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Estado de Minas ROMANCE

Livro de marroquino narra a dif�cil vida dos imigrantes em Paris

Escritor Abdellah Ta�a se inspirou na realidade dos que s�o marginalizados na capital francesa para criar os personagens do romance 'Um pa�s para morrer'


09/07/2021 04:00 - atualizado 09/07/2021 15:03

Uma terra tornada col�nia e seus corpos sugados ao servi�o imperial. Heran�a que n�o se apaga, mesmo ap�s a independ�ncia deste agora pa�s. Perversamente, esse povo pretensamente “liberto”, que, imigrante, busca reden��o em solo do velho opressor, segue sofrendo em cenas cotidianas de opress�o. Corpos descart�veis. Vidas que nada valem.

Tamb�m na ex-col�nia, a tirania sobre a vida segue encravada no inconsciente coletivo: reproduz-se em camadas diversas no seio da sociedade, seja no racismo estrutural – que subjuga o outro pela cor – seja em rela��es de g�nero – que imp�em a vontade patriarcal sobre as vidas femininas – ou sobre as vidas queers, que na �ntima express�o de sua identidade transcendem normas bin�rias. � um passado que se lan�a ferozmente sobre o presente, em permanente assombro sobre todo o ser que contra ele se insurge. No fim das contas, estar� toda a luta sempre fadada � espiral da opress�o
 
Abdellah Taïa: a escrita como desafio para superar as consequências do colonialismo francês(foto: Abderrahim)
Abdellah Ta�a: a escrita como desafio para superar as consequ�ncias do colonialismo franc�s (foto: Abderrahim)
 
Zahira, Zannouba, Zineb e Allal s�o as personagens ficcionais de “Um pa�s para morrer” (N�s), do marroquino Abdellah Ta�a, escritor em l�ngua francesa, que tem o segundo livro editado no Brasil (o primeiro, “Aquele que � digno de ser amado”, saiu em 2015, tamb�m pela editora N�s). A ex-col�nia � o Marrocos. O pa�s, a Fran�a. Aborda temas universais, que versam sobre os dramas dos povos de ex-col�nias sugadas em seus recursos naturais e no uso instrumental dos corpos, deles arrancando a humanidade em defesa de seus interesses econ�micos e geopol�ticos.

S�o temas que orbitam todas as hist�rias de imp�rios e ex-col�nias, mas que tamb�m transbordam, contemporaneamente, em guerras e s�tio a pa�ses no xadrez da pol�tica internacional, que for�am os deslocamentos humanos em busca da vida; em guerras h�bridas que refor�am divis�es de na��es e fortalecem a intoler�ncia e o preconceito de g�nero, ra�a, religi�o e de origem

S�o hist�rias furtivas, algumas narradas em primeira pessoa, insidiosas porque sugerem um “maktub” fadado � puni��o de sonhos e de rebeldias em guerra pela realiza��o individual. Uma fatalidade que parece ser invariavelmente cruel, reafirmando que a vida pouco vale e que o ser humano est� presente para cumprir o seu pr�vio e submisso papel anotado em sua certid�o de nascimento, com fortes marcadores de ra�a, g�nero e pa�s de origem. Apesar disso, � uma travessia de grandes momentos, que sugerem a capacidade do ser humano para a empatia e a solidariedade. Assim � Zahira, nascida mulher, marroquina, de fam�lia pobre, que culpa a m�e por ter escanteado em um casebre o “gentil e furioso” pai em sua doen�a – “um le�o de circo que de repente envelheceu”.

Mesmo na idade adulta, Zahira n�o compreende a resposta materna aos anos de submiss�o ao pai. E se agarra � imagem da casa sem pai, em que v� a m�e “ditadora radiante, em sua majestade”. Condena-a pelo ato simb�lico que encerra a domina��o do marido; embora, nesse ato, Zahira tamb�m tenha se libertado fisicamente de uma condi��o partilhada na sociedade, a de “mulheres de v�u, escravas dos seus maridos covardes, mortas-vivas”. 

Ao mesmo tempo em que Zahira se martiriza por tamb�m ter ajudado a tornar o pai invis�vel, carrega o lam�rio contra a m�e vida adulta afora, mesmo quando empurrada para a prostitui��o. Trabalha em Paris, onde invariavelmente enfrenta a rotina de humilha��es e � brutalizada a servi�o de alguns homens. Zahira luta pela vida e pelo ar que respira no violento submundo de Paris. Estar� fadada a ser v�tima de um antigo amor? Trata-se de Allal, marroquino pobre e preto que por sua cor n�o conseguira na juventude casar-se com ela. Ao descobrir que Zahira se prostitui, e que � essa a origem do dinheiro que lhe paga o sal�rio de sua miser�vel exist�ncia, decide ca��-la at� a morte

