
E tamb�m da contundente rea��o de Euclides diante da paix�o extraconjugal de sua mulher, Ana, da qual n�o quis se separar, mesmo diante de todas as evid�ncias de que o casamento j� tinha acabado havia anos. “No momento do incidente, por�m, o machismo e o sentido de honra desequilibrado tiveram papel preponderante. O marido tra�do teria mais que o direito, o dever de 'lavar a honra com sangue'”, diz o autor, que tamb�m escreveu “Juca Paranhos, o Bar�o do Rio Branco”, biografia de um dos homens p�blicos mais influentes do Brasil na virada dos s�culos 19 e 20.
"Em v�rios momentos da hist�ria brasileira, a tese da ditadura, supostamente tempor�ria, como 'atalho' ou uma exig�ncia para a preserva��o da democracia, tem sido resgatada"
Seu livro desconstr�i a figura hist�rica de Euclides da Cunha ao mostrar sua face de racismo, misoginia, pl�gio, defensor de interven��o militar e falso pioneirismo na den�ncia do massacre em Belo Monte (Canudos). O que sobra, ent�o, o escritor e o l�der da expedi��o na Amaz�nia? Ou a vida e a obra de Euclides devem ser consideradas dentro daquele contexto hist�rico anacr�nico?
Todos n�s vivemos dentro dos limites impostos pelo tempo e pela sociedade em que nos tocou viver. Naturalmente, contudo, esses limites sempre ser�o el�sticos o suficiente para que haja escolhas individuais e contradi��es. Em sua vida pessoal, Euclides n�o pode, nem de longe, ser considerado racista, pois se autoidentificava com orgulho como mesti�o (de branco e �ndio) e manteve prof�cuas rela��es de afeto e admira��o intelectual com negros como Teodoro Sampaio e Vicente de Souza, por exemplo. De forma contradit�ria, em “Os sert�es” e outros textos promoveu teses, inclusive em muitos aspectos j� ultrapassadas, de um racismo supostamente cient�fico.
Em outros aspectos, ele n�o se diferenciou do pior que havia em seu tempo, como a misoginia, e acabou morrendo em uma suposta tentativa de “defender sua honra” ao tentar matar, � trai��o, o namorado da esposa, Dilermando, e provavelmente a pr�pria Ana, sua mulher. A rela��o entre Ana e Dilermando datava j� de alguns anos, com o conhecimento de Euclides, e a tentativa de assassinar os dois se deu apenas quando ficou claro que o esc�ndalo seria inevit�vel, pois ela o estava deixando definitivamente. Pode-se arguir que foi a rea��o que se esperaria dele naquela �poca. N�o � assim. Para ficar em um exemplo pr�ximo, Ant�nio Conselheiro foi tra�do e abandonado pela mulher, no interior do Cear� e n�o na capital do pa�s, e n�o tentou assassinar ningu�m.
Ou seja, o contexto hist�rico – que eu examino com vagar na biografia – � indispens�vel para situar os personagens, mas, em si, n�o explica seus atos, op��es ou cren�as. Al�m do mais, os biografados s�o pessoas reais, sempre uma soma de qualidades e defeitos. Euclides � um personagem extremamente rico e, como todos n�s, muitas vezes contradit�rio. Foi autor de uma obra liter�ria e jornal�stica excepcional e viveu uma vida interessant�ssima, com grandes acertos e vit�rias e tamb�m erros e quedas. Ler sobre ele e sua vida, ademais, � abrir uma grande janela para o Brasil do fim do s�culo 19 e o in�cio do seguinte.
“Os sert�es” deve ser visto essencialmente como uma obra liter�ria, diante dos in�meros equ�vocos cient�ficos, hist�ricos e biogr�ficos (como a falsa figura messi�nica de Ant�nio Conselheiro constru�da por Euclides)? Apesar desses problemas, voc� a considera uma obra-prima.
Quando de seu lan�amento, em 1902, um dos grandes atrativos da obra foi o que o pr�prio Eu- clides chamou de “cons�rcio da ci�ncia e da arte”. Ou seja, al�m de obra de literatura, o livro serviria de refer�ncia nos diversos campos cient�ficos que abarcava. Logo em seguida, contudo, muito da ci�ncia de “Os sert�es” come�ou a ser posta em quest�o e hoje as explica��es cient�ficas oferecidas pelo livro s�o irremediavelmente datadas e assim devem ser lidas, como seria o caso para praticamente todos os textos cient�ficos de mais de um s�culo.
