
“O Brasil poderia ter evitado muitas mortes: foi atingido muito depois de n�s, italianos, que n�o t�nhamos exemplos de forma de combate ao v�rus. Estimo muito o povo do seu pa�s, mas a atitude do governo brasileiro e de muitos brasileiros com rela��o ao coronav�rus me pareceu irracional, n�o consigo entender”, afirma Domenico De Masi, em entrevista ao Estado de Minas.
Para o soci�logo italiano, a pandemia, al�m da dor do luto e do desamparo, deixa li��es valiosas � sociedade p�s-industrial. A come�ar por reiterar os insights do te�rico canadense da comunica��o Marshall McLuhan, que cunhou a no��o da “aldeia global”: s�o absolutamente arcaicos os nacionalismos exacerbados e as ideias de soberania que concebem os pa�ses encerrados em si, como se fossem ilhas.
O aprendizado no enfrentamento da Covid-19 tamb�m aponta para o protagonismo do estado do bem-estar social e da social-democracia para garantir a qualidade de vida e a assist�ncia a todos, em detrimento da concep��o neoliberal de Estado m�nimo, respons�vel pelo aprofundamento das desigualdades sociais mundo afora. Na It�lia e em diversas sociais-democracias europeias foram os sistemas p�blicos, n�o os privados, que garantiram a assist�ncia em massa da popula��o adoecida. Se a li��o foi aprendida, o tempo dir�.
Professor em�rito de sociologia do trabalho na Universidade La Sapienza, de Roma, Domenico De Masi � refer�ncia internacional em estudos sobre a sociologia do trabalho e um dos intelectuais estrangeiros com livros que rotineiramente entram nas listas dos mais vendidos no mercado editorial brasileiro. Seu maior best-seller � O �cio criativo (Sextante), publicado pela primeira vez em 1995.
No livro, ele defende a plenitude do indiv�duo integral, que concilia o trabalho, com o qual se cria a riqueza; o estudo, que gera o aprendizado e o conhecimento; e o lazer, que traz a alegria e a inspira��o, para gerar o bem-estar. De Masi escreveu v�rios ensaios sobre sociologia urbana, desenvolvimento, trabalho, organiza��o e macrossistemas.
No livro, ele defende a plenitude do indiv�duo integral, que concilia o trabalho, com o qual se cria a riqueza; o estudo, que gera o aprendizado e o conhecimento; e o lazer, que traz a alegria e a inspira��o, para gerar o bem-estar. De Masi escreveu v�rios ensaios sobre sociologia urbana, desenvolvimento, trabalho, organiza��o e macrossistemas.
H� mais de 20 anos estudioso do Brasil, ele fez recentemente palestra virtual na Casa Fiat de Cultura pelo projeto Primavera dos Museus. O autor tem como uma de suas obras mais recentes O futuro chegou (Casa da Palavra/Quitanda Cultural) em que prop�e – face � falta de um modelo de refer�ncia ou uma ideologia que oriente o modo de vida das sociedades p�s-industriais – o sincretismo religioso, a miscigena��o cultural e a maneira que considera pac�fica para a solu��o de problemas da sociedade brasileira como inspira��o para o resto do mundo.
De Masi assinala as mudan�as radicais atualmente experimentadas pelo mundo, que decorrem da cada vez mais r�pida escalada das novas tecnologias: alcan�ar� na pr�xima d�cada uma popula��o mais longeva – em m�dia, o ser humano viver� de 780 mil a 790 mil horas (atualmente, a m�dia � de 730 mil horas); marcada pela intelig�ncia artificial, que se sobrepor� a muito do trabalho intelectual realizado hoje; pelas nanotecnologias, com as quais os objetos ir�o interagir entre si e com as pessoas; e pelas impressoras 3D, por meio das quais muitos utens�lios ser�o confeccionados em casa.
“O efeito combinado do progresso de TI, reconhecimento de voz, plataformas, nanotecnologias e rob�tica levar� ao “desenvolvimento sem trabalho”, com a perda de um n�mero substancial de postos de trabalho atuais n�o substitu�dos por novos postos”, diz De Masi.