“Ela deve morrer. � seu destino. � assim que �. In�til resistir. � mais forte do que n�s. Estou no seu sonho, Zahira. N�o h� nada que voc� possa fazer. Eu tomei o controle de tudo em voc�. Voc� me escuta? Estou dentro da sua cabe�a. Dentro da sua noite. Quer voc� queira, quer n�o, a corrida come�ou. N�o posso mais parar. Como tantos outros antes de mim, eu recebi a ordem. Agora, preciso cumpri-la. Estou no seu encal�o. Devo confessar que n�o esperava por isso, de jeito nenhum. Eu n�o sabia que os Mestres, os djins, tamb�m se interessavam pelos homens. S�o eles que me habitam agora. Uma for�a me impele. Eu larguei tudo. Eu ando. Corro. Voo. Em sua dire��o. O maktub vai se realizar, Zahira. O seu maktub.”

Ra�a, imigra��o, identidade e solid�o s�o as tem�ticas que abra�am todas as personagens. A come�ar por Zineb, tia de Zahira, irm� do pai que acredita assassinado pela m�e. A hist�ria dessa mulher retrocede � d�cada de 50, quando o Marrocos, col�nia francesa, est� a servi�o da guerra da Fran�a contra a luta pela independ�ncia das col�nias asi�ticas da Indochina. Arrebanha marroquinos para lutar contra a independ�ncia dos irm�os asi�ticos colonizados pelo imp�rio franc�s.

E toma as mulheres marroquinas para servi�os sexuais aos soldados franceses, que, nas palavras do autor, “n�o gostam das asi�ticas”. O espectro de Zineb perpassa a vida de Zahira; mas de fato ela surge na obra, em narrativa onisciente, no �ltimo cap�tulo, em outro tempo hist�rico, em 1954, em Saigon (atual Ho Chi Minh, no Vietn�). Em di�logo com Gabriel, soldado franc�s, Zineb lhe revela que pretende perseguir o sonho de se tornar atriz na �ndia: tenta convenc�-lo a desertar para lev�-la. Eis o di�logo: 

“– O Marrocos me vendeu � Fran�a, aos franceses.

 – N�o fui eu quem quis virar puta, sabe…

 – Eu suponho… que… ningu�m quer…

 – O qu�? Sup�e o qu�? Termine a frase…

 – Nada… – Voc� acha que eu nasci puta? Que eu sempre vivi em Bousbir?

 – Voc� quer dizer Prosper, imagino.

 – Em Casablanca, dizemos Bousbir. � mais f�cil. 

– Bousbir � uma casa fechada em Casablanca? 

– Mais do que isso. � um bordel a c�u aberto. Todos os condenados do Marrocos acabam l�, homens e mulheres. 

 – E todo mundo se prostitui l�?

 – Todo mundo. Enfim, enquanto voc� ainda � consum�vel.”

Zineb desaparece com o fim do romance. Ter� sido o seu maktub perverso

Outro personagem central da trama, o argelino Aziz – que foi um “garotinho que n�o se sentia um garoto”, mas com as irm�s “se abria, ria, dan�ava, ia ao c�u”. Aziz passa pela cirurgia para se tornar Zannouba, amiga de Zahira e tamb�m prostituta em Paris. O trauma da t�o sonhada e desejada forma f�sica, contudo, n�o lhe sossega a alma. “Mesmo quando fa�o xixi, n�o escuto os barulhinhos delicados que eu esperava. Em vez disso, um jato de �gua forte. Ele sai forte. Forte como antes. N�o parece nem um pouco uma mulher fazendo xixi. N�o. Desespero grande. Vou ao banheiro n�o sei quantas vezes por dia. Tento dar concretude � minha ideia de mulher atrav�s desse ato cotidiano, m�ltiplo. Tento recuperar a mem�ria da minha m�e urinando livremente, sem nenhum constrangimento. Reencontrar aquele som caracter�stico. TSSSSSTSSSSTSSSSS. Imposs�vel! Nunca vou conseguir.” 

Ser� v� a luta? Abdellah Ta�a indica, mas n�o vaticina. Deixa a cada qual, at� onde seja poss�vel, o alcance da caneta de seu pr�prio destino.

Entrevista
Abdellah Ta�a 
Escritor

“O Ocidente n�o � para todos”

Como se inspirou para o romance “Um pa�s para morrer”?
Em primeiro lugar, n�o consigo escrever sobre um lugar que n�o co- nhe�o. Sempre escrevo sobre um lugar que conhe�o, de meu entorno, do mundo das minhas rela��es. N�o posso escrever sobre pura fic��o. Ent�o, em certo sentido, � autobiogr�fico o que fa�o, mas n�o apenas sobre mim, tamb�m retrata as pessoas com quem convivo. Eu me lembro muito bem de quando cheguei em Paris, em 1999, ainda tomando consci�ncia da grande dist�ncia entre o sonho e a realidade, do modo que eu, um imigrante mu�ulmano, entrava para uma “categoria” sobre a qual n�o tinha a menor ideia.

