postado em 15/05/2020 04:00 / atualizado em 15/05/2020 08:11
O escritor carioca S�rgio Sant'Anna morou em Belo Horizonte e lan�ou aqui seu primeiro livro, em 1969 (foto: Chico Cerchiaro/Divulga��o)
"Pode-se come�ar em qualquer parte, e por que n�o com as aranhas? Aranhas-caranguejeiras, peludas e pe�onhentas, que podiam surgir quando menos se esperava e, embora seu cora��o batesse, ele as enfrentava, ou dando uma sapatada nelas na parede ou esmagando-as no ch�o. E ele achava curioso como as aranhas, que pareciam enormes quando vivas, de repente se reduziam a um quase nada quando esmagadas. J� a mulher corria ao topar com uma aranha dessas e ele achava interessante perceber como ela tinha medo de certas coisas e era t�o corajosa para outras, inclusive para viver no lugar onde moravam.
A casa, modesta, era numa rua de terra batida, uma ladeira, em Venda Nova, na periferia de Belo Horizonte. Do lado direito de quem subia havia as casas, cada vez mais pobres � medida que se ia subindo; do outro lado havia a ch�cara e a mata. Nunca tinham vivido num lugar assim, nem ele, nem ela. Ela ganhava pouco como rela��es-p�blicas de um clube e at� ent�o vivera, muito conflituosamente, na casa dos pais. Ele, saindo de um casamento, deixara quase tudo para tr�s, mas n�o o emprego p�blico, embora tivesse se demitido da universidade, que lhe pagava muito pouco e onde ela fora aluna dele. Ele tinha trinta e tr�s anos e ela, vinte e sete. Antes de mudarem para a casa, ela passou um m�s no Oeste Palace Hotel, perto da rodovi�ria.
No princ�pio, n�o tinham nada, nem mesmo uma cama, e dormiam num colch�o velho. Tamb�m n�o havia mesa e cadeiras, faltava at� um chuveiro el�trico e a pr�pria �gua da casa vinha de uma cisterna que a bombeava para uma caixa de cimento no telhado. Havia tamb�m um quintal com alguma coisa plantada, mas tomado principalmente pelo mato, que depois o velho vizinho passou a capinar para eles por uma pequena quantia, pois no mato crescido podiam esconder-se cobras, logo lhes avisaram.
Aos poucos, depois que alugaram a casa, eles foram mandando fazer m�veis essenciais em carpinteiros baratos das redondezas e comprando utens�lios, sempre a pre�os m�dicos, e ela trouxera algumas coisas de casa e outras ganharam de amigos, at� que a casa se tornou minimamente habit�vel. Tamb�m pintaram tijolos e t�buas e fizeram estantes e prateleiras.
Ela possu�a um volks branco, indispens�- vel, pois era o que permitia que morassem naquele lugar.
Ao anoitecer, quando sa�am dos respectivos trabalhos, eles vinham, na hora do rush, pela avenida congestionada que ligava o centro a bairros de periferia, como o deles, e ele n�o podia dirigir porque ainda estava na autoescola e, antes, nunca quisera saber de autom�vel, talvez pelo trauma do desastre com a fam�lia quando ele ainda era pequeno. Havia tamb�m um caminho alternativo para chegar l� e, quando eles vinham por ali, topavam com um trailer abandonado num terreno baldio, um trailer todo colorido e com a inscri��o A FILHA DE DR�CULA, que era retratada com seus caninos pontiagudos. E eles viviam pensando em fazer um curta-metragem de terror ali no trailer, mas nunca fizeram.
Ele vinha tenso por causa da mulher dirigindo e pelo tr�nsito congestionado – ela tinha uma atrofia no nervo �ptico dos dois olhos e comprara a carteira –, at� que che- gavam � lagoa, a mulher dobrava � direita, passava pelo trecho pr�ximo a uma das cabeceiras da pista do aeroporto e depois virava � esquerda e j� estavam no sub�rbio de Venda Nova. A� era s� rodar mais um pouco, chegar � rua deles e dobrar de novo � direita. J� ao entrar na rua eles sentiam al�vio pelo sil�ncio s�bito, s� quebrado pelos latidos de c�es e ru�dos de insetos. Mas o sil�ncio maior acontecia quando o carro era guardado na pequena entrada da casa e o motor, desligado."
