Sobreviventes do genoc�dio de Ruanda: massacre de 1994 foi revisitado pelo escritor senegal�s Boubacar Boris Diop (foto: AFP)
“Vi com meus olhos um homem de meia-idade suplicar aos Interahamwe que acabassem com ele. Nada muito complicado: queria reunir-se ao filho na morte. Nossos homens, sentados sobre pilhas de cad�veres ainda quentes, tomavam sua cerveja e passavam cigarros uns para os outros, rindo na cara dele. Estavam completamente b�bados. N�o pude deixar de sorrir quando um deles lhe disse em tom de tro�a: ‘Ei! N�o enche, ru�o, voc� fala demais, os escrit�rios da morte est�o fechados, volta no come�o da tarde’. O homem continuava a insistir.
Teimoso, o cavalheiro. Eles o expulsavam e ele voltava � carga no minuto seguinte. Vencidos pelo cansa�o, resolveram acabar com o importuno. O que me parecia ser o chefe dos Interahamwe fez sinal a um de seus homens para que se ocupasse dele. Seu subordinado ent�o teve um acesso de raiva violento e s�bito. Berrou com todas as for�as: ‘Eu de novo! Sempre eu! Por qu�? Os outros est�o a� bebendo cerveja e voc� n�o lhes diz nada! Matei o dia todo, estou cansado!’. Foi nesse momento que um cachorro surgiu de um monte de cad�veres, com um p� de crian�a agarrado entre as mand�bulas. O homem, que sem d�vida tinha perdido a cabe�a fazia muito tempo, murmurou ent�o andando de mansinho na dire��o do animal: ‘Ah! Ah! o que � que estou vendo? � o meu Damien, estou reconhecendo o sapato dele!’.”
A narrativa est� em “Murambi, o livro das ossadas”, do senegal�s Boubacar Boris Diop, e d� a dimens�o do palco de horrores em que se desenrola o genoc�dio dos t�tsis de Ruanda. Traduzido pela primeira vez do original em franc�s para o portugu�s por Monica Stahel para edi��o da Carambaia, o livro come�ou a ser escrito em 1998, quatro anos ap�s as atrocidades que exterminaram entre 800 mil e 1 milh�o de pessoas entre 7 de abril e 15 de julho de 1994.
As personagens ficcionais d�o forma �s vidas e fatos reais, de inconceb�vel brutalidade, marcados na hist�ria da humanidade. Ao referir-se ao processo de pesquisa para escrever o romance, a imers�o no campo dos horrores para a escuta dos sobreviventes e dos matadores, Diop assinala: “O que dizer ent�o quando de repente um ser de carne e sangue senta-se � nossa frente e, mordendo com muito apetite seu espetinho de cabrito, nos intima por muitos gestos, sil�ncios e insinua��es a fazer dele um ser irreal? Percebe-se ent�o, ali�s muito depressa, a ambiguidade desse ‘comando de escrita’ de um tipo muito particular, pois, embora deseje tornar-se irreal, nosso interlocutor tamb�m n�o tem muita vontade de que o fa�amos outro que n�o ele mesmo…”.
O genoc�dio dos t�tsis de Ruanda se deu sob o olhar condescendente da Fran�a, da B�lgica, dos Estados Unidos e das demais pot�ncias ocidentais – e a impot�ncia da pr�pria Organiza��o das Na��es Unidas (ONU), que mantinha miss�o naquele pa�s. No decorrer dos 100 dias de terror, pessoas majoritariamente da etnia t�tsi, em suas casas, nas ruas, refugiadas em igrejas e escolas, n�o importa onde estivessem, foram esmagadas aleatoriamente como “baratas” – assim chamadas na a��o de milicianos extremistas hutus. Fac�es foram a principal arma empregada no supl�cio: deceparam beb�s, crian�as, anci�os, jovens, mulheres e homens de todas as idades.
Corpos mutilados, violentados antes que lhes fossem arrancados o �ltimo suspiro de horror, se empilharam em igrejas, escolas, ruas, rios. Alimentaram c�es. Alguns milhares foram jogados em valas comuns e enterrados na Escola Polit�cnica de Murambi, embaixo de quadras de esporte e churrasqueiras utilizadas pelas tropas francesas, que nada fizeram para impedir a chacina. Em recente visita ao memorial em Kigali, capital de Ruanda, o presidente da Fran�a, Emmanuel Macron, reconheceu, 27 anos depois, a responsabilidade pol�tica do pa�s no genoc�dio, que o mundo escolheu ignorar, entretido com a realiza��o da Copa do Mundo nos Estados Unidos.
