
O que est� por vir ap�s a pandemia � uma crise econ�mica de grande magnitude, nunca vivenciada pela maior parte dos brasileiros em idade adulta. Para evitar que se transforme em depress�o econ�mica, ser�o exigidas do governo federal pol�ticas coerentes e concatenadas. Agrava este cen�rio o comportamento de permanente confronto do presidente da Rep�blica Jair Bolsonaro, dos seus filhos e de alguns de seus ministros da chamada “ala ideol�gica”, que quando n�o se digladiam com ministros do pr�prio governo, criam e alimentam novas crises, a mais recente contra a China, maior parceira comercial do Brasil.
A avalia��o � do economista Paulo Nogueira Batista J�nior, ex-diretor executivo pelo Brasil e outros pa�ses (2007-2015) no Fundo Monet�rio Internacional (FMI) em Washington. Ele foi tamb�m vice-presidente brasileiro (2015-2017) no Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), estabelecido pelos Brics, em Xangai e integrou, entre 1985 e 1987, a equipe do governo Jos� Sarney que negociou com o FMI e os bancos credores a d�vida externa brasileira.
“Chega �s raias da loucura ver que o ministro da Educa��o deboche da China e um dos filhos do presidente insistam em fazer coment�rios depreciativos sobre aquele pa�s. � realmente, digamos assim, um comportamento alucinado”, considera o economista, autor do livro O Brasil n�o cabe no quintal de ningu�m – os bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI, nos Brics e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata (Editora LeYa).
Em entrevista exclusiva ao Estado de Minas, Paulo Nogueira Batista J�nior considera que no cen�rio da geopol�tica mundial da p�s-pandemia, a China tende a se destacar pela capacidade de supera��o da crise; diferentemente de certa incapacidade de rea��o organizada que t�m demonstrado pot�ncias tradicionais do Atl�ntico Norte. “As pot�ncias ocidentais dos dois lados do Atl�ntico Norte sofreram tr�s grandes baques: a crise financeira econ�mica de 2008-2010, a ascens�o de lideran�as retr�gradas e agora a crise do novo coronav�rus, que n�o est�o sabendo administrar bem”, avalia.
Qual foi o impacto no Brasil da crise em 2008, como sa�mos dela e o que perspectiva temos agora para sair da atual crise provocada pelo novo coronav�rus?
O Brasil foi um dos pa�ses que se recuperou mais rapidamente da crise internacional de 2008-2010. Sentimos a crise, ela foi profunda e atingiu parceiros econ�micos importantes, notadamente os Estados Unidos e a Uni�o Europeia, mas o Brasil, assim como outros emergentes, saiu rapidamente daquela crise. O pa�s estava em condi��es melhores naquela �poca, vinha se recuperando, se fortalecendo. J� a crise atual pega o Brasil em um momento de fragilidade: desde 2015 � um pa�s polarizado, enfraquecido, a economia atravessou uma recess�o profunda entre 2015 e 2016, nunca se recuperou inteiramente. Tivemos v�rios anos de crescimento med�ocre, de 2017 a 2019. Havia a perspectiva de que o pa�s pudesse crescer um pouquinho mais em 2020, mas com esse choque brutal, originado da crise do novo coronav�rus, teremos outro ano de recess�o em 2020. A quest�o hoje para n�s – e para a maior parte da economia mundial – n�o � se vamos conseguir evitar a recess�o ou n�o. A recess�o � inevit�vel. Mas a quest�o posta � se o governo brasileiro conseguir� adotar pol�ticas coerentes para evitar que a recess�o se transforme numa depress�o.
Quais s�o os desafios imediatos a serem enfrentados pelo Brasil?
