(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas LITERATURA

Grilos falantes: na obra de Rachel Cusk, vozes familiares narram a vida

Professor e cr�tico liter�rio analisa a trilogia formada pelos livros 'Esbo�o', 'Tr�nsito' e 'M�rito', da cultuada escritora canadense, radicada na Inglaterra


22/01/2021 04:00 - atualizado 22/01/2021 09:25

Canadense nascida em 1967, Rachel Cusk vive na Inglaterra e escreveu 10 romances
Canadense nascida em 1967, Rachel Cusk vive na Inglaterra e escreveu 10 romances
A literatura de Rachel Cusk � uma forma que se deixa derramar por diferentes temas da vida numa cidade ocidental. Trabalho profissional, reforma da casa, meios de transporte. Pais, casamento, filhos, maternidade, separa��o. Poucas vezes a fic��o liter�ria foi t�o certeira no modo de inserir leis da narrativa no cotidiano dos seres humanos.

Ler Cusk � deixar-se levar pelas hist�rias alheias escritas por uma autora que tamb�m � leitora do que escuta, em encontros marcados ou ao acaso. A narradora de sua famosa trilogia, n�o � toa uma escritora (Faye), sempre esbarra em algu�m que conta algo da pr�pria vida, transformando todos em c�mplices de um alarido paradoxal: privado e p�blico, porque romanceado

A sucess�o ininterrupta de depoimentos contrasta com a exposi��o da intimidade caracter�stica das redes sociais. Eis a digna literatura em prosa. Aqui, h� respeito e eleg�ncia para recordar no��o difundida pelo fil�sofo sul-coreano Byung-Chul Han. Nesse caso, a dist�ncia vem da palavra esteticamente tramada que permite escapar de uma espetacularidade vulgar, rumo a um olhar compreensivo.

Na capacidade de despertar confian�a mora o impulso das narrativas que se desdobram nas p�ginas intensas de Esbo�o (2019) e Tr�nsito (2020), os dois primeiros da trinca de romances que levaram a canadense (moradora da Inglaterra) Cusk ao reconhecimento muito al�m das fronteiras de l�ngua inglesa. No Brasil, ainda resta ser publicado Kudos, que ser� lan�ado em abril pela editora Todavia com o t�tulo M�rito.

No primeiro livro, Faye est� separada e d� um curso de escrita criativa durante o ver�o grego. No segundo, ela continua separada e se instala em Londres com os dois filhos. No terceiro, Faye se casou de novo e vai a um encontro de escritores num pa�s europeu n�o nomeado. Nos tr�s, a narradora faz a media��o para outros protagonismos. E essa � a descri��o poss�vel. 

Nascida em 1967, autora de 10 romances, Rachel Cusk tem outros dois t�tulos lan�ados aqui – Arlington Park (2007) e As varia��es Bradshaw (2011) –, que percorrem trilhas mais tradicionais, ou quase. Em terceira pessoa e girando sobre n�cleos familiares, os dois j� anunciam a destreza para o mon�logo e o di�logo. As v�rias personagens falam muito e, sim, t�m reflex�es importantes a fazer, pensamentos que expressam sentidos dentro da verdade do texto. 

No meio de Tr�nsito, a narradora tem uma dica “estranhamente sedutora” sobre a possibilidade de aproximar o liter�rio da vida. “Falei que a minha atual sensa��o de impot�ncia havia modificado a forma como eu via o que acontecia e por que, a ponto de eu estar come�ando a ver o que outras pessoas chamavam de destino no desdobramento dos acontecimentos, como se viver fosse um simples ato de ler para descobrir o que acontece depois.”

O que se l� e o que se vive

O mundo como cen�rio. Os outros no papel de personagens. Ao ler a trilogia, somos levados a enxergar com lentes assim, liter�rias. �culos generosos em sua interlocu��o com o mundo “real”. Mas a grande sacada de Cusk � n�o fazer dessa perspectiva uma rua de m�o �nica, exclusiva para leitores liter�rios ou para escritores reais ou em potencial. Aqui a autonomia radical da arte entra de f�rias. 

Em Kudos, um editor de Faye argumenta que o mercado andava bastante interessado em escritores com boa performance de venda que mantivessem “uma conex�o com os valores da literatura”. Assim, as pessoas poderiam se divertir � vontade sem se sentir diminu�das por isso. Numa busca de equil�brio, haveria espa�o para o sucesso dos “romances liter�rios”. 

A narradora parece tomar a ideia entre a ironia e o cinismo lucrativo do mensageiro. Esse olhar duvidoso sobre o circuito (ou circo) liter�rio atravessa os trechos que reverberam vozes de escritores. E isso valeria para qualquer espa�o carregado de ansiedade sobre o indiv�duo que se d� a conhecer, em simples conversa��o ou no di�logo por meio da forma art�stica. Tudo mesclado.

Desse modo, mais do que ponto de partida como dado de realidade dos relatos, o div�rcio (ou sua possibilidade) se converte em n� metaf�rico. A literatura de Rachel Cusk encontrou uma maneira muito inteligente de dar voz a essa ang�stia que tensiona a rela��o do p�blico com a arte. Eu sou o que leio? Como o que leio me define? E ainda: o que de fato ou�o quando algu�m narra?