Nas d�cadas subsequentes, a cumplicidade da espiral do sil�ncio envolvendo o massacre, inclusive na pr�pria �frica, encontrou outros �libis. A trag�dia de “dimens�o c�smica” n�o alcan�ou a devida empatia e esperada repercuss�o civilizat�ria.
O magistral romance de Diop promove a imers�o no cl�max do genoc�dio metodicamente anunciado pelo desencadeamento dos acontecimentos. � tamb�m o relato de como se rasga uma na��o, alimentando e construindo o �dio entre etnias ou grupos, extraindo-lhes, aos poucos, a humanidade – transformando-os em “objetos” ou “insetos”, respons�veis por todos os males, o inimigo interno a ser extirpado, esmagado. Nenhum pa�s do planeta est� a salvo de armar o seu pr�prio teatro do horror.
“Murambi, o livro das ossadas” foi concebido em 1998 no �mbito de um projeto do Fest’Africa, encontro liter�rio anual em Lille, na Fran�a, no qual uma dezena de escritores africanos, entre os quais Diop, foram enviados a Ruanda. L� permaneceram por dois meses para pesquisar e trazer ao primeiro plano, sob a forma de romances, di�rios, ensaios e poemas, o �ltimo genoc�dio do s�culo 20.
Assentado, portanto, em fatos desencadeados pela a��o de pessoas que assumem na obra formas ficcionais, “Murambi, o livro das ossadas” est� dividido em quatro partes. A primeira e a terceira, respectivamente, “O medo e a raiva” e “O genoc�dio”, contrap�em tr�s vertentes de narrativas em primeira pessoa de diversas personagens em posi��es antag�nicas do conflito.
A primeira � a perspectiva das v�timas do genoc�dio, a vis�o t�tsi; a segunda traz o enquadramento hutu e de personagens c�mplices do genoc�dio, mandantes e matadores; e, a terceira, a perspectiva hist�rica, encarnada principalmente pela personagem Jessica, militante da Frente Patri�tica do Ruanda (RPF), que na trama representa a informante da resist�ncia tutsi, sob disfarce hutu: sem quebrar a intimidade das narrativas em primeira pessoa, ela oferece a leitura privilegiada de quem costura a linha do tempo, entrela�ando os elementos que ir�o desaguar no genoc�dio t�tsi, o que inclusive confronta as contempor�neas perspectivas negacionistas sobre o genoc�dio.
Michel Serumundo, pequeno empres�rio t�tsi, � quem introduz o conflito ao leitor. Descreve o retorno do trabalho naquele 6 de abril, quando o avi�o que levava Juv�nal Habyarimana, o presidente ruand�s da etnia hutu, foi derrubado por m�sseis. Num trajeto interrompido por bloqueios de barreira, em que o seu grupo �tnico � examinado pelas For�as Armadas e observa a movimenta��o nas ruas das for�as policiais paramilitares Interahamwe, Serumundo, dono de uma locadora de v�deos de guerra, n�o entende a evidente tens�o. Quando tomara o caminho de casa, ainda ignorava o v�cuo que se abrira no poder com a morte do presidente, diligentemente atribu�da aos t�tsis.
O senegal�s Boubacar Boris Diop conversou com sobreviventes e matadores, al�m de ter visitado os locais do genoc�dio dos t�tsis em 1994
(foto: DIVULGA��O)
FRENESI DE TERROR
A ignor�ncia de Serumundo em rela��o ao fato que conflagra o genoc�dio � simb�lica: a maior parte das v�timas que viria a ser abatida nos 100 dias de terror n�o entendeu o filme da chacina do qual se tornou protagonista. O frenesi de terror, que chegou a arrancar cabe�as e ventres de 10 mil pessoas por dia, n�o poupou esposas t�tsis dos golpes de fac�o de maridos; nem vizinhos e amigos do ato final de concidad�os.
Em posf�cio da edi��o, o autor relata a incredulidade dos ruandeses, mesmo quatro anos ap�s o genoc�dio, quando lhe confiaram as suas hist�rias e dramas pessoais: intelectuais, artistas e cidad�os comuns confessavam, com grande frequ�ncia, “n�o ter compreendido nada do que lhes acontecera, que �s vezes era de suspeitar que contassem conosco para desvendar o mist�rio de um �dio t�o radical e devastador…”
Na segunda vertente discursiva, a ideologia supremacista Hutu Power, surgida em Ruanda no in�cio dos anos 1990, agrupando extremistas hutus em mil�cias antit�tsis, a principal das quais a Interahamwe, ganha voz por meio de diversos matadores e mandantes. Faustin Gusana � o primeiro a introduzir a narrativa: dois dias depois do in�cio da matan�a vai visitar a fam�lia. Na casa, a normalidade de um afetuoso conv�vio com as irm�s e a m�e – que naturaliza o cen�rio da chacina iniciada – � quebrada pela tensa rela��o com o pai, um anci�o que, acamado e doente, exala mau h�lito e tem um ferimento do qual o pus goteja.
