecer que os filmes buscaram n�o s� o testemunho cr�tico dos tempos passado e presente, mas a produ��o de imagens que se lan�aram a imaginar outros mundos, outras possibilidades de exist�ncia. E, ainda, que as imagens possam tamb�m nos servir mais como sublima��o do que como ruptura de nossas convencionais l�gicas sociais e de linguagem. � importante admitir como o cinema tomou parte no processo cultural, ainda que seu alcance seja menor do que foi no passado e o acesso � maior parte dos filmes realizados � coisa ainda muito restrita.
Neste ano que come�a, a Mostra de Cinema de Tiradentes revela uma produ��o que vem � luz sob a influ�ncia de um processo coletivo que gestou o esc�ndalo que foi o ano de 2019. De um lado, a pot�ncia da imagina��o em muitos filmes se deu por meio da fabula��o, em uma po�tica da ang�stia e do medo em que o mundo imaginado revela um outro olhar para esses impasses, rompendo, em muitos casos, com uma no��o vulgar de realismo que muitas vezes se provou mais esterilizante do que criativa no cinema brasileiro.
Por outro lado, � poss�vel ver em alguns trabalhos o gesto criativo que n�o vai trabalhar a partir da distopia, mas vai criar imagens e procedimentos de linguagem com referenciais que devem muito pouco (ou nada) aos modelos em voga no mercado de cinema de autor internacional. H� fen�menos bem variados, que v�o desde o di�logo com o cinema de g�nero (fic��o cient�fica, terror), passando por filmes que evocam em sua narrativa outras no��es de temporalidade e cosmogonias (afro, ind�gena), identidades (sobretudo LGBTI) e, tamb�m nos deram filmes identificados como document�rio, mas que se lan�am a criar imagens fora do arb�trio do real."O diretor n�o quis dizer que Salesiano e sua gangue eram mera e simplesmente o integralismo recauchutado, mas aponta ali - na viol�ncia e no chamamento � ordem - o mesmo el� que animou o integralismo no Brasil e que, n�o superado, era nosso 'esqueleto no arm�rio'"
O cinema � um lugar de disputas simb�licas, que podem dar forma (e um sentido) sens�vel �s novas ideias e perspectivas e, tamb�m, criar fissuras nos consensos que sustentam os modos de uma comunidade e uma sociedade entenderem e enxergarem a si pr�prias, sua hist�ria, suas feridas abertas e suas possibilidades, como foi o caso j� citado de Garotas do ABC, t�o mal compreendido em 2003 e que hoje se apresenta revelador por sua capacidade prof�tica que, diferentemente do clich� que pode sugerir, n�o prediz o futuro, mas reconhece e anuncia uma dimens�o menos vis�vel do real e do presente, onde residem o passado (seus fantasmas, sombras, traumas) e as possibilidades de um futuro.
O nosso compromisso com o cinema brasileiro � aprendermos a olhar, perscrutar e discutir esses filmes hoje, � entender o peso e a medida do que as fabula��es e fantasmagorias nos d�o a ver. � injusto que tenhamos de esperar duas d�cadas para consolidar no nosso imagin�rio os seus sentidos potentes e deflagradores. A imagina��o nos convida a deixar de ser v�timas do passado e ref�ns do futuro. A sua pot�ncia � a irrup��o do novo, que detona com a insipidez criativa e, nos melhores casos (sempre os mais excitantes e perigosos), pode nos levar responder e agir hoje.
*Francis Vogner dos Reis � jornalista, mestre em meios e processos audiovisuais pela ECA-USP, cr�tico de cinema e coordenador curatorial da 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes.
23ª MOSTRA DE CINEMA DE TIRADENTES
Locais: Centro Cultural Yves Alves, Largo das F�rras, Larga da Rodovi�ria, Escola Estadual Bas�lico da Gama
Data: De 24 de janeiro a 1º de fevereiro
Tema: A imagina��o como pot�ncia
Homenagens: atores Ant�nio e Camila Pitanga
Programa��o gratuita:
Exibi��o de 113 filmes (31 longas, 1 m�dia e 81 curtas)
39 mesas de debates, performances art�sticas e musicais, oficinas de lan�amentos de livros