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Estado de Minas VIDAS P�STUMAS

"� incr�vel a min�cia esculpida em cada senten�a" de Graciliano Ramos

A escritora e dramaturga Padma Viswanathan fala sobre a dif�cil tarefa de traduzir para o ingl�s a prosa de Paulo Hon�rio, protagonista e narrador do livro S�o Bernardo


postado em 05/06/2020 04:00 / atualizado em 12/06/2020 18:01

(foto: Quinho)
(foto: Quinho)
O “brasileiro encrencado” de S�o Bernardo, como o escritor alagoano Graciliano Ramos definiu a linguagem desse que � um de seus mais conhecidos romances, est� chegando aos leitores norte-americanos numa nova tradu��o que acaba de ser lan�ada nos EUA dentro da prestigiosa s�rie de cl�ssicos da New York Review of Books. A dif�cil tarefa de verter para o ingl�s a prosa arrevesada de Paulo Hon�rio, memor�vel protagonista e narrador do livro, ficou a cargo da escritora e dramaturga Padma Viswanathan. 

Leituras sobre candombl� e compila��es de MPB lan�adas pelo cantor David Byrne (ex-Talking Heads) foram os primeiros pontos de contato dessa canadense, nascida em 1968 numa cidadezinha na Col�mbia Brit�nica, com a cultura brasileira. O plano de escrever uma pe�a teatral sobre a repress�o pol�tica no Cone Sul a trouxe em 1999 ao Brasil, onde ela aprimorou seu portugu�s. 


Antes de encarar S�o Bernardo, Viswanathan j� havia traduzido um cap�tulo de Vidas secas e os c�lebres relat�rios escritos por Graciliano Ramos quando era prefeito de Palmeira dos �ndios, que revelaram ao meio liter�rio brasileiro a verve ir�nica do autor. Traduzir S�o Bernardo foi como tomar abrigo na prosa de um mestre, ela conta nesta entrevista por e-mail, em que discute o desafio de verter para o ingl�s esse cl�ssico da literatura brasileira.

Graciliano Ramos se utilizou muito da fala do dia a dia em S�o Bernardo, o que pode ter agu�ado o realismo do livro para os leitores de 80 anos atr�s, mas agora alguns trechos soam quase indecifr�veis mesmo para um falante nativo, ou pelo menos um do Rio de Janeiro, como � o meu caso. Como foi criar um registro em ingl�s que fosse fiel a esse aspecto do livro sem, no entanto, afastar os leitores de primeira viagem? 
De fato, n�o sei se foi mais assustador ou tranquilizador quando me dei conta de que o livro n�o era dif�cil de entender por conta do meu portugu�s, apenas, mas tamb�m por sua dist�ncia em rela��o ao mundo da maior parte de seus leitores. Caso isso te console um pouco, j� era assim na �poca em que o romance foi escrito! Graciliano Ramos deliberadamente incorporou ao livro express�es nordestinas obscuras, coletadas com empregados da fazenda do seu pai ou clientes da sua loja, em Palmeira dos �ndios.

Numa carta � sua esposa, Heloisa Ramos, ele disse que estava traduzindo o livro “do portugu�s para o brasileiro”, mas com isso ele n�o queria dizer a linguagem das classes educadas do Sul do pa�s, mesmo que elas compusessem a maioria dos seus leitores, e sim “um brasileiro encrencado, muito diferente desse que aparece nos livros da gente da cidade, um brasileiro de matuto, com uma quantidade enorme de express�es in�ditas, belezas que eu nem mesmo suspeitava que existissem.”

Ent�o, ao traduzir, eu procurei aproximar ou afastar os leitores o tanto quanto ele pr�prio o faz. Quando eu descobria que uma express�o seria desconhecida para a maioria dos brasileiros, eu inventava uma equivalente ou traduzia literalmente. Onde ele usa express�es familiares, tentei substitu�-las por outras de uso corrente nos Estados Unidos (ou, pelo menos, tentei em termos gerais usar express�es familiares com tanta frequ�ncia ou infrequ�ncia quanto ele).

Alguns aspectos do livro s�o obscuros sem que seja por causa do idioma — por exemplo, quando os personagens discutem pol�tica — e nesses casos eu tentei criar a melhor representa��o poss�vel da posi��o de cada um sem levar a interpreta��o mais longe do que o texto me parecia permitir. Mas eu estava principalmente preocupada em reproduzir a voz do livro, e como a premissa da hist�ria � que tudo aquilo � escrito ou contado por um �nico narrador, isso me deu um eixo em torno do qual todo o resto podia girar. 

