Apesar da dedicat�ria provocativa (“para mim”), Arremate � um presente que Armando Freitas Filho entrega aos leitores brasileiros em meio � pandemia da COVID-19 que contribuiu para a intensifica��o da degrada��o social, esta marca indel�vel do pa�s h� pelo menos meia d�cada. Alimentado pelo “oxig�nio da �poca”, o conjunto de poemas deste carioca nascido em 1940 � um verdadeiro acervo po�tico de um momento hist�rico (2013-2019) cuja no��o de fim quer impor-se como �nico paradigma, o qual, de certo modo, est� indicado j� no t�tulo do alentado volume, com mais de 300 p�ginas de poesia de qualidade impressionante.
No dicion�rio, um “arremate” � o “ato ou efeito de arrematar, t�rmino, desfecho, remate, �ltimo detalhe para finalizar ou concluir algo”. “Fim, finitude, encerramento” s�o, portanto, n�cleos de assunto do livro e s�o, tamb�m, o que ele prop�e em forma de problema na pr�pria estrutura po�tica dos textos. Os poemas de Armando Freitas Filho aderem, pois, estruturalmente ao presente, sendo essencial, para a sua efic�cia est�tica, a forma como eles se situam em rela��o ao “nosso tempo”, para lembrar Drummond t�o presente nas veias dos versos de Arremate.
Nesse caso, o vetor mais sutil e intenso a costurar as v�rias se��es do livro � o da cr�tica (�s vezes ir�nica, como no seu pr�prio t�tulo), que p�e, afinal, o leitor diante da seguinte equa��o: “Trata-se um livro sobre desfechos, mas que � uma resist�ncia ao fim”.
Essa dial�tica est� na base do interesse despertado pelos poemas, que se sucedem sob o signo do “arremate”. Para come�ar do come�o, digamos, parafraseando o pensamento de Wittgenstein que serve de ep�grafe � obra, que o poeta j� anuncia que a constata��o do fim tem a utilidade primacial de criar as oportunidades para nos lan�armos al�m dele. Eis o que Armando Freitas Filho, ao completar 80 anos, recolhe do fil�sofo para sedimentar cuidadosamente sua poesia de corte especulativo, meditativo, investigativo, cr�tico, indicando que, quando tem algo em mente, algu�m “arremessa-se a si mesmo e n�o se pode, por isso, observar tamb�m o arremesso”.
Como bem registra Mariana Quadros no Pref�cio, “chama a aten��o o exerc�cio dedicado � reflex�o cr�tica – l�rica ensa�stica”. Embora a prefaciadora refira-se aqui especificamente � primeira se��o do livro, n�o parece ser inapropriado dizer que a “l�rica ensa�stica” est� em todos os momentos altos de Arremate, que n�o s�o poucos. Nesses momentos, somos conduzidos pelo autor ao seu mondo mentale, onde a reflex�o, a busca da elabora��o l�cida e cr�tica da realidade em forma de linguagem e as inquietudes da� derivadas s�o componentes da atmosfera que permite � poesia viver para al�m do tal paradigma do fim. � essa consci�ncia que, qui�� com travos ir�nicos, faz o poeta afirmar: “o poema � mais subliminar/ do que sublime”.
Se��es e temas
S�o seis as se��es que comp�em Arremate, cada qual com seu tema e trejeito formal pr�prios, mas todas elas gozando de forte v�nculo com a dial�tica essencial j� aqui referida entre a consci�ncia da finitude (como dado pessoal e social) e a �nsia do sujeito (feito forma po�tica) em arremessar-se para al�m do fim. Al�m disso, h� um outro fio que enla�a as se��es do livro: o car�ter de circunst�ncia, que ora � mais expl�cito, ora mais incidental. O leitor atento notar� que o conjunto revela uma disposi��o do poeta para a “poesia de circunst�ncias” no sentido que lhe dava Goethe e que depois � recuperado por Paul Eluard, como citado em artigo na revista Princ�pios.
Dizia Goethe que “meus poemas s�o todos poemas de circunst�ncias. Inspiram-se na realidade, sobre ela se fundam e repousam. Nada tenho que fazer com poemas que n�o se baseiam em nada”. Anima a po�tica de Arremate, portanto, tamb�m o apego do verso � realidade, seja ela convocada pelos fatos do jornal, pelas leituras liter�rias, pelas artes pl�sticas, pelo pr�prio corpo do poeta que envelhece ou pela intimidade da casa ou da fam�lia.
A primeira se��o, “Pincel l�pis tesoura goiva lente martelo”, conduz o leitor pelos corredores de uma galeria de arte. Nesse processo, enxergaremos Rodin, Van Gogh, Pacetti e tantos outros a partir de olhos cr�ticos que ir�o ponderar o registro pl�stico conforme ele tenha ou n�o capacidade de dar a ver o “entrecho” aludido pelo instante gravado. E, para isso, o tema do trabalho art�stico � determinante para uma “conversa de oficina” provocada por algu�m que conhece os m�todos de composi��o e faz a metalinguagem convergir para a materialidade dos instrumentos e das ferramentas, denegando quase sempre o plano abstracionista e et�reo da composi��o.