A decrepitude f�sica do pai espelha as fan�ticas ideias que circulam e se convertem em senso comum entre os extremistas hutus – e perpassam as rela��es afetuosas nos lares. Exortado pelo pai a n�o deixar escapar uma s� “barata”, por mais jovem que seja, Faustin Gusana narra: “Pensar o impens�vel. O h�lito f�tido do pai. O pai que n�o acaba de morrer. Todo o tempo maldizendo e expulsando algu�m de sua casa.
E todos aqueles t�tsis para matar. Eu n�o achava que fossem t�o numerosos. Tenho a impress�o de que o planeta � povoado de t�tsis. De que no mundo s� n�s n�o somos t�tsis. Antes, era t�o f�cil gritar com a for�a do trov�o: ‘Tubatsembatsembe!’. � preciso matar todos eles! No p�tio, encontro minhas irm�s e vizinhos sentados em volta da minha m�e. Sento-me numa cadeira e Louise me estende um copo de ch�”. Uma ideia persegue o genoc�dio: nem crian�as podem ser poupadas, pois elas seriam os “vingadores” do futuro.
Narrado em terceira pessoa, Cornelius, � o nome da personagem central da trama. Ele � introduzido na segunda e quarta partes do romance, nessa ordem, “A volta de Cornelius” e “Murambi”, localidade que abriga o palco de uma das chacinas. Express�o da ambiguidade do mundo diante do genoc�dio, Cornelius � um expatriado ruand�s, filho do m�dico Joseph Karekezi, hutu, e de m�e t�tsi. Retorna em 1998 ao pa�s, idealizando-se em posi��o de “estrangeiro” ao massacre.
O magistral romance de Diop promove a imers�o no cl�max do genoc�dio metodicamente anunciado pelo desencadeamento dos acontecimentos. � tamb�m o relato de como se rasga uma na��o, alimentando e construindo o �dio entre etnias ou grupos, extraindo-lhes, aos poucos a humanidade %u2013 transformando-os em "objetos" ou "insetos", respons�veis por todos os males, o inimigo interno a ser extirpado, esmagado
Pouco sabe do que se passou, inclusive, desconhece que o pr�prio pai foi o mandante do genoc�dio na Escola T�cnica de Murambi, onde foram exterminadas entre 45 mil e 50 mil pessoas da etnia t�tsi, entre as quais a pr�pria m�e e as irm�s, presas na armadilha do pai, Joseph Karekesi, que se fazia passar por protetor daquela escola percebida como “fortaleza” imune ao furor hutu. A trajet�ria de Cornelius reflete a ambiguidade do mundo diante do genoc�dio: o fato de ter estado fora, ignorado os fatos e se omitido, n�o o inocenta. Ao contr�rio, ser filho de um pai monstro � heran�a que carregar� pela vida.
De toda a trama hist�rica exposta por “Murambi, o livro das ossadas”, o ingrediente mais assustador � que a barb�rie seja executada por pessoas comuns, capazes de rela��es de afeto em seu conv�vio familiar; ensinadas, contudo, a transformar “o outro” em inseto, no mal, portanto, incapazes de qualquer empatia com o outro grupo �tnico. Obviamente, h� uma constru��o hist�rica at� esse desfecho. Conhec�-la � a melhor forma de evit�-la.
Nas palavras de Diop: “’Murambi, o livro das ossadas’ d� muito mais import�ncia aos fatos relatados por meus interlocutores do que ao ilusionismo muitas vezes associado a uma escrita experimental que era, permitam-me apontar, minha marca registrada. Mudei completamente de opini�o depois de uma semana. As conversas com os sobreviventes e os matadores, assim como as visitas aos locais do genoc�dio dos t�tsis, foram uma aula de hist�ria que eu quis a todo custo compartilhar com meus leitores. Para minha grande vergonha, eu acabava de ficar sabendo algo de que nunca deveria duvidar, ou seja, que em Ruanda tamb�m houvera, pura e simplesmente, v�timas e carrascos”.
A prop�sito da responsabilidade de cada um em rela��o aos carrascos que emergem das sombras no curso da hist�ria, Hannah Arendt registra: “Foi como se naqueles �ltimos minutos estivessem resumindo a li��o que este longo curso de maldade humana nos ensinou — a li��o da tem�vel banalidade do mal, que desafia as palavras e os pensamentos”.