“O efeito combinado do progresso de TI, reconhecimento de voz, plataformas, nanotecnologias e rob�tica levar� ao “desenvolvimento sem trabalho”, com a perda de um n�mero substancial de postos de trabalho atuais n�o substitu�dos por novos postos”, diz De Masi.
“Em 2030, estima-se, o mundo ter� 8 bilh�es de pessoas, estudaremos a dist�ncia, trabalharemos a dist�ncia, amaremos a dist�ncia, nos divertiremos a dist�ncia. Isso vai mudar n�o s� a vida do indiv�duo, mas vida do corpo social inteiro, trazendo algumas consequ�ncias”, prev�, considerando que a cultura ser� digital, produzida por todos e a todos acess�vel. Contudo, se o mundo prosseguir em seu atual ritmo, as desigualdades sociais ir�o se aprofundar, aponta o soci�logo: “O comunismo real sabia distribuir a riqueza, mas n�o sabia produzi-la. O capitalismo, por outro lado, sabe como produzir a riqueza, mas n�o sabe distribu�-la.” A seguir, mais trechos da entrevista exclusiva.
A It�lia foi um dos pa�ses europeus mais afetados pela pandemia, com o registro de centenas de mortos em um mesmo dia durante semanas. O que deve mudar na sociedade italiana depois de sofrer esse impacto?
Teremos aprendido que o mundo � uma “aldeia global”, como dizia McLuhan, que nenhum pa�s � uma ilha, e que por isso as soberanias s�o arcaicas e irrealistas. Teremos aprendido que o estado de bem-estar social � fundamental e que a economia social-democrata � bem melhor do que a neoliberal. Teremos aprendido que as ci�ncias exatas n�o s�o t�o exatas assim.
Por que o brasileiro, no geral, ficou mais impactado pelo elevado n�mero de mortes na It�lia em mar�o do que pelos milhares de mortos diariamente em seu pr�prio pa�s, a partir de junho e at� agora?
Eu n�o sei porqu�. Toda a atitude do governo brasileiro e de muitos brasileiros com rela��o ao coronav�rus me pareceu irracional. Os italianos foram os primeiros na Europa a ser infectados pela Covid-19 e por isso n�o tinham exemplos a observar para combater o v�rus. Em vez disso, o Brasil, que foi atingido muito depois de n�s, poderia ter se inspirado no que aconteceu em nosso pa�s e evitado muitas mortes. No entanto, isso n�o aconteceu. Como estimo muito o povo brasileiro, n�o consigo entender o porqu� de um comportamento t�o irracional.
A pandemia obrigou milh�es de pessoas no mundo a adotar, for�adamente, o home office. Como o trabalho em casa pode favorecer, ou comprometer, a necessidade de descanso?
Nos �ltimos dois s�culos de sociedade industrial, a grande maioria dos trabalhadores eram oper�rios e seu trabalho f�sico n�o podia ser feito em casa, mas tinha que ser feito na f�brica. Agora, por�m, na atual sociedade p�s-industrial, 70% dos trabalhadores s�o profissionais t�cnico-administrativos, funcion�rios, gerentes e executivos. Seu trabalho consiste em gerenciar informa��es que, por sua pr�pria natureza, podem ser movidas para qualquer lugar, em tempo real e com poucos gastos, atrav�s da internet.
Portanto, para grande parte dos trabalhadores que realizam trabalho intelectual, � poss�vel e desej�vel que o trabalho seja feito fora do escrit�rio, em casa ou onde o trabalhador preferir. Isso n�o compromete a necessidade de repouso; pelo contr�rio, facilita. Muitas pesquisas demonstraram que, trabalhando de casa, a produtividade aumenta em 15% a 20%. Ent�o, o trabalhador pode produzir como fazia no escrit�rio, mas economizando e descansando 15% a 20% mais.
Portanto, para grande parte dos trabalhadores que realizam trabalho intelectual, � poss�vel e desej�vel que o trabalho seja feito fora do escrit�rio, em casa ou onde o trabalhador preferir. Isso n�o compromete a necessidade de repouso; pelo contr�rio, facilita. Muitas pesquisas demonstraram que, trabalhando de casa, a produtividade aumenta em 15% a 20%. Ent�o, o trabalhador pode produzir como fazia no escrit�rio, mas economizando e descansando 15% a 20% mais.