A se��o seguinte � intitulada “Canetas m�ltiplas” e dedica-se a iluminar o acervo de leituras do autor e o contato com os materiais da escrita, neste �ltimo caso ligando-se tamb�m a muitas formas e temas revelados j� na primeira se��o. Para al�m das refer�ncias e influ�ncias, revela-se a pesquisa do “como fazer” literatura ou, mais especificamente, poesia. A subst�ncia do trabalho do poeta aqui � tentar definir para si o que s�o os outros poetas e perseguir a consci�ncia l�cida da materialidade do trabalho, sem a qual a forma viaja para longe do real, dissolvendo-se em idealismo e vaidade.
“Casa corpo adentro” � o t�tulo da terceira se��o, a maior de todas. Ela registra, em uma longa s�rie de delicad�ssimos poemas, a experi�ncia do corpo que envelhece no contexto dom�stico e familiar. O corpo e a casa passam a ser, portanto, elementos mediadores da passagem do tempo e, tamb�m, reposit�rios de signos do perecer e da vit�ria do tempo sobre a vida transit�ria, que, entretanto, volta como forma de resist�ncia, atrav�s da poesia. Os versos iniciais do poema Passagem funcionam, sob esse prisma, como uma esp�cie de ponto arquim�dico desta se��o: “Escrevendo contra a morte./ Para adi�-la o m�ximo que puder.”
A quarta se��o recebe o t�tulo de “Em papel jornal” e debru�a-se sobre os acontecimentos terr�veis do cotidiano brasileiro dos �ltimos tempos. Est�o ali o golpe de 2016, o assassinato de Marielle Franco, as in�meras balas perdidas do cotidiano carioca etc. S�o textos que extraem a poesia de Dias dolorosos os que integram esta se��o, bastante menor que a anterior, mas que a esta se une pelo tratamento cr�tico dos signos do fim, do temor da morte e do desaparecimento de pessoas e de sonhos. A esse respeito, veja-se o poema Di�rio, um excelente retrato da degrada��o da sociedade brasileira apresentado atrav�s de uma bandeira gravada no muro esboroado por tiros.
A quinta se��o � “Rosa, rosa, rosam, rosae, rosae, rosa” e re�ne um conjunto delicado de poemas em que a capacidade para a versifica��o t�pica de Armando Freitas Filho alcan�a um patamar efetivamente superior. Ritmo, som e imagem s�o aqui postos numa articula��o a servi�o da puls�o er�tica (e, portanto, de vida e poesia) que sensibiliza pela beleza po�tica rara que os textos alcan�am. A �ltima se��o, “Numeral”, continua a s�rie de poemas que encerra os livros do poeta desde o lan�amento de sua obra, reunida e revista em 2003.
Em contraste com a se��o precedente, esta evidencia um car�ter de esbo�o, rascunho ou inacabamento, que, por sua vez, n�o deixa de abrir caminho para versos intensos acerca da passagem do tempo e da reflex�o sobre o fazer po�tico. “Numeral” tem, assim, certa liga��o com o primeiro bloco do livro, “Bastidor de 1 poema e 6 em andamento”, pois revela tamb�m um qu� de bastidores e de esbo�o cr�tico ainda n�o completamente resolvido, mas muito vivo, talvez at� pelo pr�prio “ar de inacabado”. Assim, unindo as duas pontas da obra, voltamos ao seu in�cio ao mesmo tempo em que somos provocados pelo perigo do fim abrupto da sequ�ncia num�rica a que a se��o alude. De qualquer modo, ponderada sob esse prisma, a rela��o dos �ltimos poemas com a abertura do livro alude � roda-vida da poesia, o que � uma forma de reconvocar a abertura ao futuro, que, de resto, se contrap�e ao fatalismo do “arremate”.
Em poema dedicado a Carlos Drummond de Andrade e Antonio Candido, Armando Freitas Filho indica algo que tamb�m a sua poesia � capaz de propiciar. Para o poeta, ambos “seguravam a todos e nos erguiam/ � altura onde estavam”. Ler o seu Arremate, especialmente em dias de c�o, � viver a experi�ncia de erguer-se acima da barb�rie que propagandeia o fim como destino fatal, e, assim, apropriar-se da intensidade de uma poesia que resgata o humano e o lan�a como for�a est�tica e civilizadora para o futuro. Desse modo, se, de acordo com o poeta, � “imposs�vel transferir-se de um dia/ para o outro sem nenhum arranh�o”, ao menos nos apropriamos da sua poesia semovente e de sua lucidez alerta. Ao fim e ao cabo, podemos dizer junto com ele: “Seu poema sendo s� seu/ inimit�vel – � de todos n�s/ dias adiante”.
*Alexandre Pilati � professor de literatura brasileira da UnB, cr�tico liter�rio e poeta; autor, entre outros, de Autofonia e A na��o drummondiana.
Dois poemas
Palavra
As p�ginas brancas
as quais deram volume
ao livro primeiro
para a encaderna��o
ter uma lombada
mesmo m�nima
j� foram descritas
em outra folha.
Os livros seguintes
tamb�m t�m p�ginas
brancas
infinitas, invis�veis:
nem tudo consegue
ser dito ou permitido.
O que � calado n�o
� nem melhor nem pior:
n�o soube apenas.
***
No sil�ncio
Quando eu n�o estiver aqui
quem vai passar as chaves na porta
dando duas voltas e mais o ferrolho
e a tranca para barrar os fantasmas de toda cepa?
Quem vai ver se o g�s est� fechado
muitas vezes e as luzes estrat�gicas acesas, atentas?
Quem conseguir� com menos tocs nas paredes
compactas do escuro anular a d�vida, o medo
E dormir seguro com a l�mpada da cabeceira s� e