Trilogia intercambi�vel

O “tr�nsito” astrol�gico de um romance transporta o leitor de mero rabisco atordoado pelos acontecimentos do presente � gl�ria da clarivid�ncia sobre as coisas do mundo, com hist�ria (“mem�ria sem dor”, diz o mesmo pragm�tico editor de antes), momento e futuro. Come�o, meio e fim. Uma trilogia intercambi�vel de v�rias maneiras, sempre a come�ar na voz do interlocutor que deseja dizer sem objeto direto. 

Ou precisa se pronunciar para encontrar conforto no colo de um ouvido generoso. O ex-namorado Gerard, o mestre de obras, o alban�s Pavel, o cabeleireiro, a aluna de escrita criativa e os escritores Julian e Louis, entre outras personagens de Tr�nsito, se pronunciam em busca de comunica��o. No andar de baixo, em contraste, o casal de vizinhos idosos explode palavras grosseiras na cara da nova moradora. Nesse retrato do ru�do da intoler�ncia, a autora e sua alter ego mostram um potente poder de observa��o.

E deixam bem claro tudo o que n�o desejamos por perto. Na companhia da obra de Rachel Cusk, o confinamento teceu uma colcha entre galhos e folhas, entre o necess�rio inc�modo e o abra�o permitido pela natureza artificial da literatura. Em seu sil�ncio narrativo estrat�gico, a escritora Faye primeiro recusa e depois, consciente, aceita o beijo do destino, porque a vida nunca mais foi (ou ser�) a mesma. 

TRECHOS DOS LIVROS

Esbo�o

“Meu telefone tornou a bipar. Era uma mensagem de texto do meu vizinho no voo da v�spera. Ele estava pensando em sair no seu barco, falou, e queria saber se eu gostaria de acompanh�-lo para um mergulho. Ele poderia me pegar no meu apartamento dali a mais ou menos uma hora, e depois me deixar l� de volta. Fiquei pensando a respeito enquanto Ryan falava. O que me faz falta, disse Ryan, � a disciplina em si. De certa forma eu n�o ligo para o que estou escrevendo – quero apenas aquela sensa��o de estar outra vez em sincronia, corpo e mente, entende o que estou dizendo? Enquanto ele falava, vi a escadaria imagin�ria se erguendo mais uma vez na sua frente, estendendo-se a perder de vista; e ele galgando seus degraus com um livro suspenso na sua frente a instig�-lo.”

•  De Rachel Cusk 
•  Tradu��o de Fernanda Abreu 
•  Todavia, 194 p�ginas 
•  R$ 59,90

Tr�nsito

“O que ele havia percebido, falou, ali na rua, era que estava num processo de forma��o dos pr�prios desejos, de dom�-los com o pensamento, e foi s� quando se viu momentaneamente dominado pelos antigos impulsos sensoriais que se deu conta de que esse processo, no fundo, tinha a ver com disciplina. Em outras palavras, n�o desejava almo�ar seu pato defumado com a mesma cegueira e a mesma saliva��o com que havia desejado o queijo industrializado. O primeiro precisava ser abordado de forma consciente, enquanto o segundo se apoiava no inconsciente, em necessidades nunca examinadas porque eram satisfeitas pela simples repeti��o. Ele precisou decidir ser uma pessoa que preferia pato defumado a queijo industrializado: ao decidir isso, pouco a pouco ia se tornando essa pessoa.”

•  De Rachel Cusk 
•  Tradu��o de Fernanda Abreu 
•  Todavia, 200 p�ginas 
•  R$ 59,90


M�rito (Kudos)

“Voltando ao assunto do pr�mio do col�gio, disse ele, o nome que haviam escolhido para ele foi ‘Kudos’. Como eu provavelmente estava ciente, a palavra grega ‘Kudos’ era um substantivo singular que se tornou plural por um processo de forma��o posterior; um ‘kudo’ por si s� nunca existiu de fato, mas no uso moderno seu significado coletivo foi alterado pela confusa presen�a de um sufixo plural, de modo que ‘kudos’ significava, literalmente, ‘pr�mios’, mas em sua forma original conotava o conceito mais amplo de reconhecimento ou aclama��o, al�m de ser sugestivo de algo que pode ser falsamente reivindicado por outra pessoa. Por exemplo, ele ouviu sua m�e reclamar com algu�m ao telefone outro dia que a diretoria recebeu o ‘kudos’ pelo sucesso do festival enquanto ela fazia todo o trabalho.”

•  De Rachel Cusk 
•  Tradu��o de Fernanda Abreu 
•  Lan�amento previsto para abril pela editora Todavia 
•  Pre�o e n�mero de p�ginas a definir


Doutor em estudos liter�rios pela UFMG e autor de A reinven��o do escritor (editora UFMG), S�rgio de S� � professor na Universidade de Bras�lia (UnB)


receba nossa newsletter

Comece o dia com as not�cias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, fa�a seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)