Primeiro, responder ao risco de sa�de p�blica com medidas eficazes de conten��o da pandemia no territ�rio nacional. E, segundo, defender os n�veis de atividade econ�mica e de emprego no pa�s. No meu entender, o governo brasileiro est� falhando nos dois aspectos. Por qu�? Uma raz�o fundamental � a atitude tumultuada do Presidente da Rep�blica no combate � pandemia, que dificulta muito uma resposta eficaz, apesar dos esfor�os do Minist�rio da Sa�de e dos governadores. Est� faltando, tamb�m, uma rea��o macroecon�mica forte e convincente. As medidas tomadas no campo fiscal e monet�rio s�o tardias, em muitos casos insuficientes e em alguns casos, discut�veis. Basicamente, a equipe econ�mica mostra desde o in�cio da crise, grande dificuldade de fazer a necess�ria mudan�a de rumo. Num primeiro momento, integrantes da equipe econ�mica chegaram a declarar que as reformas estruturais seriam a melhor vacina contra a pandemia. Insistiam ainda naquele discurso mon�tono, no samba de uma nota s�. Agora estamos diante de emerg�ncia perigos�ssima e esse discurso caiu por terra. Por�m, a equipe econ�mica do governo est� tendo dificuldade de articular uma resposta � crise. Foi pressionada por todos os lados para adotar medidas de expans�o fiscal, monet�rias, de emerg�ncia na �rea social, mas est� respondendo de forma lenta e confusa.
O que esperar desta crise no Brasil para o setor produtivo e o desemprego?
A economia brasileira sofre um choque de demanda externa, um choque de demanda interna e um choque de oferta ao mesmo tempo, todos tr�s de grandes propor��es. Ningu�m sabe ao certo, mas a Economist Intelligence Unit previu recentemente queda de 5,5% do PIB brasileiro em 2020. Poderemos ter uma queda no m�nimo da magnitude das quedas anuais de 2015 e de 2016. O desemprego vai crescer muito rapidamente. E a ind�stria e o setor de servi�os v�o sofrer mais. Todos os setores v�o sofrer: servi�os, ind�stria, talvez a agricultura sofra um pouco menos, mas mesmo agricultura, porque a agropecu�ria exportadora vai ser afetada, inclusive por fatores que n�o tem a ver com a pandemia. O que vai crescer na crise? O gasto p�blico, por causa da emerg�ncia macroecon�mica. A d�vida p�blica aumentar� consideravelmente. Cabe perguntar, novamente, como � poss�vel que o Estado brasileiro, supostamente quebrado e falido, possa de repente salvar a economia com substancial aumento de seus gastos, d�ficit e d�vida? � curioso. Na realidade, nunca foi correto dizer que o governo federal estava quebrado. � verdade que alguns estados da federa��o est�o quebrados; Rio de Janeiro e Minas Gerais, por exemplo. N�o a Uni�o, que tinha dificuldades fiscais. Mas o discurso de “quebra” da Uni�o era caricatural, servia a prop�sitos pol�ticos, n�o raro escusos, como facilitar a aprova��o de medidas dif�ceis, com efeitos sociais regressivos, e a venda de empresas p�blicas. Mas, deixando isso de lado, numa crise grave como a atual � inevit�vel que o gasto p�blico aumente rapidamente para fazer face � amea�a � sa�de p�blica, sustentar a demanda efetiva e atender os setores mais vulner�veis. Uma parte desse gasto p�blico pode ser atendida com a expans�o monet�ria pura e simples; outra parte com impostos sobre setores mais ricos. Contudo, aqui como nos outros pa�ses, a maior parte vai ser financiado com a d�vida p�blica. Ent�o, uma quest�o no p�s-crise vai ser como lidar com essa d�vida p�blica aumentada, em raz�o da crise do coronav�rus. Ser� um desafio muito importante nos pr�ximos anos. O Brasil e outros pa�ses ter�o d�vidas p�blicas maiores como percentagem do PIB. A carga de juros do setor p�blico ser� mais alta, a menos que as taxas de juro continuem extraordinariamente baixas. Se a despesa de juros for mais alta, como � prov�vel, o super�vit prim�rio requerido para equilibrar as contas ser� pesado. Se os governos tentarem aumentar o super�vit prim�rio rapidamente, colocar�o em risco a recupera��o das economias. O debate sobre austeridade reaparecer�, fatalmente.