Padma aponta paralelos de Paulo Honório com personagens de Faulkner e Fitzgerald(foto: AFP)
Padma aponta paralelos de Paulo Hon�rio com personagens de Faulkner e Fitzgerald (foto: AFP)

Uma das palavras mais frequentes do livro � “mil-r�is”, a moeda brasileira da �poca. Dinheiro � a principal preocupa��o de Paulo Hon�rio, e eu me pergunto se esse � um aspecto do livro que pode torn�-lo mais atraente para o p�blico norte-americano. At� que ponto voc� acha que o mundo de S�o Bernardo parecer� familiar aos leitores dos EUA? 
Leitores norte-americanos v�o encontrar bons paralelos com Paulo Hon�rio no Thomas Sutpen de Absal�o, Absal�o, de William Faulkner, ou talvez no Gatsby de F. Scott Fitzgerald — homens de origens obscuras movidos pelo desejo por bens materiais e pelo poder que vem a reboque disso. Esses homens sobem na vida at� impor respeito. Mas sabem que, em alguma medida, sempre lhes faltar� respeitabilidade. Pensando nisso, n�o tenho certeza de que o dinheiro em si mesmo seja a �nica preocupa��o de Paulo Hon�rio, embora seja uma das principais. As estrat�gias desse capitalista impiedoso me parecem antes voltadas � constru��o de institui��es, o que significa dizer, a refazer o mundo.

O romance, afinal de contas, leva o nome da fazenda — essa fazenda onde ele trabalhou como empregado analfabeto, e da qual ele toma posse depois de levar o dono a contrair v�rios empr�stimos com ele. Paulo Hon�rio n�o se irrita apenas que o dono, herdeiro da propriedade, n�o se d� ao trabalho de cuidar dela. Mais do que isso, Paulo Hon�rio v� o potencial da terra e quer fazer o que for preciso para realiz�-lo. Ele trabalha duro plantando um pomar, pavimentando uma estrada, construindo uma represa, educando a si mesmo com manuais de agricultura, at� desenvolver opini�es firmes sobre as diferentes ra�as de bois e galinhas: “Pra mim”, ele diz no livro, “S�o Bernardo era o lugar mais importante do mundo”, seu feudo e seu ref�gio, um lugar sobre o qual ele tem controle absoluto e cuja prosperidade e beleza ele pode acreditar serem dele pr�prio tamb�m.

"� incr�vel a min�cia esculpida em cada senten�a"

Padma Viswanathan, escritora e dramaturga


A escrita e o letramento tamb�m s�o temas cruciais no livro. S�o instrumentos de poder que Paulo Hon�rio, a despeito de toda a sua for�a bruta e ambi��o, nunca chega a dominar de fato. O ci�me que ele sente da esposa, Madalena, parece estar ligado � rela��o dela com livros e com o saber. De in�cio, ele se incomoda com os artigos de jornal que ela escreve, e depois fica obcecado por suas cartas. Essas rela��es entre g�nero, escrita e poder em S�o Bernardo tiveram algum peso na maneira como voc� viu seu pr�prio trabalho de traduzir a narrativa de Paulo Hon�rio?
Comecei essa tradu��o num momento estranho da minha vida, como escritora de fic��o. Meu segundo romance tinha sido finalista de um grande pr�mio, o que fez com que ele recebesse uma aten��o inesperada, antes de submergir de novo, como romances tendem a fazer, o que me permitiu voltar � minha vida de sempre, com uma sensa��o de gratid�o e de ressentimento ao mesmo tempo. Ent�o, buscar abrigo por um tempo na prosa de um mestre, em especial um que eu acreditava ter sido injustamente ignorado no c�none liter�rio internacional, parecia o rem�dio perfeito.

Ao traduzir as v�rias camadas de ironia do livro, tendo no��o da incr�vel min�cia com que Graciliano havia esculpido cada senten�a, eu sentia que estava prestando um servi�o a ele e a seu legado, mas que talvez a maior beneficiada fosse eu mesma. Traduzi-lo tamb�m me deu uma no��o mais abrangente da literatura brasileira, em termos gerais. A Academia Brasileira de Letras s� elegeu sua primeira integrante mulher, Rachel de Queiroz, em 1977, embora ela j� tivesse recebido o Pr�mio Machado de Assis pelo conjunto da sua obra 20 anos antes, como se os distintos senhores da Academia tivessem menos dificuldade de reconhecer sua obra do que sua pessoa. O pr�prio Graciliano Ramos confessou que, at� ler Rachel de Queiroz, n�o acreditava que uma mulher pudesse ser escritora.

Ele admirou tanto o romance de estreia dela (O quinze) que, apesar de ver o nome e a foto da autora, pensou que fossem s� um disfarce usado por um homem. (Tais preconceitos ainda n�o se dissiparam de todo: recentemente, quando eu estava penando para montar uma bibliografia para um curso sobre fic��o brasileira traduzida para o ingl�s, um colega me encaminhou um estudo feito em 2012 pela professora da UnB Regina Dalcastagn� mostrando que dos autores contempor�neos publicados pelas principais editoras brasileiras, 73% eram homens, e 93%, brancos.) Portanto, n�o posso deixar de me perguntar o que Graciliano Ramos pensaria de uma mulher traduzindo seu tour-de-force do hoje; chamar�amos de “masculinidade t�xica”! Tenho que dizer, por�m, que considero sua caracteriza��o de Madalena n�o apenas sens�vel, mas nuan�ada.