Por que a ideia de Deus e o avan�o das religi�es, valores que se contrap�em ao Iluminismo e � ideia de que o homem seja o senhor de sua hist�ria por paradigm�tico que seja, avan�a mundo afora, impondo vis�es regressivas relacionadas a conquistas civilizat�rias, como valores da diversidade e da autoexpress�o?
Nem todas as religi�es s�o igualmente obscurantistas. Por exemplo, a Igreja Cat�lica do papa Francisco � menos obscurantista do que a Igreja Evang�lica. Os dois valores fundamentais do Iluminismo – o primado da raz�o e os direitos humanos – j� foram adquiridos por todos os pa�ses que passaram pela fase industrial.
Na era da informa��o, o acesso ao conhecimento e � informa��o n�o vem acompanhado de distribui��o de riqueza ou de bens sociais e de qualidade de vida, gerando um hiato entre expectativas do cidad�o e capacidade de resposta de governos. Que tipo de consequ�ncia esse fato tem para as democracias modernas e para a representa��o pol�tica?
O comunismo real sabia distribuir a riqueza, mas n�o sabia produzi-la. O capitalismo, por outro lado, sabe como produzir a riqueza, mas n�o sabe distribu�-la. Neste momento, os oito homens mais ricos do mundo possuem riqueza igual � da metade da humanidade, ou seja, 3,6 bilh�es de pessoas. Isso significa que o comunismo perdeu, mas o capitalismo n�o ganhou. Vencer� aquele sistema pol�tico-econ�mico que conseguir primeiro distribuir igualmente a riqueza, o poder, o conhecimento, o trabalho, as oportunidades e as garantias.
Em sua obra, o senhor demonstra como a ideia do tempo e do uso do tempo, que nas sociedades industriais pode ser sintetizada pela m�xima “tempo � dinheiro”, se altera bruscamente nas sociedades p�s-industriais. Quais s�o os paradigmas relacionados ao uso do tempo em nosso atual momento civilizat�rio?
Na sociedade industrial (1750-1950), quando a maior parte do trabalho era do tipo f�sico, executivo e oper�rio, a produ��o em massa significava que a quantidade de bens produzidos era diretamente proporcional ao tempo que o homem levava para produzi-los. Portanto, “tempo era dinheiro”. Hoje, ao contr�rio, esse tipo de produ��o material � deixado para as m�quinas e a grande maioria dos trabalhadores realiza empreendimentos intelectuais que consistem na produ��o de ideias, na criatividade.
A produ��o de ideias segue regras diferentes da produ��o de objetos. Posso dizer a um oper�rio: “Venha amanh� de manh�, �s 8h, e comece a produzir parafusos”. Mas n�o posso dizer a um publicit�rio: “Venha amanh� de manh�, �s 8h, e comece a produzir publicidade”. A criatividade segue regras completamente diferentes das executivas. Ali�s, n�o segue regra nenhuma; opera de forma imprevis�vel. No trabalho executivo e material, quanto mais tempo voc� trabalha, mais voc� produz. No trabalho criativo, quanto mais tempo voc� fica ocioso, mais voc� produz.
Por isso falo de “�cio criativo”. O �cio criativo consiste na possibilidade de realizar trabalhos nos quais o trabalhador desenvolve uma atividade que, ao mesmo tempo, � um trabalho com o qual ele cria riqueza, � estudo com o qual ele cria conhecimento, e � jogo com o qual ele cria bem-estar. Pode ser o caso do artes�o, da dona de casa, do sacerdote, do artista, do profissional, do padre, de quem desenvolve um trabalho com divers�o, alegria e aprendizado.
O �cio criativo n�o depende de ser rico ou pobre, mas de fazer um trabalho criativo ou executivo. Muitos trabalhos realizados pelos pobres tamb�m podem ser criativos (por exemplo, alguns trabalhos artesanais) e muitos trabalhos realizados pelos ricos (por exemplo, o banc�rio) tamb�m podem ser executivos.
