Biografia mostra a vida de aventuras e trag�dias de Euclides da Cunha
Passagens pouco conhecidas, com o racismo em 'Os sert�es' e expedi��o � Amaz�nia s�o detalhadas pelo historiador Lu�s Cl�udio Villafa�e G. Santos
“Ao descer do trem, perguntou pelo endere�o que lhe haviam indicado. Ali pernoitara sua mulher. Deixou o guarda-chuva e a capa pendurados no port�o do jardim da casa (…) Convidado por Dinor� [irm�o de Dilermando], Euclides entrou na casa [com a arma oculta no bolso] e, depois de discutir brevemente com ele, invadiu o quarto de Dilermando chutando a porta e j� de arma em punho. Atirou contra o amante da mulher e depois contra Dinor�, que tentara intervir. Dilermando, mesmo ferido com dois disparos, alcan�ou seu rev�lver e reagiu. Ap�s dois tiros de advert�ncia, feriu o agressor com dois disparos, um deles no pulso. Sem poder continuar o duelo, Euclides tentou fugir, perseguido pelo cadete, que lhe desferiu um �ltimo tiro quando ele j� estava do lado de fora, descendo a escada que dava para o jardim. Ainda agonizante, foi carregado de volta para dentro da casa. O escritor Euclides da Cunha faleceu em seguida. A morte do autor de 'Os sert�es', nas dif�ceis circunst�ncias em que se deu, tornou-se um dos grandes esc�ndalos da Primeira Rep�blica e foi explorada � exaust�o, por semanas a fio, pelos jornais.”
(foto: Quinho)
Terminaram assim os dias do j� c�lebre escritor Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha, com apenas 43 anos, numa manh� nublada de domingo, 15 de agosto de 1909, no Bairro da Piedade, no Rio de Janeiro, no relato do historiador e diplomata Lu�s Cl�udio Villafa�e G. Santos, em “Euclides da Cunha – Uma biografia”. O escritor j� sabia, havia pelo menos tr�s anos, do romance de sua mulher, Ana Em�lia Ribeiro da Cunha, ent�o com 37 anos, com o cadete Dilermando de Assis, de 21, a quem ela havia conhecido quando morou numa pens�o durante uma das muitas aus�ncias de viagem do escritor.
Ana e Dilermando tiveram dois filhos, cuja paternidade foi assumida por Euclides, que tamb�m havia tido quatro filhos com a mulher. Naquele domingo, entretanto, ap�s nova insist�ncia de Ana em desfazer o casamento e a evid�ncia de que ela passara a noite na casa do cadete e n�o pretendia mais voltar para o mesmo teto de Euclides. De temperamento explosivo, o escritor decidiu, ent�o, matar o amante e, possivelmente, Ana, mas acabou perdendo a pr�pria vida. E, mesmo ap�s sua morte, a trag�dia assolou a fam�lia. Em 4 de julho de 1916, o aspirante Euclides da Cunha Filho tentou vingar a morte do pai e tamb�m acabou morto. Dilermando foi absolvido nos dois casos por leg�tima defesa.
Com a sa�de fr�gil, comprometida por uma tuberculose cr�nica, Euclides teve uma vida de gl�rias e trag�dias pessoais e coletivas. A inf�ncia, que come�ou em Cantagalo (RJ), foi errante entre parentes, porque sua m�e morreu quando ele tinha 3 anos e seu pai n�o o criou. Foi militar, cientista, cart�grafo, jornalista, escritor e engenheiro, construiu fortifica��es militares e pontes. “Os sert�es”, sua principal obra, ainda hoje � objeto de estudos por suas dimens�es hist�ricas, jornal�sticas e cartogr�ficas.
Teve vida intensa e aventurosa num dos per�odos mais conturbados da hist�ria do Brasil – a �ltima d�cada do s�culo 19, marcada pelos primeiros anos da Rep�blica, e a primeira do s�culo 20 – entre golpe e tentativas de golpe de Estado, revoltas diversas, a ren�ncia de um presidente e um atentado contra outro. Conviveu com os pol�ticos mais influentes da �poca, como os presidentes-marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto e tamb�m com o Bar�o do Rio Branco, que teve influ�ncia importante em sua vida.
AVENTURA NA FLORESTA
Um diferencial da biografia escrita por Villafa�e � apresentar ao leitor uma face pouco conhecida de Euclides, abafada por “Os sert�es” e pela tr�gica morte. Caso do seu trabalho no Itamaraty e da expedi��o, em 1904-1905, que ele comandou � regi�o do Alto Purus, no cora��o da Amaz�nia, para definir a demarca��o de fronteira disputada entre Brasil e Peru. Ele chegou � nascente do Rio Purus como chefe da Comiss�o Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purus.
