(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas ENTREVISTA

Joca Reiners Terron: 'Minha obsess�o � sobreviver'

Escritor lan�a o romance apocal�ptico 'O livro dos ratos', inspirado na realidade brasileira


11/06/2021 04:00 - atualizado 11/06/2021 09:41

Terron: 'O futuro do Brasil está nas dívidas sociais a serem saldadas'(foto: Divulgação)
Terron: 'O futuro do Brasil est� nas d�vidas sociais a serem saldadas' (foto: Divulga��o)

� o fim do mundo como n�s conhecemos e os personagens dos romances de Joca Reiners Terron n�o est�o se sentindo muito bem. Talvez o escritor tamb�m n�o esteja. Nem n�s, leitores dos assombrosos – e aterradores – “Noite dentro da noite” (2017), “A morte e o meteoro” (2019) e o rec�m-lan�ado “O riso dos ratos” (Todavia). Tr�s grandes livros em seis anos, a rea��o poss�vel de Terron ao estado das coisas no Brasil. � muito.

Mas n�o � tudo. “Tenho um livro in�dito que escrevi em 2018 e gostaria de publicar, ‘Mapa desbotado pelo sol’, uma esp�cie de novela p�s-apocal�ptica em versos. O fim do mundo chegou aos meus poemas”, reconhece o cuiabano de 53 anos, radicado em S�o Paulo, atualmente vivendo no Cear�.

O narrador do nosso apocalipse vive de aulas on-line (“T�m colocado comida na mesa e me empenho muit�ssimo nelas”) e preencheu dois cadernos com as senten�as incisivas de “O riso dos ratos”, um livro sobre obsess�o e vingan�a. “Escrever assim, al�m de doloroso para quem sofre de tendinite como eu, � lento”, reconhece, antes de comparar: “�s vezes, se parece com desenhar. Gostaria que esse aspecto gestual tivesse permanecido na escrita”.

Desencantado com a situa��o pol�tica atual (“Agora temos a treva em pleno cora��o do Estado”), Terron acredita que a sa�da passa por um olhar atento ao que ficou para tr�s. “O futuro do Brasil est� no passado, nas d�vidas sociais hist�ricas a serem saldadas, na condena��o de torturadores e militares. Sem isso, novas ideias de futuro n�o v�o surgir”, aposta, lembrando a condi��o do pa�s, em permanente oscila��o entre a promessa e o retrocesso.

Ele tamb�m aponta o que n�o gosta na literatura contempor�nea nacional (“A linguagem contaminada pelas palavras de ordem do discurso pol�tico do n�vel do Twitter e do Facebook”) e revela a sua maior obsess�o: sobreviver. “Este pa�s n�o � cruel somente com seus artistas, mas com seu povo em geral. Das coisas que algum dia tive a ilus�o de saber fazer, escrever � a �nica que me restou. A literatura � minha ideia fixa”, ressalta. A seguir, a �ntegra da entrevista, com algumas perguntas elaboradas a partir de cita��es de passagens de “O riso dos ratos”.
 

"Agora temos a treva em pleno cora��o do Estado. Diante desse quadro, fica dif�cil falar em literatura, algo t�o fr�gil e ao mesmo tempo enraizado em h�bitos antigos, algo que para mim sempre existir�, ainda que � revelia do mercado"

 

De onde veio “O riso dos ratos”? 
Brotou de um di�rio escrito durante tr�s meses de abstin�ncia alco�lica que enfrentei em 2012. No final, a causa da abstin�ncia se revelou falsa, mas permaneceu o susto que originou o livro. S� que a voz em primeira pessoa do di�rio que relatava aquele percal�o era ir�nica demais, encontrava gra�a na desgra�a, n�o combinava com o tom exigido pela narrativa. Depois de publicar “A morte e o meteoro”, decidi dar mais uma chance ao livro, e o escrevi a m�o em dois cadernos. Escrever assim, al�m de doloroso para quem sofre de tendinite como eu, � lento. �s vezes se parece com desenhar. Gostaria que esse aspecto gestual tivesse permanecido na escrita.

Consegue enxergar semelhan�as entre “O riso dos ratos” e seus romances anteriores?
�s vezes, me iludo que meus livros s�o todos diferentes entre si, e a busca dessa voz narrativa � parte da ilus�o. Talvez a voz seja sempre a mesma, no fim das contas, e todos os livros n�o passem de um s� livro, marcado pelas mesmas obsess�es, traumas e neuroses de sempre.

“Nos bares, apartamentos e pr�dios, a brutalidade, como a viol�ncia, era a base de tudo”, voc� escreve no livro. O que � mais brutal: o Brasil real ou a fic��o de “O riso dos ratos”?
Pela rea��o que o livro tem arrancado dos primeiros leitores, aparentemente o livro � mais brutal. N�o deixa de ser curioso que seja assim, j� que no Brasil voc� pode sair com sua fam�lia para ir a um ch� de beb� e ser assassinado com oitenta tiros, como aconteceu com Evaldo Rosa, no Rio. J� os leitores do meu livro permanecem intactos ao termin�-lo, talvez com a consci�ncia mais agu�ada de nossa realidade; ao menos, � o que espero. De todo modo, “O riso dos ratos” faz parte do Brasil, pertence � realidade brasileira. N�o poderia ser diferente, pois nasceu dela.