A produ��o de ideias segue regras diferentes da produ��o de objetos. Posso dizer a um oper�rio: “Venha amanh� de manh�, �s 8h, e comece a produzir parafusos”. Mas n�o posso dizer a um publicit�rio: “Venha amanh� de manh�, �s 8h, e comece a produzir publicidade”. A criatividade segue regras completamente diferentes das executivas. Ali�s, n�o segue regra nenhuma; opera de forma imprevis�vel. No trabalho executivo e material, quanto mais tempo voc� trabalha, mais voc� produz. No trabalho criativo, quanto mais tempo voc� fica ocioso, mais voc� produz.
Por isso falo de “�cio criativo”. O �cio criativo consiste na possibilidade de realizar trabalhos nos quais o trabalhador desenvolve uma atividade que, ao mesmo tempo, � um trabalho com o qual ele cria riqueza, � estudo com o qual ele cria conhecimento, e � jogo com o qual ele cria bem-estar. Pode ser o caso do artes�o, da dona de casa, do sacerdote, do artista, do profissional, do padre, de quem desenvolve um trabalho com divers�o, alegria e aprendizado.
O �cio criativo n�o depende de ser rico ou pobre, mas de fazer um trabalho criativo ou executivo. Muitos trabalhos realizados pelos pobres tamb�m podem ser criativos (por exemplo, alguns trabalhos artesanais) e muitos trabalhos realizados pelos ricos (por exemplo, o banc�rio) tamb�m podem ser executivos.
Em um de seus livros, o senhor afirma: "O futuro chegou". Como a sua vis�o de futuro foi modificada pela pandemia? E como ser�, em sua avalia��o, a evolu��o de nossa sociedade na pr�xima d�cada?
Em 2030, seremos 8 bilh�es. A vida m�dia ser� bem mais longa do que a atual. A tecnologia da informa��o ter� feito grandes progressos, porque a pot�ncia de um processador dobra a cada 18 meses. O progresso ser� marcado pela engenharia gen�tica, com a qual superaremos muitas doen�as; pela intelig�ncia artificial, com a qual substituiremos muito trabalho intelectual; por nanotecnologias, com as quais os objetos se relacionar�o entre si e conosco; por impressoras 3D, com as quais construiremos muitos objetos em casa.
Vamos aprender a dist�ncia, trabalhar a dist�ncia, amar a dist�ncia, nos divertir a dist�ncia. Ser� imposs�vel se perder, se isolar, esquecer, ficar entediados. O efeito combinado do progresso de TI, reconhecimento de voz, plataformas, nanotecnologias e rob�tica levar� ao “desenvolvimento sem trabalho”, com a perda de um n�mero substancial de postos de trabalho atuais n�o substitu�dos por novos postos. A cultura digital vai suplantar a anal�gica. As mulheres estar�o no centro do sistema social.
Vamos aprender a dist�ncia, trabalhar a dist�ncia, amar a dist�ncia, nos divertir a dist�ncia. Ser� imposs�vel se perder, se isolar, esquecer, ficar entediados. O efeito combinado do progresso de TI, reconhecimento de voz, plataformas, nanotecnologias e rob�tica levar� ao “desenvolvimento sem trabalho”, com a perda de um n�mero substancial de postos de trabalho atuais n�o substitu�dos por novos postos. A cultura digital vai suplantar a anal�gica. As mulheres estar�o no centro do sistema social.
Como a simplicidade pode ser revolucion�ria?
A verdadeira simplicidade � uma complexidade resolvida. Portanto, ela � revolucion�ria por natureza.
A evolu��o da sociedade na pr�xima d�cada
Palestra ministrada pelo soci�logo italiano Domenico De Masi, na 14ª edi��o da Primavera dos Museus, promovida pela Casa Fiat de Cultura, consulado da It�lia em Belo Horizonte e os institutos italianos de Cultura de S�o Paulo e do Rio de Janeiro. Para acessar: canal do YouTube da Casa Fiat de Cultura