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Estado de Minas ROMANCE

Claudia Durastanti: da experi�ncia familiar ao som e o sil�ncio

No romance 'A estrangeira', escritora exercita a pr�tica da escuta


12/03/2021 04:00 - atualizado 12/03/2021 08:51

A narradora de 'A estrangeira' relata, entre tantas passagens saborosas, que sua av�, imigrante nos Estados Unidos, dizia “aran�” em lugar de I don’t know: mesmo sabendo a pron�ncia certa, se recusava terminantemente a us�-la. Os atos de comunica��o e as formas de usar as palavras s�o fundamentos essenciais deste belo romance. Nele, se faz presente uma interroga��o constante sobre como usar a l�ngua com os outros, para os outros, contra os outros.

Ler ou n�o os l�bios, gesticular, emudecer, se expressar de forma correta ou prec�ria, tudo isso assinala nosso lugar no mundo. Neste caso espec�fico, trata-se de um romance autobiogr�fico. Assim como a protagonista, a escritora e tradutora Claudia Durastanti nasceu em Nova York nos anos 1980, filha de pais italianos com defici�ncia auditiva. Foi criada no Sul da It�lia e escreve sua obra na l�ngua dos pais.  

Durastanti poderia ser chamada de autora traduzida, express�o cunhada pelo escritor indiano Salman Rushdie para se referir a indiv�duos pertencentes a culturas h�bridas e v�rias hist�rias interconectadas. � semelhan�a de outras escritoras contempor�neas, como a inglesa de origem indiana Jumpa Lahiri ou a italiana de origem somali Igiaba Scego, em sua obra, a escritora parte de uma viv�ncia entre mundos para narrar a experi�ncia do tr�nsito entre l�nguas e refer�ncias culturais. O resultado � espantoso.

Finalista do prestigiado pr�mio Strega de 2019, “A estrangeira” percorre um arco temporal que vai do nascimento da narradora, no bairro do Brooklyn, passa pela adolesc�ncia na regi�o meridional italiana da Basilicata e chega na migra��o volunt�ria para Londres na idade adulta. O romance perfila uma galeria de personagens divertidos e pat�ticos – tios, tias, av�s, amigos, gente doida descrita com muita verve. Apesar de nada f�cil ser a “filha da muda”, n�o h� uma gota sequer de autocomisera��o – a resist�ncia vem por meio do riso, nunca do melodrama. “N�o h� um s� ato de viol�ncia na minha vida do qual eu possa me lembrar sem dar risada”, sustenta. Humor e ironia permeiam tudo, mesmo quando a barra pesa. E ela pesa.

Estes pais peculiares conduzem a vida familiar de forma an�rquica – n�o h� hor�rios, obriga��es ou “toque de recolher”. A forma��o acontece de forma ca�tica, a protagonista se nutre da leitura aleat�ria de livros e da observa��o dos tipos malucos � sua volta. Ela � sequestrada pelo pai certa vez, e d� longos passeios debaixo da chuva com a m�e, em vez de ir � escola. Nesse contexto, a figura materna avulta como grande personagem: meio hippie, l� o futuro no hor�scopo e nas cartas de tar�, al�m de consumir avidamente romances adocicados, e obrigar os filhos a assistir pela televis�o o Festival de San Remo, �cone da cafonice midi�tica. N�o trabalha e pinta quadros estranhos. � portadora de uma limita��o importante, mas nem por isso se transforma em modelo de virtude – ao contr�rio, se revela humana e cheia de falhas.

Aritm�tica familiar


Os pais n�o aceitam se valer da linguagem de sinais, fazendo com que os membros desse grupo se expressem por meio de um l�xico compreens�vel apenas para o estreito n�cleo familiar, provocando forte isolamento. Tamb�m cifrado � o ingl�s para os av�s da narradora. Ao migrar para os Estados Unidos, eles usam o idioma de forma prec�ria, e os pais surdos s�o incapazes de corrigir erros ou de se comunicar com precis�o. Essa vem a ser a aritm�tica familiar.

Entre a fala “desgramaticada” dos av�s e a l�ngua peculiar dos pais, a narradora vai elaborando uma s�rie de reflex�es sobre a condi��o inventada da linguagem e seu car�ter de contrabando. Dessa pujan�a nasce um romance excepcional, capaz de elaborar profundas reflex�es sobre o car�ter inst�vel da linguagem. A surdez vem representada como condi��o an�loga � da condi��o de estrangeiro. As duas situa��es envolvem a decifra��o do mundo do outro, al�m da pr�pria ideia de limita��o, de fronteiras constantemente visitadas.

