
Imagine um mundo que teve grande parte da popula��o morta por uma febre, a cidade est� em ru�nas, os sobreviventes s�o escravizados por mil�cias e obrigados a comer cachorro e ratos famintos capturados para um execr�vel card�pio e as mulheres s�o confinadas em rebanhos como escravas sexuais. E em meio a essa terr�vel distopia est� um protagonista sem nome, com uma doen�a terminal causada pelo alcoolismo e � ca�a obsessiva por um desconhecido que estuprou sua filha, que abandonou o pai exatamente por causa desse desejo de vingan�a. Mas � essa promessa que o mant�m vivo, mesmo quando tamb�m � escravizado para trabalhos for�ados na demoli��o de um cemit�rio, �nica �rea n�o contaminada onde � poss�vel cultivar alimentos.
o escritor cuiabano Joca Reiners Terron retoma o tema do apocalipse com uma distopia ainda mais contundente e, como obras anteriores, aborda a busca de identidade coletiva e individual e a difusa atemporalidade misturando passado, presente e futuro. Se no primeiro a trama gira em torno da destrui��o da Amaz�nia e de Boaventura (um sertanista aventureiro e inescrupuloso em meio ao exterm�nio de ind�genas, inclusive da �ltima �ndia que poderia garantir a perpetua��o da tribo, mas � raptada, estuprada, engravidada e prostitu�da por ele), em “O riso dos ratos” o cen�rio � mais cruel e devastador.
Depois de “A morte e o meteoro”, seu livro anterior, A analogia do Brasil atual com a obra de Terron e seu protagonista � inevit�vel. “Aqui (Brasil) � sempre essa oscila��o entre a promessa e o retrocesso”, diz o autor em entrevista ao Pensar. Esse tamb�m � o dilema do protagonista, que tem futuro incerto e mal vive o presente por causa da promessa de vingan�a que fez a si mesmo, enquanto vai purgando a culpa do passado, quando tentou matar a m�e de sua filha. “O futuro do Brasil est� no passado, nas d�vidas sociais hist�ricas a serem saldadas, na condena��o de torturadores e militares. Sem isso, novas ideias de futuro n�o v�o surgir”, afirma o escritor.
Nenhum leitor fica inc�lume ap�s a leitura de um livro de Terron, embora as p�ginas da fic��o n�o firam seu corpo e sua dignidade, ao contr�rio do risco do Brasil real, violento e preconceituoso. “N�o deixa de ser curioso que seja assim, j� que no Brasil voc� pode sair com sua fam�lia para ir a um ch� de beb� e ser assassinado com oitenta tiros, como aconteceu com Evaldo Rosa, no Rio. J� os leitores do meu livro permanecem intactos ao termin�-lo, talvez com a consci�ncia mais agu�ada de nossa realidade; ao menos, � o que espero”, diz o autor.
Terron n�o d� nome ao protagonista, j� um claro indicativo da dificuldade de identidade desse homem atormentado que n�o consegue viver o presente porque busca a vingan�a num futuro que nunca chega. E sob a repulsa da pr�pria filha, que, apesar de ser a v�tima, n�o concorda com a conduta do pai: “A �nica resposta para o que sofri deve ser da Justi�a. Um ato de viol�ncia n�o vai conduzir toda a humanidade para a barb�rie, mas um s� ato de viol�ncia causa uma rea��o em cadeia que pode ser interrompida, que deve ser interrompida. N�o escolhi ser a v�tima. Mas posso escolher n�o ser o carrasco”.
Entretanto, nem a realidade nem alucina��es abalam a obsess�o do pai. Afinal, o rato est� ali sempre � espreita, � deriva, para observ�-lo, seja boiando sobre um chinelo na enxurrada do temporal, seja no ca�tico navio naufragado do qual ele � escravo.
O OPOSTO DA MORTE � O AMOR
Embora Terron manifeste profunda descren�a no Brasil e em suas tramas ficcionais, nessa nova trag�dia liter�ria parece haver outra luz no fim do t�nel do apocalipse al�m da rea��o da filha ao rejeitar o comportamento vingativo do pai. Essa nova esperan�a est� no fim de “O riso dos ratos”, na reflex�o do pai atormentado no cativeiro ao lembrar que chamava a filha de “meu amor' quando ela era pequena: “Agora sentia falta de pronunciar aquela palavra, de sentir a palavra se formando na boca, de diz�-la, embora soubesse que chamaria a aten��o dos feitores; assim mesmo ele desejou pronunciar aquela palavra redonda e macia, que culminava nas arestas do erre, porque agora sabia que oposto da morte n�o era a vida, mas o amor.