Al�m da animosidade de ind�genas, seringueiros e de peruanos, ataques de insetos e animais selvagens, Euclides contraiu mal�ria, o que debilitou mais ainda sua sa�de j� afetada pela tuberculose. Ele queria escrever um livro sobre a aventura na Amaz�nia, chamado “Um para�so perdido”, mas n�o viveu para tanto.
“Do ponto de vista biogr�fico, causa espanto o desconhecimento quase absoluto sobre o pouco mais de um ano que Euclides passou na Amaz�nia, em contraste com a grande aten��o dada aos menos de tr�s meses passados na Bahia e ao par de semanas em que esteve na frente de batalha durante a quarta expedi��o a Belo Monte [Canudos]. Do mesmo modo, os anos em que desempenhou diversas atividades no Itamaraty s�o eclipsados pela narrativa dos fatos e circunst�ncias de sua morte”, observa Villafa�e.
Al�m de “Os sert�es”, Euclides da Cunha deixou obras importantes, como “Como contrastes e confrontos” (um retrato dos primeiros anos da Rep�blica e o descaso com as quest�es sociais que ainda hoje assolam o pa�s) e o p�stumo “� margem da hist�ria” (o paradoxo entre a exuber�ncia do Brasil amaz�nico e a explora��o do povo).
“Euclides � um personagem extremamente rico e, como todos n�s, muitas vezes contradit�rio. Foi autor de uma obra liter�ria e jornal�stica excepcional e viveu uma vida interessant�ssima, com grandes acertos e vit�rias e tamb�m erros e quedas. Ler sobre ele e sua vida, ademais, � abrir uma grande janela para o Brasil do fim do s�culo 19 e o in�cio do seguinte”, afirma Villafa�e em entrevista ao Pensar. Sem diminuir a import�ncia de Euclides para a hist�ria do Brasil, o autor mostra tamb�m os muitos equ�vocos cometidos pelo escritor. Talvez o maior tenha sido embarcar na histeria coletiva, movida por interesses pol�ticos, de que a revolta de Ant�nio Conselheiro no povoado de Belo Monte, no interior da Bahia, em 1897, conhecida historicamente como Guerra de Canudos, seria tentativa de restaurar a monarquia no pa�s.
A contextualiza��o hist�rica, inclusive, � o maior m�rito da obra de Villafa�e, que tra�a uma biografia com texto fluido e de f�cil assimila��o, sem excesso de academicismo que costuma espantar leitores. Mostra como, oito anos depois do golpe militar que derrubou dom Pedro II, o fantasma da volta da monarquia levou a popula��o brasileira a acreditar que Conselheiro e os sertanejos queriam derrubar a Rep�blica e estariam at� recebendo ajuda externa. Tal como��o, insuflada pelos republicanos, pelas elites e pela imprensa, causou um dos maiores massacres injustificados da hist�ria do Brasil, com o exterm�nio de mais de 20 mil homens, mulheres e crian�as. Os prisioneiros rendidos, por exemplo, foram degolados.
“A despeito do bom cora��o e do sentido de justi�a, al�m da ineg�vel intelig�ncia e da capacidade de buscar informa��o, Euclides embarcou no clima irracional de confronta��o entre 'eles' e 'n�s' que transformou um paup�rrimo arraial no interior do Bahia, fundado por Conselheiro, em amea�a � Rep�blica e ao Brasil.” A desqualifica��o do outro transformou sertanejos em jagun�os (…) inimigos a quem era necess�rio n�o apenas derrotar, mas exterminar”, ressalta Villafa�e.
Euclides escrevia para o jornal O Estado de S.Paulo e alimentava essa vis�o equivocada. S� come�ou a desfazer essa ideia depois de ser enviado como correspondente ao conflito. E em “Os sert�es”, publicado em 1902, cinco anos ap�s o massacre, em seu chamado “livro vingador”, ele reconhece que nada tinha de monarquista a rebeli�o de Canudos. Era uma revolta contra a cobran�a de impostos e a enorme desigualdade latifundi�ria e social do pa�s. Mas se tratava-se de um crime sem criminosos.
Jamais haveria justi�a para punir os exterminadores. Na obra, Euclides chega ase referir aos sertanejos como “sub-ra�a”, uma faceta do racismo determinista vigente na �poca. Diante da f�ria do Ex�rcito contra o povoado, Villafa�e indaga: “A pergunta a fazer, e que n�o est� respondida adequadamente em 'Os sert�es', �: como a polariza��o pol�tica e um clima de histeria e irracionalidade provocada intencionalmente puderam conduzir a um tal massacre, b�rbaro e sem sentido”. � o perigo da “mistifica��o e irracionalidade qu existe nas paix�es de cada momento hist�rico, inclusive deste em que vivemos”.