A sociedade brasileira do in�cio do s�culo 20 era essencialmente racista, rec�m-sa�da de s�culos de escraviza��o justificada por supostas diferen�as raciais. Nesse ponto, Euclides utilizou alguns argumentos e teses que j� eram considerados superados, mesmo em 1902. Do mesmo modo, as interpreta��es dele em distintas �reas, como geologia, geografia, bot�nica, antropologia, sociologia e hist�ria foram sendo superadas, algumas rapidamente. Outras, como a interpreta��o hist�rica sobre a forma��o e o funcionamento de Belo Monte e a figura de Ant�nio Conselheiro, resistiram por muitas d�cadas, mas hoje tamb�m est�o superadas.
Isso, ali�s, � natural. As verdades cient�ficas s�o sempre provis�rias. E, de todo modo, Euclides tem o m�rito de ter influenciado diversas �reas do conhecimento por per�odos de tempo bastante longos em alguns casos. A for�a liter�ria e as qualidades est�ticas do texto, por sua vez, permaneceram, ainda que – como qualquer texto cl�ssico – sejam relidas e reinterpretadas a cada gera��o de leitores. Em todo caso, “Os sert�es” segue e, creio, seguir� no futuro previs�vel, sendo um texto indispens�vel e Euclides um autor incontorn�vel na literatura em l�ngua portuguesa.
“Os sert�es” � realmente um “livro vingador”, segundo o escritor Euclides da Cunha, que redime a falsa impress�o do rep�rter Euclides da Cunha sobre Belo Monte? Afinal, ele acusa um “crime sem criminosos”, porque n�o aponta culpados.
A quest�o do “crime sem criminosos” � mais profunda do que apenas a omiss�o em apontar os criminosos. A ideia do massacre dos sertanejos e da destrui��o de Belo Monte como um crime j� estava bem consolidada quando Euclides publicou “Os sert�es”, cinco anos ap�s o fim da campanha militar. Ele em nada inovou nessa den�ncia. De certo modo, ao contr�rio, a obra contribuiu para a supera��o do mal-estar que prevalecia na sociedade brasileira depois da constata��o de que fora uma mortandade injustificada e de que a ideia de que Belo Monte pudesse amea�ar a Rep�blica tinha sido um del�rio absurdo.
Em “Os Sert�es”, com todo o seu enorme talento liter�rio, Euclides conduz leitores e leitoras a ver a destrui��o de Belo Monte como uma cat�strofe inevit�vel. Com base em um discurso determinista em um tom fortemente cientificista – e assim em tese “neutro” –, ele argumenta que aquelas pessoas estavam isoladas n�o somente no espa�o, mas de certo modo tamb�m no tempo, pois estavam atrasadas para o inevit�vel encontro com a civiliza��o, que levaria ao fim das “sub-ra�as sertanejas do Brasil”. O processo aconteceria naturalmente, mas Belo Monte apareceu como uma aberra��o no meio desse caminho, com os sertanejos galvanizados pela “loucura” de Ant�nio Conselheiro.
Assim, se houve um culpado, este seria Conselheiro, mas, na verdade, nem isso, pois ele fora v�tima da pr�pria loucura. Ainda que o objetivo final fosse incorporar as popula��es dos sert�es na modernidade e n�o matar os sertanejos, as condi��es espec�ficas de Belo Monte teriam levado �quela situa��o extrema: “Sob a press�o de dificuldades exigindo solu��es imediatas e seguras, n�o havia lugar para essas vis�es long�nquas do futuro”, afirmou Euclides no livro. Muito mais do que n�o apontar culpados, o racioc�nio leva � conclus�o de que a matan�a ocorrera por circunst�ncias fora do controle dos perpetradores – pessoas concretas: propagadores do �dio, mandantes e executores.