Trecho de conto publicado no livro O Homem-mulher (Companhia das Letras, 2014)
P�ginas de gl�ria, por S�rgio de S�*
Amazona (Nova Fronteira, 1986; Companhia das Letras, 2019)
Na primeira edi��o, “novela” era parte do t�tulo. S� que n�o. � romance que se quer t�pica hist�ria de amor, folhetim, quase telenovela. S� que n�o tamb�m. Porque o autor brinca a s�rio com um g�nero, sendo mais pastiche e menos par�dia. N�o � para ser engra�ado, mas para escancarar truques e estere�tipos do best-seller, com imagens fotogr�ficas e cortes cinematogr�ficos, sem jamais perder a ternura. Desde o t�tulo, refer�ncia �s guerreiras, ressalta a for�a da mulher. Para ser lida em moto-descont�nuo, de olho no contradit�rio.
A senhorita Simpson: hist�rias (Companhia das Letras, 1989)
S�o seis contos e a novela que d� t�tulo ao volume. T�o divertido quanto experimental, � ponto alt�ssimo na obra. O voo liter�rio sai do nacional para alcan�ar territ�rio mais amplo. Come�a no lugar do artista no Brasil, passa por um espet�culo circense europeu, faz escala num desses “pa�ses bolivianos” e retorna aos recantos do Rio de Janeiro de diferentes classes sociais e perspectivas diversas, inclusive a do estrangeiro. Se for para descobrir S�rgio Sant’Anna, este livro � o melhor princ�pio (ou o melhor meio).
O monstro: tr�s hist�rias de amor (Companhia das Letras, 1994)
O sexo tudo impulsiona. A primeira hist�ria � a carta de uma engenheira ao amante passageiro escrita – ou erguida – sobre o que � solene e racional, mas “pornografia como uma constru��o assinada tamb�m pelo corpo”. Na segunda, um professor universit�rio (de extremas “lucidez e articula��o verbal”), acusado de estupro e assassinato de uma bela jovem, concede entrevista a uma revista. A terceira hist�ria narra, grande parte em forma de di�logo, a vida de um renomado compositor. O desejo tudo erotiza.
Para gostar de ler (ainda mais)
Um romance de gera��o (Civiliza��o Brasileira, 1980; Bertrand Brasil, 1988; Companhia das Letras, 2009)
Jornalismo, artes c�nicas, literatura. Na primeira edi��o, o subt�tulo: “com�dia dram�tica em um ato”. Na �ltima (2009), “teatro-fic��o”. Transformada em pe�a de teatro dentro da pr�pria obra, a entrevista entre Ele (O escritor) e Ela (A jornalista) se desenrola num apartamento-cen�rio em Copacabana. Sim, Matrioska ou Babuska metida no abismo do artista em conflito com condi��es pol�ticas, comerciais e midi�ticas adversas. Qualquer semelhan�a com o atual momento do pa�s n�o ter� sido mera coincid�ncia.
Breve hist�ria do esp�rito (Companhia das Letras, 1991)
Sant’Anna invoca o demo para nos oferecer hist�rias de humor refinad�ssimo. Tr�s homens em tr�s enrascadas, ou quase. O jornalista desempregado tem de escrever reda��o de emprego para uma igreja evang�lica. O professor de ressaca precisa dar uma aula na universidade. O jurista renomado re�ne amigos e amantes para uma festa de despedida. O autor consciencioso demonstra como habilidades do estilo constroem identidades masculinas. N�o h� nada fora da linguagem e suas vers�es para cada situa��o cotidiana.
O homem-mulher: contos (Companhia das Letras, 2014)
O melhor livro de S�rgio Sant’Anna no s�culo 21 traz um pouco de tudo do autor e a novidade da mem�ria autobiogr�fica. Dezenove hist�rias comprovam que ele n�o perdeu a m�o at� os �ltimos textos. Servem ao novo e ao fiel leitor, entre experimenta��o e vontade de leitura. Estrat�gia da metanarrativa sem solavancos, artes pl�sticas em descri��o reenquadrada, erotismo travestido em identidades cambiantes, rigor formal embalado por tratamento est�tico. Por fim, melanc�lica, a aproxima��o da morte.
*S�rgio de S� � doutor em estudos liter�rios pela UFMG, autor de A reinven��o do escritor: literatura e mass media (Editora UFMG) e professor na Universidade de Bras�lia
No topo da estante
Os 22 participantes desta edi��o especial do Pensar elegem os seus livros favoritos
O voo da madrugada
8 votos
O concerto de Jo�o Gilberto no Rio de Janeiro
3 votos
O monstro: tr�s hist�rias de amor
3 votos
A trag�dia brasileira
2 votos
A senhorita Simpson
2 votos
Anjo noturno
1 voto
O homem-mulher
1 voto
Notas de Manfredo Rangel, rep�rter (A respeito de Kramer)
1 voto
O p�ssaro da perfei��o*
1 voto
*Antologia de contos lan�ada em Portugal pela Editora Tinta da China