“O futuro, antes aberto � imagina��o, agora era previs�vel.” E o futuro do Brasil? E o da literatura no Brasil?
O bolsonarismo anda louco para botar um ponto final no futuro do Brasil. O t�tulo ufanista de Stefan Zweig, “O Brasil � o pa�s do futuro” etc., como sabemos, serviu de ep�teto para muita mistifica��o. Aqui � sempre essa oscila��o entre a promessa e o retrocesso. Costumeiramente, os bairros pobres, o Centro decadente, as periferias das grandes cidades e as franjas do pa�s est�o sob a treva do descalabro, s�o zonas fora da lei. Mas agora temos a treva em pleno cora��o do Estado. Diante desse quadro, fica dif�cil falar em literatura, algo t�o fr�gil e ao mesmo tempo enraizado em h�bitos antigos, algo que para mim sempre existir�, ainda que � revelia do mercado. O futuro do Brasil est� no passado, nas d�vidas sociais hist�ricas a serem saldadas, na condena��o de torturadores e militares. Sem isso, novas ideias de futuro n�o v�o surgir.

“O sol iluminava a cidade como uma ideia fixa.” E quais s�o as suas ideias fixas?
Desde 2001, quando abandonei meu �ltimo emprego, minha obsess�o � sobreviver. Para isso, j� traduzi livros de l�nguas que ignoro e cumpri todo papel humilhante que um escritor possa suportar: certa vez, estava lan�ando um livro supercaro em uma feira em Santa Catarina e, ao chegar, descobri que a plateia era composta de adultos da zona rural que estavam em processo de alfabetiza��o. Me senti absolutamente constrangido pela situa��o, que contornei fazendo uma conversa sobre como a leitura tinha se tornado t�o importante para mim e cancelando qualquer venda de livros.

A situa��o � exemplar dos abismos sociais que nos cercam e aprisionam, e de como a vida de escritor num pa�s que despreza a educa��o se confunde com a de um bicho em extin��o. Este pa�s n�o � cruel somente com seus artistas, mas com seu povo em geral. Das coisas que algum dia tive a ilus�o de saber fazer, escrever � a �nica que me restou. A literatura � minha ideia fixa.

Apocalipse (“A morte e o meteoro” e “O riso dos ratos”) e trag�dias pessoais dos protagonistas (“O riso dos ratos”, “Do fundo do po�o se v� a lua”, “Noite dentro da noite” e “A tristeza extraordin�ria do leopardo-das-neves”) permeiam suas obras. Por que tantas distopias e descalabros? 
Uma vez, algum leitor me definiu na internet como “um Thomas Pynchon sentimental” ou algo assim. Sinto, por�m, que n�o sou t�o bom escritor quanto Pynchon, nem t�o sentimental quanto gostaria, j� que meus livros n�o vendem quase nada. Suponho que se fosse cafona como grande parte da literatura brasileira isso refletiria nas vendas. Devo concluir que o tal leitor estava equivocado? Ou devo entender que ali ele me fornecia gratuitamente a f�rmula do sucesso? N�o sei dizer.

Diante de uma realidade t�o dif�cil, como pode reagir o escritor?
Com uma cotovelada, no meu caso, uma cotovelada em forma de narrativa ficcional, que, temo, nem � t�o grossa assim (o livro tem pouco mais de 200 p�ginas) a ponto de se configurar como uma arma que sirva para me proteger.

No firmamento, acendendo uma a uma, as estrelas velavam por todos n�s, os mortos aqui embaixo.” H� chance de ressurrei��o para os mortos aqui embaixo?
Nenhuma. Mas em alguns casos ainda d� tempo de tomar um sorvete ou fumar um cigarro.

Algumas mulheres, em suas obras, s�o v�timas de abusos e malvistas (a �ndia prostitu�da em “A morte e o meteoro”, escravas sexuais em “O riso dos ratos”, a m�e “rata” de “Noite dentro da noite”, a velha assassina e a criatura rejeitada em “A tristeza extraordin�ria” e a transexual decapitada em “Do fundo do po�o se v� a lua”). N�o h� futuro para elas tamb�m?
At� onde sei, as mulheres ainda pertencem � humanidade, o que � p�ssima not�cia para elas, visto que nos encontramos no que parece ser um per�odo particularmente sens�vel do Antropoceno. Quanto �s personagens, elas n�o s�o malvistas nem bem-vistas, simplesmente s�o, e no ato de ser est�o sujeitas a situa��es boas e ruins, assim como os personagens masculinos e todo o besti�rio que costuma aparecer nos meus livros. Talvez “O riso dos ratos” seja um romance sobre as chances de futuro segundo as mulheres, j� que elas protagonizam algumas das situa��es mais corajosas do romance.