O cap�tulo de conclus�o do livro, de famosas duas linhas, arremata essa ideia: “� que ainda n�o existe um Maudsley para as loucuras e os crimes das nacionalidades...”. Henry Maudsley trabalhava o conceito da irresponsabilidade penal dos doentes mentais. A destrui��o de Belo Monte e o assassinato de 20 mil sertanejos foram um ato de loucura, portanto inimput�vel, realizado por uma entidade abstrata – a Rep�blica – e n�o por aquelas pessoas concretas, que continuaram suas carreiras pol�ticas e militares, absolvidas inclusive do remorso, pois fora, segundo essa leitura, uma cat�strofe inevit�vel.
Por que a tese defendida por Euclides da Cunha de que a democracia republicana em crise precisa passar por interven��o militar autorit�ria sempre se sustenta, como vemos nas ruas do Brasil de hoje, mesmo com todos os exemplos de fracasso e atrocidades?
Ainda que em certo momento tenha sido fortemente influenciado pelo positivismo e depois chegado a ser um florianista convicto, Euclides n�o chegou a falar claramente da necessidade de uma ditadura militar para instalar ou regenerar a Rep�blica. Ele defendeu, sim, em especial no per�odo em que esteve na ativa no Ex�rcito, a necessidade de um governo forte, autorit�rio e austero para superar as amea�as que ele enxergava contra a Rep�blica.
Ainda que geralmente legalista, ele chegou a participar da conspira��o contra Deodoro, que acabou por renunciar em favor de Floriano Peixoto, cujo governo desp�tico ele apoiou com entusiasmo. Seu florianismo murcharia depois da pris�o do sogro pelo marechal-presidente e o positivismo da juventude tamb�m seria superado. O entusiasmo por solu��es de for�a persistiria um pouco mais. Ele aplaudiu a a��o do Ex�rcito contra Belo Monte, j� durante o governo Prudente de Morais. As cr�ticas � condu��o da campanha e o massacre dos sertanejos s� apareceriam anos depois.
Infelizmente, em v�rios momentos da hist�ria brasileira, a tese da ditadura, supostamente tempor�ria, como “atalho” ou uma exig�ncia para a preserva��o da democracia, tem sido resgatada e atualizada em novas bases, mas sempre ser� uma mistifica��o de bases extremamente fr�geis pela pr�pria contradi��o contida nos termos dessa formula��o. Relembrar o derramamento de sangue in�til e absurdo ocorrido no sert�o da Bahia serve de alerta contra essas mistifica��es criminosas.
A polariza��o pol�tica (republicanos x monarquistas) na primeira d�cada da Rep�blica gerou histeria coletiva e teve como uma das graves consequ�ncias o massacre em Belo Monte (Canudos), considerado erroneamente foco de resist�ncia monarquista. E ainda a amea�a do presidente Floriano Peixoto de prender magistrados do STF. Essa � uma heran�a autorit�ria que ainda reverbera no Brasil que se aproxima de outra polariza��o em 2022?
O autoritarismo e a cria��o de mistifica��es s�o duas quest�es diferentes, mas que se entrela�am e se alimentam uma da outra. As ra�zes do pensamento autorit�rio no Brasil v�m de longe; afinal, a pr�pria monarquia, em que pese a fachada tolerante e civilista, se apoiava na escravid�o e em uma sociedade extremamente hierarquizada, para n�o se buscar essas ra�zes na coloniza��o portuguesa. Os anos iniciais da Rep�blica s�o extremamente conturbados, com guerras civis como a Revolu��o Federalista e massacres da popula��o pobre, como foi o caso de Belo Monte.
Foram tamb�m os anos em que os militares ressurgiram no primeiro plano da pol�tica brasileira, legitimados por uma ideia de miss�o modernizadora, patri�tica e salvacionista. No in�cio da Rep�blica, o fantasma de uma restaura��o monarquista (cujas bases reais eram sumamente fr�geis) foi usado como desculpa para dar legitimidade aos setores militares e civis mais radicais e mais autorit�rios. Essa mistifica��o, como em outros casos, servia para criar um clima de polariza��o pol�tica – eles contra n�s, patriotas e traidores – que justificasse a necessidade, sempre renovada, de medidas excepcionais contra as amea�as verdadeiras ou supostas.