O ministro da Educa��o ironizou a China e criou uma tens�o diplom�tica. Que consequ�ncias o pa�s pode colher dessa a��o?
N�o faz sentido buscar embates com nenhum pa�s neste momento. Mais do que nunca os pa�ses precisam cooperar. E � rid�culo comprar brigas gratuitas com nosso maior parceiro comercial. A China � um pa�s que hoje pode nos ajudar com insumos e equipamentos para combater a pandemia. Chega �s raias da loucura ver que ministro da Educa��o deboche da China e um filho do presidente insista em fazer coment�rios depreciativos sobre aquele pa�s. � realmente, digamos assim, um comportamento alucinado.
Que tipo de oportunidades o Brasil perde com a perda de vitalidade do processo dos Brics?
Arrisca a perder muito. Quando o Brics foi formado em 2008, eu estava em Washington, no FMI, e participei desde o in�cio nas reuni�es do grupo como delegado brasileiro. O Brasil, na �poca, estava em outro diapas�o. Defendia seus interesses nacionais, e juntava-se, tamb�m, a outros pa�ses emergentes importantes, para rever a arquitetura financeira internacional, como eu explico no livro que publiquei recentemente. As dificuldades de avan�ar na reforma do FMI e do Banco Mundial levaram os Brics a criar mecanismos pr�prios de financiamento: um fundo monet�rio dos Brics, denominado de Arranjo Contingente de Reservas, e o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) do qual fui vice-presidente entre 2015 e 2017. Os Brics s�o um foro que re�ne os principais pa�ses emergentes. S� para ter uma ideia, R�ssia, �ndia, China e Brasil, - a �frica do Sul chegou depois -, esses quatro fundadores do processo Brics, a partir de 2008, s�o junto aos Estados Unidos os �nicos cinco pa�ses do mundo que fazem ao mesmo tempo parte das listas dos dez maiores PIBs, dos dez maiores territ�rios e das dez maiores popula��es. Ent�o, os Brics re�nem quatro dos cinco gigantes do mundo em termos de economia, territ�rio e demografia. Estabeleceu-se uma intera��o entre os cinco pa�ses que beneficia os pa�ses do ponto de vista tecnol�gico, pol�tico, econ�mico. Esse foro foi criado, recorde-se, numa �poca em que o Brasil se comportava como o grande pa�s que �. At� 2014, o Brasil era um motor do processo Brics. Entrou em crise em 2015 e at� agora n�o conseguiu se reerguer. Adota, no governo Bolsonaro, uma pol�tica de alinhamento autom�tico com os Estados Unidos. N�o faz o menor sentido para um pa�s com o tamanho do Brasil.
Num momento como este, que resposta o Brics poderia dar aos cinco pa�ses membros?
O Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) pode oferecer empr�stimos de longo prazo, em condi��es atraentes, para os pa�ses que apresentem projetos ligados ao combate � crise. O NBD j� aprovou um projeto nesse sentido para as tr�s prov�ncias mais atingidas na China. E avisou aos outros quatro membros, que est� disposto a fazer opera��es em montantes semelhantes e at� superiores, se os pa�ses apresentarem projetos ligados ao enfrentamento da crise do novo coronav�rus. As fontes internacionais de financiamento privado sofrem nessas crises retra��es muito marcadas. O que sobra para financiamento externo de longo prazo s�o as fontes multilaterais ou oficiais. E uma delas � o banco dos Brics.
A partir da experi�ncia da crise de 2008-2010, quais setores tendem a ser mais beneficiados nesta interven��o do estado?