Para quem vive, a vida n�o passa de abstra��o. Tinha vivido o suficiente para saber que o amor � o aspecto concreto da exist�ncia, o �nico que permite � consci�ncia entender a vida como algo palp�vel, e a palavra amor, ao ser pronunciada, tornava-se por extens�o a pr�pria vida”.
Para quem vive, a vida n�o passa de abstra��o. Tinha vivido o suficiente para saber que o amor � o aspecto concreto da exist�ncia, o �nico que permite � consci�ncia entender a vida como algo palp�vel, e a palavra amor, ao ser pronunciada, tornava-se por extens�o a pr�pria vida”.
Ser� ent�o que o amor pode salvar os humanos? Terron responde com idealismo ir�nico: “Estou com Mario Levrero, que ao ouvir uma pergunta parecida, citou aqueles versos de Pound: 'Cantemos o amor e o �cio, que nada mais merece existir'. � preciso deixar o amor fazer o que s� ele sabe fazer, que algu�m crie o Gabinete do �cio e do Amor”.
DIVERSIDADE TEM�TICA
Joca Reiners Terron tem se destacado como um dos principais escritores brasileiros da atualidade por causa da diversidade de temas, estilo, linguagem e ousadia de suas obras, desde a primeira, “N�o h� nada l�” (2001), um curioso del�rio liter�rio que entrela�a a vida de personalidades famosas. A mais surpreendente � “Noite dentro da noite” (2017), em que mescla metalinguagem, polifonia e atemporalidade na vida de um menino que perde a mem�ria durante uma brincadeira na escola. O contexto da amn�sia leva o protagonista j� adulto em busca do passado, a uma viagem ao horror do nazismo e tamb�m da ditadura militar brasileira nos anos 1970. A complexa trama, al�m desses fatos hist�ricos, inclui at� elementos m�sticos e uma flor-vampiro. Um livro raro e surpreendente.
Outra obra curiosa � “A tristeza extraordin�ria do leopardo-das-neves” (2013), uma incr�vel narrativa policial e fant�stica envolvendo um zool�gico aberto. De novo, apresenta o tema da identidade, agora de uma das protagonistas, a “criatura” sem nome, portadora de doen�a rara e v�tima de preconceito e viol�ncia.
M�ritos tamb�m para “Do fundo do po�o se v� a lua” (2010), vencedor do pr�mio Machado de Assis da Biblioteca Nacional. Mais uma vez, a quest�o da identidade do protagonista e as incertezas sobre passado, presente e futuro s�o realidade que permeia a vida de dois g�meos id�nticos separados ap�s a morte do pai e que trilham destinos diferentes. Com uma trama lastreada em S�o Paulo e no Cairo, Terron aborda o dif�cil tema da transexualidade do protagonista Wilson/Cle�patra, cuja mudan�a radical de vida surge da fantasia cinematogr�fica da rainha eg�pcia interpretada pela atriz Elizabeth Taylor, com uma narrativa literalmente fant�stica, ao melhor estilo Br�s Cubas.

“O riso dos ratos”
• Joca Reiners Terron
• Todavia
• 208 p�ginas
• R$ 62,90
• R$ 39,90 (e-book)
TRECHO DO LIVRO
“A chuva arremetia como estilha�os de vidro nas feridas das costas dos homens e mulheres, o sol n�o passava de lembran�a. Demoliam t�mulos, jazigos e mausol�us com marretas e picaretas. Por um instante reteve a p� que usava para remover o entulho. (…) Do alto dos blocos de cimento, o feitor estalou a chibata e um dos tr�s agulh�es de a�o das pontas lhe triscou o ombro, deixando um talho fino e profundo. Ele encheu a p� com pressa e a despejou na carro�a � espera, que logo partiu, puxada por um magricelo que bufava e gemia � beira do desfalecimento. Atravancada pelos pedregulhos da trilha, a carro�a se perdeu no terreno onde homens trabalhavam como vermes num cad�ver de v�spera.”