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Estado de Minas CONTOS

Novo livro de contos reafirma a pot�ncia terna de Jo�o Carrascoza

Escritor paulista lan�a 'Tramas de meninos', reuni�o de hist�rias sobre inf�ncia e fam�lia narradas com maestria


02/07/2021 04:00 - atualizado 02/07/2021 08:27

(foto: Marcos Vilas Boas/Divulgacao )
(foto: Marcos Vilas Boas/Divulgacao )
Na mitologia grega, as moiras eram tr�s figuras que comandavam o des�gnio de deuses e de mortais. Determinando vida e morte, as filhas da noite produziam no tear o fio da exist�ncia de todos os indiv�duos – Cloto puxava o fio, L�quesis enrolava-o, e �tropos o cortava. Nas m�os dessas fiandeiras cegas moldava-se o destino humano, uma tarefa feminina a revelar a rela��o estreita entre vida, morte e o ato de fiar. Essas entidades inspiraram diversas narrativas ao longo do tempo e foram representadas na literatura l�rica grega e latina.
 

Nos catorze contos de "Tramas de meninos", Jo�o Anzanello Carrascoza ecoa Raduan e Drummond ao prosseguir com projeto liter�rio que une lembran�as de inf�ncia e de fam�lia com delicadeza e precis�o

 
Na prosa brasileira, Jo�o Anzanello Carrascoza apanhou esse novelo e dele fez mote e inspira��o. “Tramas de meninos” traz 14 contos divididos em dois blocos, “Primeiros fios” e “Segundos fios”, reverberando a gram�tica pr�pria do autor em muitos outros de seus escritos – linhas, tramas e costura nos d�o not�cia n�o s� da urdidura do texto, mas tamb�m do aspecto c�clico de vidas sempre na imin�ncia da morte. E elas ser�o muitas, deixando a servi�o da mem�ria a miss�o de presentificar tantas aus�ncias. Ainda que o tema possa convocar um tom �pico, o autor permanece longe de uma dic��o grandiosa e escolhe miudezas para nos guiar at� algumas das situa��es anunciadas.

Uma delas se refere � saudade paterna. E o pai surge como alfaiate no conto “Linho”, materia- lizando nesse of�cio a arte de talhar vestimentas a m�o. Ele ensina ao filho que quanto mais fios por cent�metro quadrado de um tecido melhor seu caimento: “N�o me esque�o desse dia em que meu pai comparou o entrela�ar dos fios do linho � trama do destino, que alinhava as a��es humanas, gerando encontros e desencontros, acontecimentos maravilhosos e abomin�veis. Apreciei a sua met�fora; mas, ao longo da vida, descobri outras, similares, ensejando esse sistema de maranhas que, invisivelmente, nos enreda, nos aproxima de umas possibilidades e nos afasta de outras, derramando a tinta das ocorr�ncias, e nos obrigando a escrever com ela a nossa hist�ria”, sustenta o narrador. S�o m�os masculinas a assumir o trabalho an�logo �quele das moiras, uma pista importante sobre o fazer liter�rio de Carrascoza.

Na l�gica dos afetos A roda da fortuna, para o autor nascido em Cravinhos (SP) em 1962, come�ou a girar h� quase tr�s d�cadas. Carrascoza estreou com “Hotel Solid�o” em 1994 e vem escrevendo para peque- nos, m�dios e grandes. S�o colet�neas de contos, romances e hist�rias infantojuvenis, al�m de trabalhos voltados para a publicidade, outra �rea de atua��o do escritor. N�o � novidade constatar que vem do espa�o familiar e seus contradit�rios sentimentos essa rica produ��o ficcional. Em “Tramas de meninos”, s�o m�es, pais, filhos e toda uma fam�lia estendida a dominar as hist�rias, ambientadas geralmente no universo de uma certa classe m�dia brasileira, lugar da intimidade de solid�es, aus�ncias e amores m�nimos. Sim, � na l�gica dos afetos que estamos ancorados, do cl� que � Eros e tabu, engendrando amores tortos e intensos, prec�rias calmarias, tr�guas e confrontos. 