Apesar da realidade desesperadora, o protagonista de “O riso dos ratos” tem um momento de esperan�a quando reflete: “Tinha vivido o suficiente para saber que o amor � o aspecto concreto da exist�ncia, seu elemento mais vis�vel, o �nico que permite � consci�ncia entender a vida como algo palp�vel, e a palavra amor, ao ser pronunciada, tornava-se por extens�o a pr�pria vida”. O que o amor pode fazer nos dias de hoje?
Estou com Mario Levrero, que ao ouvir uma pergunta parecida citou aqueles versos de Pound: “Cantemos o amor e o �cio, que nada mais merece existir”. � preciso deixar o amor fazer o que s� ele sabe fazer, que algu�m crie o Gabinete do �cio e do Amor.

Seus livros v�o muito al�m do realismo. Extrapolam a linearidade pela metalinguagem, polifonia, atemporalidade e elementos de outras culturas. � uma op��o racional ou instintiva? O que acha da literatura que tenta reproduzir a realidade?
Trabalho com o que li e aprendi, ou mesmo que li, entendi errado e distor�o �s vezes sem querer, pois a mem�ria � falha e a imagina��o preenche os lapsos do que � esquecido. Sempre exploro alguma ideia relativa ao tempo, intu�da de antem�o. Como a ordem dos cap�tulos de “O riso dos ratos”, que emula etapas da hist�ria brasileira desde a invas�o colonial s� que ao contr�rio, do presente para o passado. Todos os aspectos mencionados por voc� pertencem � realidade, portanto s� posso supor que fa�o uma literatura realista, mas n�o era minha inten��o, desculpe. Os �ltimos mestres do realismo, como Flaubert e Machado de Assis, entenderam que, como conven��o, haviam chegado ao limite. Por isso se encarregaram eles mesmos de dinamitar a ponte, escrevendo “Bouvard e P�cuchet” e “Mem�rias p�stumas de Br�s Cubas”. Qualquer fic��o que ignore esses passos me soa a retrocesso.

Em sua conta no Twitter, voc� opinou sobre uso da “narra��o como libelo”, num processo de edulcora��o do comportamento e achatamento da experi�ncia humana por “trair o que a literatura tem de mais essencial: sua capacidade de refletir contr�rios, ou de ser pura linguagem”. Poderia explicar melhor a sua cr�tica � “sociologia disfar�ada de literatura?”
Percebo uma onda meio caga-regra na fic��o, entre alunos, mas tamb�m entre autores publicados, cuja linguagem tem sido contaminada pelas palavras de ordem do discurso pol�tico do n�vel do Twitter e do Facebook. O fen�meno tem gerado uma literatura conteudista repleta de personagens inequivocamente “bons” e “maus”, ou de protagonistas beatos. A literatura � o lugar onde podemos encontrar o monstro e aprender algo desse encontro. Quando encontramos o monstro na pr�xima esquina, nem sempre � poss�vel escapar dele a ponto de que o aprendizado decorrente da experi�ncia possa nos ser �til.

Voc� sempre defendeu uma integra��o maior do Brasil com a literatura produzida nos pa�ses vizinhos. Acredita que, nos �ltimos anos, estamos ainda mais distantes? O que acha do fato de escritores argentinos contempor�neos como Mariana Enriquez serem indicados a pr�mios internacionais como o Booker Prize e o Brasil n�o conseguir o mesmo reconhecimento?
A l�ngua espanhola � uma commodity mais valorizada que a l�ngua portuguesa. Como pa�s imperialista que �, a Espanha n�o admite ceder sua l�ngua �s ex-col�nias, premiando e subsidiando autores hispano-americanos. Isso cria um fen�meno de duplo sentido, pois o mercado � mais amplo, e as variantes lingu�sticas terminam sendo beneficiadas. Nesse sentido, Portugal n�o nos interessa. A �nica premia��o liter�ria que beneficia autores lus�fonos de onde quer que sejam � o Oceanos, iniciativa brasileira. Depois de levar todo o nosso ouro, nossos colonizadores se tornaram mesquinhos: querem a l�ngua portuguesa s� para eles. Pois que fiquem com a deles, e n�s com a nossa.

Voc� passou um tempo da pandemia na cidade de S�o Paulo, outro no litoral cearense. O que mudou na sua percep��o? Do lugar onde est� agora, o que consegue enxergar?
O rosto da Eg�pcia do Crato, seus olhos castanho-derretidos detr�s de sua cabe�a heroica que tanto amo, vejo o c�u alaranjado de nuvens e no horizonte a l�mina prateada do mar, ao fundo ou�o p�ssaros que talvez cantem “bem-te-vi”, mas que prefiro entender como “e agora, pra onde ir?”.


receba nossa newsletter

Comece o dia com as not�cias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, fa�a seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)