Assassinato de �ngela Diniz mobilizou movimentos feministas no pa�s
Com delicadeza, criatividade e um trabalho minucioso de produ��o, o podcast Praia dos Ossos restitui a dignidade que foi arrancada de �ngela Diniz pelo seu assassino, Doca Street, e por uma parte da sociedade brasileira nos anos 1970
LIVE - "A volta da tese mis�gina da "leg�tima defesa da honra" com a Dra. Isabel Ara�jo, do Quem Ama n�o Mata, Branca Vianna e Flora DeVeaux, diretora e produtora do podcast Praia dos ossos. Sexta (23), �s 19h
Um lugar paradis�aco que j� tinha hospedado Brigitte Bardot nos anos 1960 e que, de repente, na passagem do ano- novo de 1977, torna-se cen�rio de um crime brutal de feminic�dio: B�zios, mais especificamente a Praia dos ossos. O podcast, idealizado e apresentado por Branca Vianna e com pesquisa e produ��o de Flora Thomson-DeVeaux, percorre a vida de �ngela Diniz, a mulher assassinada, sua "constru��o" por m�os maternas diligentes, quase obcecadas em conseguir um bom casamento na Belo Horizonte dos anos 1960.
A arte da sedu��o aprendida cedo: num baile de carnaval em 1958, ela, com apenas 13 anos, fantasiada de grega, "fechou o sal�o". Imposs�vel, hoje, n�o se lembrar de Helena de Troia, por cuja posse foi declarada uma guerra.
O assassinato de �ngela Diniz foi uma forte motiva��o para a atua��o de movimentos feministas nas d�cadas de 1970 e 1980 (foto: O Cruzeiro/Arquivo Estado de Minas)
A s�rie Praia dos ossos, com oito epis�dios, transmitida pela R�dio Novelo em diversas plataformas de streaming, foca em aspectos daquele que foi um drama de grande repercuss�o nacional e representou o uso e o in�cio da derrota da tese da "leg�tima defesa da honra".
Um deles se det�m no julgamento, no argumento da defesa, uma pe�a de machismo por parte de um dos maiores advogados criminalistas brasileiros, Evandro Lins e Silva, seu canto de cisne na cena jur�dica. O advogado do assassino, Doca Street, companheiro e r�u confesso, constr�i para seu cliente a imagem de um belo e bom mo�o que foi seduzido pela mulher fatal, a "prostituta de luxo". Ao fim, ela teria sido a respons�vel pela pr�pria morte, a consequ�ncia para muitas mulheres que n�o se adequam ao papel tradicional reservado �s mulheres.
O caso foi uma forte motiva��o para os movimentos feministas, na d�cada de 1970/1980, combaterem a viol�ncia extrema contra as mulheres e a utiliza��o da figura jur�dica da "leg�tima defesa da honra". A narrativa � conduzida com muita criatividade e delicadeza. Somos transportados para aquele "ar do tempo" da sociedade mineira provinciana, onde tudo era permitido, "menos o esc�ndalo", pelo texto coloquial e pela narra��o subjetiva de Branca Vianna.
O playboy Doca Street, assassino de �ngela Diniz (foto: Arquivo EM)
Narra��o sens�vel em rela��o �quela jovem mulher que, na morte, teve o rosto, t�o belo, desfigurado por tiros. A trilha sonora pontua o clima ora de melancolia, ora de suspense. O roteiro tra�a uma arquitetura que n�o se limita � ordem cronol�gica dos acontecimentos. Assim Anna Marina, colunista do Estado de Minas, discorre sobre �ngela Diniz tal como a retratou, post mortem, na bela cr�nica A menina da missa das dez, em que conta como ela era uma atra��o para rapazes que vinham v�-la brilhar na Igreja de Lourdes, em seus glamourosos vestidos, nunca repetidos, como ditava o dress code das "mais bem vestidas" da capital.
Tamb�m Roberto Drummond, escritor e, na �poca, cronista, narra um encontro, em 1969, com a ent�o jovem senhora de 24 anos e m�e de tr�s filhos, num dia cinzento com nuvens: "Chovia dentro daqueles olhos", escreveu ele. Carlos Drummond de Andrade comparece com o texto em que lamenta a morte cotidiana dela pela imprensa depois de seu assassinato: "Est�o matando essa mo�a todos dias", escreveu ele.