Depois do massacre de Belo Monte, a constata��o de que a absurda tese de que Ant�nio Conselheiro e seus seguidores formassem um reduto monarquista que amea�ava de alguma forma a Rep�blica desfez o espantalho da restaura��o mon�rquica como desculpa para o autoritarismo. De l� para c�, novas mistifica��es t�m sido promovidas para sustentar a suposta necessidade de a��es extralegais. No futuro, talvez, nos daremos conta de que algumas das ilus�es que circulam hoje s�o t�o pat�ticas como a ideia de que desde uma cidadela miser�vel do interior da Bahia partiria o movimento que estabeleceria o 3º Reinado no Brasil.
Seu livro tamb�m desmistifica a narrativa hist�rica de duelo entre Euclides da Cunha e Dilermando de Assis. N�o houve o desafio do escritor ao amante da mulher e, sim, uma tentativa de peg�-lo de surpreso e mat�-lo? Por que teria sido constru�da essa falsa narrativa heroica e rom�ntica?
Euclides sabia da trai��o de Ana desde, pelo menos, julho de 1906, quando nasceu o primeiro filho dela com Dilermando. O casal teve outro filho no ano seguinte, que Euclides tamb�m soube que era de Dilermando, apesar de oficialmente assumir – outra vez – a paternidade da crian�a. Ainda que as consequ�ncias sociais da separa��o fossem muito mais pesadas para ela, Ana queria se separar e Euclides resistia. Somente em agosto de 1909, quando ela decidiu deixar a casa do escritor, onde a vida em comum j� era insuport�vel, ele decide matar Dilermando e, quase certamente, tamb�m Ana. Na �poca, apesar de j� ilegais, os duelos – com regras, padrinhos, etc. – eram socialmente aceit�veis.
Mas, na verdade, seria uma op��o suicida para Euclides, pois Dilermando era campe�o de tiro e certamente melhor espadachim. Assim, ele entrou na casa de Dilermando com a arma oculta, sendo recebido cordialmente, e atirou v�rias vezes antes que o militar pudesse alcan�ar seu rev�lver. Dilermando terminou tornando-se um homicida (duas vezes, depois mataria um filho de Euclides em circunst�ncias compar�veis), mas jamais foi, tecnicamente, um assassino. A canoniza��o laica de Euclides tem muitas raz�es, que examino no livro, mas n�o teria espa�o aqui para detalhar.
A trai��o da esposa e a morte foram progressivamente sendo comparadas ao mart�rio, como na vida dos santos. No momento do incidente, por�m, o machismo e o sentido de honra desequilibrado tiveram o papel preponderante. O marido tra�do teria mais que o direito, o dever de “lavar a honra com sangue”. O delegado que investigou o caso, por exemplo, chegou a dizer que Euclides fora atra�do para uma armadilha e que Dilermando deveria ter fugido pulando o muro dos fundos da pr�pria casa quando da chegada de Euclides (o que teria deixado Ana indefesa na casa).
Por que Euclides tolerou a trai��o de Ana durante tantos anos? Era prefer�vel a vergonha dissimulada do casamento aparente ao golpe na reputa��o de um marido tra�do e de um militar respeitado publicamente?
No inqu�rito policial que se seguiu � morte de Euclides, Ana deu detalhes de sua rela��o com Dilermando para que, segundo suas palavras, “a imprensa e a sociedade n�o o estejam chamando de louco ao doutor Euclides da Cunha, quando ele n�o era mais do que um apaixonado pela sua reputa��o”. Com os elementos dispon�veis, procurei resgatar a hist�ria da rela��o conjugal de Euclides e Ana, marcada desde o in�cio por um grande distanciamento emocional e f�sico e fortes diferen�as de temperamento.
A crise aguda no casamento dos dois durou de fins de 1905 a agosto de1909. Infelizmente, na sociedade brasileira da �poca, o desquite, ainda que poss�vel juridicamente, trazia custos de reputa��o imensos, ainda que muito maior para as mulheres. Como muitas outras pend�ncias de sua vida pessoal, Euclides n�o teve a determina��o para buscar uma solu��o sensata para a situa��o conjugal, que foi se agravando e, afinal, acabou por preferir tornar-se um assassino e um feminicida, ou morrer na tentativa, como foi o caso. Por absurdo que nos pare�a hoje, ele avaliou que esse desenlace, ou mesmo a pr�pria morte, lhe causaria menores danos � reputa��o do que receber a pecha de ter sido conivente com a trai��o da esposa, ainda mais com um homem quase da idade de seus filhos.