� claro que existe um problema agregado, de natureza macroecon�mica, que � a busca de uma compensa��o pelo lado do gasto p�blico para a retra��o do gasto privado. Mas sempre existe tamb�m, nestes momentos, uma quest�o distributiva, ou seja: quais os setores que mais se beneficiam da a��o estatal e quais os setores prejudicados pela omiss�o estatal? Ent�o por exemplo, na crise de 2008-2010, os Estados nacionais dos pa�ses mais afetados, os desenvolvidos, Estados Unidos e europeus, levaram adiante tentativa bem-sucedida de evitar o colapso do sistema financeiro privado, com recursos p�blicos. Ao mesmo tempo, muitos cidad�os norte-americanos e europeus se sentiram abandonados na crise. Ent�o uma das raz�es para a ascens�o de lideran�as da direita populista dos dois lados do Atl�ntico Norte foi o sentimento de grande parte da popula��o de que, na hora da crise, o Estado se apresentou para socorrer as grandes empresas e, sobretudo, os grandes bancos, mas n�o estava ali para socorrer o cidad�o comum, que perdeu a sua casa, perdeu o seu emprego, perdeu a sua renda. A maneira como a �ltima crise foi enfrentada deixou um rescaldo de ressentimento e favoreceu a ascens�o de lideran�as populistas e na verdade, lideran�as n�o liberais, contr�rios ao neoliberalismo no plano econ�mico. Em v�rios pa�ses desenvolvidos, quem se beneficia desse rescaldo de ressentimento s�o lideran�as pol�ticas de direita, que adotam pol�ticas econ�micas baseadas em protecionismo, em certa interven��o estatal. A chamada globaliza��o neoliberal, iniciada com Ronald Reagan e Margaret Thatcher na d�cada de 80 do s�culo passado, sofreu tr�s grandes baques neste novo s�culo. Primeiro a crise originada do sistema financeiro em 2008-2010. E, depois, em parte como consequ�ncia do primeiro, veio o segundo choque com a ascens�o de lideran�as populistas, protecionistas, nos Estados Unidos e em alguns pa�ses europeus. Agora veio o terceiro choque sobre a globaliza��o neoliberal: a crise de 2020, que mais uma vez pede forte interven��o estatal na economia.
Em sua avalia��o, qual ordem econ�mica mundial emerge na p�s-pandemia?
Em termos da geopol�tica mundial, havia desde o in�cio deste s�culo a ascens�o dos emergentes da �sia, com destaque para a China. Na minha leitura, se daqui a algum tempo formos olhar para atr�s, para o per�odo de 2008 a 2020, vamos provavelmente dizer que esses tr�s choques –econ�mico, pol�tico e de sa�de p�blica – aceleram o deslocamento do eixo do poder mundial do Atl�ntico Norte para a �sia. Acelerou-se a multipolariza��o do mundo, com o polo do Leste da �sia se fortalecendo em rela��o ao do Atl�ntico Norte. Se esta minha leitura est� correta, � um faux pas estrat�gico buscar alinhamento estrat�gico com os Estados Unidos. As rela��es com a China se tornam cruciais para a maioria dos pa�ses do mundo. Nos anos recentes, a China tomou v�rias iniciativas para ampliar o escopo da sua presen�a internacional. A nova Rota da Seda � o grande projeto internacional que a China vinha construindo, a vitrine da pol�tica econ�mica internacional da China. Abarca o Leste da �sia at� a Europa, o Norte da �frica com ramifica��es at� em outras regi�es do mundo. � projeto ambicios�ssimo cuja execu��o sofre, claro, com a pandemia, mas que vai continuar. Essa iniciativa chinesa � uma cole��o de grandes projetos de infraestrutura. Controlada a pandemia, a China retomar� com for�a esse projeto. E como a China parece estar saindo rapidamente da crise, ela poder� emergir da crise com ainda mais credibilidade e influ�ncia – para desespero dos americanos que estavam, desde os tempos do governo Obama, alarmados com a r�pida ascens�o dos chineses. Os Estados Unidos e alguns pa�ses europeus n�o est�o administrando t�o bem a crise. Mostram desordem, vacila��es, incapacidade de rea��o organizada. As pot�ncias tradicionais do Atl�ntico Norte podem sair mais machucadas da crise. Aumentaram as chances, j� grandes, de que o s�culo 21 venha a ser o s�culo da China, como o s�culo 20 foi dos Estados Unidos.
Servi�o
O Brasil n�o cabe no quintal de ningu�m
De Paulo Nogueira Batista Jr.
LeYa Brasil
448 p�ginas
R$ 54,90