O denso mergulho nessa mat�ria pulsante deixa clara a filia��o � prosa de Raduan Nassar, com quem o autor troca impress�es sobre a pr�pria obra desde o in�cio da carreira. A escrita l�rica de Carrascoza lembra de imediato o autor de “Lavoura arcaica” (1975), seja no andamento, nas escolhas vocabulares ou na ambienta��o que evoca um clima familiar de sil�ncios e segredos. Na experi�ncia de leitura, h� momentos em que se tem a n�tida sensa��o de estar diante da escrita nassariana: 

“Ele se lembrava de quando brincava com as m�os do pai, o dedo correndo por aqueles sulcos que nelas a enxada tinha lavrado, o pai quem degolava os frangos, quem matava os leit�es, quem fatiava a carne, o pai quem batia a massa quando a m�e queria assar um p�o mais leve, o pai o menos faminto, o que se bastava com quase nada, o canto dos sabi�s � janela e os filhos ao redor com suas d�vidas todas, e o pai � espera de que as desenovelassem, pronto pra devolver a situa��o j� analisada, o pai era do ato, n�o s� da prece, � prece o pai somava os p�s mesmo se descal�os, nada vai pra frente, filho, sem a sua pr�pria provid�ncia, e ele queria mais detalhes.”

Vale lembrar, no entanto, que estamos no territ�rio da narrativa curta, de textos independentes marcados pela brevidade, ainda que guardem semelhan�as entre si. A irregularidade � quase compuls�ria quando pensamos em colet�neas, e nesta n�o � diferente: h� grandes momentos, como em “Quem”, uma hist�ria arquitetada com primor, em um jogo que tudo sugere e nada revela. Ao evocar um acidente, o narrador surge em frases entrecortadas, em discurso que a cada tanto se interrompe, empenhado na tarefa insuport�vel de constatar e dar a not�cia da morte de um ente amado. Situa��o an�loga se d� no conto “Em terra”, sobre uma m�e que perde o filho baleado, amargurada pelo sofrimento diante da morte da crian�a.

No volume, as hist�rias dialogam entre si, por vezes ecoando algo que lemos linhas atr�s. Os contos “Peda�os”, “Linho” e “�ltimas”, que giram em torno da constela��o pai, filho e morte, revelam uma esp�cie de constru��o em dobradi�a, espelhando situa��o anterior e contrapondo outro ponto de vista – h� passagens em que acompa- nhamos o �ngulo de vis�o paterno, em outros � o filho que mergulha nas lembran�as. A composi��o prism�tica tem o m�rito de estabelecer nuances, mas o equil�brio � t�nue, e nessa corda bamba podemos nos machucar, sobretudo quando o sentimento d� lugar a tom quase lacrimejante, como em “Presentes”.

Para seguir nos fios e filia��es, penso em Drummond ao ler a inf�ncia definida como “alegria cercada de dores por todos os lados”, presente em “Linha �nica” (2016), outro livro de contos de Carrascoza. O escritor menos sentimental e mais agridoce oferece uma faceta irresist�vel de sua prosa, tanto na capacidade de sintetizar em poucas palavras emo��es complexas, quanto em ecoar o poeta mineiro, que soube como ningu�m dosar o intenso lirismo de sua poesia com um travo de humor e ironia capazes de eliminar qualquer tra�o de pieguice. Tanto no poeta de Itabira quanto na escrita de Carrascoza comparece a obsess�o pela ideia de fam�lia – para o �ltimo, faz-se poss�vel revisitar essa primeira idade em seu car�ter de contentamento, ainda que ilha rodeada de realidade por todos os lados.

Dialogando com matrizes t�o fortes, certo � que o autor se apresenta movido por um projeto liter�rio pr�prio, fabricado sem pressa ou barulho, unindo palavras � m�o com pontos de agulha. Enredados nas tantas tramas familiares, constatamos, como leitores a acompanhar esses perso- nagens, que a vida � mesmo um fio – enquanto ele n�o se parte, vale avan�ar na busca de algum sentido.

Stefania Chiarelli � pesquisadora e professora de literatura brasileira na Universidade Federal Fluminense (UFF)

TRECHO DO LIVRO

“porque dali em diante a mem�ria iria arder inteiramente, a qualquer hora, at� quando aspirassem o ar fresco da manh�, at� quando estivessem felizes por um instante, enganando sem querer a realidade, n�o, ningu�m mais, entre todos, espalhados pela casa, ningu�m, os ventres pesados de macarronada e pernil, teria paz na vig�lia dos dias, iriam todos desejar visceralmente a noite pra cair logo no sono, s� a� poderiam esquecer o pesadelo que, a partir dali, se iniciaria todas as manh�s, ao abrirem os olhos, aquela not�cia, n�o fossem eles t�o demasiadamente unidos,  deceparia, como um machado, a grossa vontade que possu�am de seguir vivendo”.

“Tramas de meninos”

De Jo�o Anzanello Carrascoza
Alfaguara
120 p�ginas
R$ 32 


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