Mas, se o roteiro � criativo, a narra��o sens�vel, a trilha sonora delicada e eficiente para compor o clima hist�rico, Praia dos Ossos �, sobretudo, uma obra-prima do jornalismo, uma gigantesca investiga��o. Um mosaico formado a partir de artigos de jornal da �poca e �udios do julgamento, mais entrevistas recentes com pessoas ligadas ao caso, amigas de inf�ncia e juventude, jornalistas, advogados.
Pelas vozes dos entrevistados, acompanhamos a trajet�ria de uma mulher que decidiu viver n�o a vida que queriam para ela, mas a pr�pria. E que pagou muito caro por isso. Pela primeira vez no Brasil, temos uma narrativa humanizada de �ngela Diniz, muito mais que a "Pantera de Minas": simplesmente uma mulher.
* Mirian Christus � jornalista e coordenadora do Movimento Feminista Mineiro Quem Ama N�o Mata (QANM)
Epis�dios in�ditos aos s�bados no Spotify, Deezer e outras plataformas de streaming de �udio
Apresenta��o e idealiza��o de Branca Vianna
Pesquisa e coordena��o de produ��o de Flora Thomson-DeVeaux
Roteiro de Aur�lio de Arag�o e Rafael Sp�nola
Montagem de La�s Lifschitz
Produ��o de Claudia Nogarott
"Pelas vozes dos entrevistados, acompanhamos a trajet�ria de uma mulher que decidiu viver n�o a vida que queriam para ela, mas a pr�pria" (foto: O Cruzeiro/Arquivo Estado de Minas - 20/06/1973)
An�lise
Um marco no jornalismo
Rafael Alves*
Praia dos Ossos ainda n�o terminou, mas j� pode ser considerado um marco no jornalismo brasileiro por apresentar – no formato de podcast – uma extensa e cuidadosa pesquisa hist�rica, narrada a partir de roteiro que prende a aten��o do ouvinte a cada fala, a cada entrevista, a cada recurso cenogr�fico. Um quebra-cabe�a no qual o segredo est� em remontar constantemente as pe�as para descobrir as muitas imagens de uma mesma personagem, de um mesmo crime.
A miniss�rie criada pela R�dio Novelo, produtora carioca de podcasts, come�ou a ser produzida em janeiro de 2019 e reuniu para os oito epis�dios mais de 50 entrevistas e 80 horas de grava��es, al�m de uma infinidade de documentos e fotografias, muitas delas obtidas no acervo do jornal Estado de Minas. Esse grande volume de informa��es � essencial na qualidade da produ��o, mas tamb�m um desafio de planejamento e execu��o do roteiro.
Juscelino Kubitscheck entrega a �ngela Diniz o t�tulo de Embaixatriz do Turismo de Belo Horizonte (foto: Arquivo EM - 26/01/1961)
Al�m de recursos narrativos que consagram podcasts de jornalismo mundo afora, como pr�logos contundentes, trilhas sonoras exclusivas e ritmos marcantes de locu��o, Praia dos Ossos apresenta outras solu��es criativas para reconstruir a trama. No epis�dio 5 (A Pantera), a transposi��o de uma alegoria de �poca das colunas sociais para contornar um dilema jornal�stico, a desist�ncia de fontes j� entrevistadas de participar da miniss�rie, � um �timo exemplo.
A cria��o de podcasts jornal�sticos com roteiros que se aproximam do cinema � uma tend�ncia. Um premiado caminho aberto por programas que se tornaram refer�ncia nesse formato, como o norte-americano Serial, de jornalismo investigativo, no qual cada temporada re�ne os diversos aspectos e personagens de um mesmo crime. Outro exemplo cativante � o �nico Ear Hustle, podcast imersivo criado e contado por presos e egressos do sistema penitenci�rio de S�o Francisco.
Mesmo dentro dos podcasts di�rios de not�cias, tem se destacado a lapida��o de roteiros criados para subverter a tradi��o jornal�stica de responder a todas as d�vidas do leitor e ouvinte nas primeiras linhas de texto. Como mostrou a miniss�rie 1619, do Daily, do New York Times, sobre as marcas que a escravid�o deixou nos Estados Unidos, ou mesmo epis�dios isolados, como o desconcertante especial para crian�as The fear facer, do mesmo programa. � o que tamb�m consegue Praia dos Ossos, um triunfo da arte de narrar uma hist�ria real.
*Rafael Alves � jornalista e subeditor do N�cleo de Cria��o Multim�dia do Estado de Minas