A descri��o da rela��o entre ela e Paulo Hon�rio � quase insuportavelmente emocionante, e em n�o pequena medida devido ao modo como trata da rela��o do letramento com classe social, conex�es emocionais, e a pr�pria constitui��o da subjetividade. Traduzir isso foi uma b�n��o. 

Talvez o aspecto mais palp�vel da voz de Paulo Hon�rio seja sua crueldade. Ele n�o � apenas bronco ou agressivo, mas de fato s�dico na maneira como lida com outras pessoas e no prazer que sente em estar no que pensa ser o topo das situa��es. Como foi lidar com um narrador t�o desagrad�vel?
Paulo Hon�rio gosta mesmo de fazer certas pessoas sofrerem, n�o gosta? Sinceramente, por�m, ele s� age assim com pessoas que a seus olhos merecem, pessoas que ele considera arrogantes ou pregui�osas, e, como algu�m que acabou ficando talvez um pouco �ntima demais dele, confesso que muitas vezes eu compartilhava dessas opini�es. Ele � t�o minucioso no seu jeito de orquestrar essas torturas e descrever suas maquiavelices que eu n�o pude sen�o me divertir ajudando-o a contar as coisas do jeito que ele queria.

Deixe-me acrescentar, por�m, que h� no livro v�rias exce��es not�veis a essa crueldade. Paulo Hon�rio se esfor�a um bocado para reencontrar sua antiga m�e adotiva, por exemplo, e ao conseguir ele a traz para a fazenda e a instala numa casinha l�. De modo semelhante, ele resgata e protege um antigo figur�o da prov�ncia, seu Ribeiro, que foi por assim dizer atropelado e tornado obsoleto pelas transforma��es do s�culo 20, at� acabar na pobreza. Com ambos, ele nunca � sen�o terno e respeitoso.

Por contraste, com a esposa ele � terr�vel, em parte por enxerg�-la como uma propriedade, como a fazenda, mas uma que ele n�o tem como controlar de todo. � o arrependimento dele em rela��o ao modo como tratou Madalena, no entanto, que motiva a escrita do livro, e as notas de melancolia desse arrependimento reverberam na loucura de Hon�rio no desfecho.
 
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Miguel Conde � jornalista, editor de resenhas do site Words Without Borders e visitante acad�mico na Universidade de Oxford

Entrevista publicada originalmente no site Words Without Borders. Leia a �ntegra em ingl�s em www.wordswithoutborders.org/dispatches

Entrevista

Wander Melo Miranda

Professor em�rito da Faculdade de Letras da UFMG, autor de Corpos escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago; prepara biografia do escritor alagoano

Como S�o Bernardo se situa na obra de Graciliano?
� o momento de plena realiza��o ficcional, que abre caminho para as outras obras-primas que escrever�. O livro est� muito  acima da m�dia de seus contempor�neos. O romancista  de-monstra dom�nio incomum da t�cnica e da linguagem, que se revelam de v�rias maneiras no livro, entre elas a reflex�o sobre o fazer liter�rio � medida que a narrativa vai sendo escrita. A diferen�a que instaura no contexto do romance dos anos 1930 � um dos muitos tra�os caracterizadores da sua excel�ncia. Graciliano consegue unir, sem solu��o de continuidade, reflex�o sobre o ato de escrever, aguda introspec��o psicol�gica e tratamento denso da quest�o fundi�ria nordestina, a partir da abordagem de uma rela��o interpessoal que traz para o primeiro plano da narrativa, a quest�o da alteridade.

Ela se destaca n�o s� na rela��o de Madalena e Paulo Hon�rio, mas tamb�m na cr�tica � moderniza��o excludente que o avan�o tecnol�gico da fazenda S. Bernardo indica. Foi necess�rio esperar at� 1955 para aparecer um romance que se assemelha a S. Bernardo, mas no contexto latino-americano: Pedro P�ramo, do mexicano Juan Rulfo.
 
Quais as principais caracter�sticas do estilo do escritor e com qu� um tradutor deve ter cuidado ao verter para outro idioma?
A maior dificuldade da tradu��o se deve �s express�es ou voc�bulos regionais presentes no livro, ao ritmo muito espec�fico da frase e � montagem textual extremamente complexa e sofisticada na sua aparente simplicidade e clareza. Lembre-se de que em carta � esposa Heloisa, em novembro de 1932, Graciliano pode anunciar: “S. Bernardo est� pronto, mas foi escrito quase todo em portugu�s [...] Agora est� sendo traduzido para o brasileiro, um brasileiro encrencado, muito diferente desse que aparece nos livros da gente da cidade, um brasileiro de matuto, com uma quantidade enorme de express�es in�ditas, belezas que eu mesmo nem suspeitava que existissem”.

O pai, Oct�vio, Chico e Jos� Leite lhe “servem de dicion�rio” e a publica��o do livro “servir� muito para a forma��o, ou antes para a fixa��o da l�ngua nacional”, ressalta. E conclui com a pergunta que se tornar� c�lebre: “Quem sabe se daqui a trezentos anos eu n�o serei um cl�ssico?”.


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