A transi��o do peculiar universo lingu�stico dos pais ao seu, o esfor�o para construir a comunica��o, tudo � relatado sem condescend�ncia – seria por demais banal usar a palavra coragem, porque n�o se trata disso, e sim de uma brutal lucidez, pois esses afetos provocam enorme desgaste, ferem e magoam. Tentativas de suic�dio, rompimentos e desajustes abundam por ali. Por vezes, h� por parte da narradora o desejo de internar os genitores, de cessar a confusa corrente de amor emanada por eles. 

Na busca pelo entendimento dessa paisagem familiar, Durastanti interroga o pr�prio car�ter do sil�ncio. Sentir sua espessura, entrar em contato com essa dimens�o de forma �ntima equivale a conhecer o universo da surdez. A reflex�o sobre som e sil�ncio atravessa o romance, estabelecendo ecos na narrativa de forma brilhante. Nesse contexto, o contraponto chega com uma trilha sonora familiar para quem foi jovem no final do s�culo 20. L� est�o a m�sica do R.E.M. e Everything But The Girl, e as s�ries “Twin peaks”, “Barrados no baile”, os jovens River Phoenix e Winona Rider, os filmes “O piano” e “O profissional”, entre outros. Uma biografia afetiva dos anos 1990 vai se fazendo. 

Nesse percurso tr�pego, jamais em linha reta, persiste a ideia de uma certa margem de erro – os erros na tradu��o, na vida, na fam�lia. � preciso suportar o fracasso das perdas inevit�veis que se d�o no ato de traduzir (a cultura de um pa�s, a l�ngua, a condi��o de ouvinte � da surdez). Acolher o desconforto inerente aos m�ltiplos pertencimentos identit�rios equivale a entender a impossibilidade de fazer parte inteiramente da Basilicata, do Brooklyn ou de Londres. Assim como � invi�vel estar no lugar de uma pessoa surda. Da� a relev�ncia de se ler hoje uma narrativa como a de Durastanti. De muitas formas, o romance exercita esse olhar para a alteridade. Em tempos de xenofobia, viol�ncia e apagamento das diferen�as, um exerc�cio de escuta � sempre bem-vindo. E, para alguns de n�s que desejamos anular o sotaque ao falar outra l�ngua, denunciando uma perten�a � revelia de nossa vontade, vale ecoar, quem sabe, a sabedoria da nonna: “aran�”.

*Stefania Chiarelli � professora de literatura brasileira na UFF e coorganizou o volume “Falando com estranhos – O estrangeiro e a literatura brasileira” (7letras, 2016)
Claudia Durastanti: finalista do prestigiado prêmio Strega de 2019 com romance que começa nos EUA, passa pela Itália e chega a Londres(foto: DIVULGAÇÃO)
Claudia Durastanti: finalista do prestigiado pr�mio Strega de 2019 com romance que come�a nos EUA, passa pela It�lia e chega a Londres (foto: DIVULGA��O)

TRECHOS

Podemos fracassar numa hist�ria de amor, na rela��o com a m�e. Mas quando uma cidade nos repele, quando n�o conseguimos entrar em seus mecanismos mais profundos e estamos sempre do outro lado do vidro, somos tomados de uma sensa��o frustrada de m�rito, que pode se tornar doen�a. Estrangeiro � uma palavra bel�ssima, se ningu�m se for�a a s�-lo; o resto do tempo, � apenas o sin�nimo de uma mutila��o, e um tiro de pistola que nos damos sozinhos.

(...) nunca me importei: erros de tradu��o, sempre cometi e continuo cometendo, porque nenhum significado assume uma forma est�vel em mim, e tudo o que penso, e o que depois digo, sofre na transmigra��o entre pa�ses diferentes, perdendo sangue como os astronautas que passaram muito tempo no espa�o e, ao voltar para casa, sofrem de cont�nuas epistaxes sob o sol. 

“A estrangeira”
Claudia Durastanti
Tradu��o de Francesca Cricelli
Todavia Editora
256 p�ginas
64,90


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