E voc� come�a a interagir com pessoas que de alguma forma se parecem com voc�, mas que estavam vivendo em Paris muito antes de voc�, e percebe o que a experi�ncia da imigra��o fez com elas. O dia em que decidi escrever este romance foi naquele ano, quando vi uma mulher, sentada na escadaria do monumental pr�dio de um banco franc�s – Le Credit Lyonnais – que tinha entre 54 e 55 anos, e estava l�, sozinha, perdida, completamente destru�da pela experi�ncia da imigra��o, do ex�lio, e essa mulher se parecia fisicamente com a minha m�e. Fiquei muito tocado e me disse: “Um dia, se eu for bem-sucedido como escritor, preciso escrever sobre essa mulher, essa experi�ncia do ex�lio e o que Paris e o ex�lio fazem com essas pessoas”. O Ocidente n�o � para todos. O Ocidente pode destruir voc� e transform�-lo na sombra de si mesmo. � um romance extra�do inteiramente da realidade e todas as personagens s�o pessoas que se fizeram ficcionais

H� quest�es universais abordadas no romance. Imigra��o, racismo, quest�es identit�rias de g�nero, al�m de uma certa cren�a na fatalidade do destino. As personagens lutam contra a opress�o, mas a narrativa, embora fique em aberta, sugere um “maktub” infeliz. Qual a chance de as suas personagens alcan�arem a felicidade?
O romance come�a com todas as personagens conscientes de que Paris e o Ocidente est�o ali para explor�-las, que a Fran�a n�o dar� a chance que merecem. Elas sabem que, sob essa perspectiva, s�o “perdedoras”. Mas eu, como escritor, as trato como os grandes hero�nas, ainda capazes de sonhar e de construir uma outra forma de viver, que � muito solid�ria entre si, uma outra forma de sonhar, de fazer sexo, de amar. S�o pessoas que est�o desapontadas, mas n�o desistem do ideal da vida.

Elas n�o ser�o bem-sucedidas no sistema capitalista ocidental, mas no sistema de valores da vida s�o grandes seres humanos. Zahira se sacrifica para dar sexo gratuito aos imigrantes, que s�o tratados de forma ainda mais cruel do que ela o �. E Zahira est� l� para Aziz, que se torna Zannouba, e para o rapaz iraniano, que est� no ex�lio. Elas est�o conscientes das dificuldades e continuam capazes de sonhar e compartilhar momentos de felicidade e de amizade. 

A posse pelo uso da for�a sobre o corpo e o desejo do outro � um tema recorrente no romance e tamb�m relacionado ao colonialismo. A hist�ria de Zineb, levada ao Vietn� para fazer sexo com as tropas franceses, toca neste ponto: marroquinos eram recrutados para lutar e morrer na guerra de independ�ncia da Indochina, que se encerra em 1954. A sua fam�lia, no passado, passou por essa experi�ncia?
Sim. O primeiro marido da minha m�e foi mandado pelos franceses ao Vietn� lutar pela Fran�a na guerra de independ�ncia das col�nias. Ele foi morto e enterrado l�. � �poca, a Fran�a indenizou a fam�lia do marido da minha m�e, mas esta rejeitou a minha m�e, que era a vi�va e tamb�m tinha uma filha dele. Depois de receber a indeniza��o, a fam�lia do falecido colocou as duas na rua. As consequ�ncias do colonialismo franc�s est�o, portanto, na minha fam�lia. E a minha m�e sempre foi uma pessoa muito forte, dura, muito focada em   construir uma fam�lia, ter uma casa, em fazer os filhos estudarem. Ela teve nove filhos. Quando cresci e amadureci, compreendi que ela n�o teve outra op��o. 

O compositor brasileiro Caetano Veloso afirma em uma de suas letras que “cada um sabe a dor e a del�cia de ser o que �”. Poderia nos contar um pouco de como o senhor se constitui em meio aos conflitos de valores entre ser uma pessoa gay e mu�ulmana, ao mesmo tempo em que um escritor de l�ngua francesa, que vive em Paris, pa�s que colonizou e explorou o Marrocos?
A minha fam�lia tem origem muito pobre, vem do interior do Marrocos. Meus pais fizeram muitos e muitos anos de sacrif�cios para que eu pudesse estudar e me desenvolver. � verdade que n�o me protegeram enquanto uma pessoa gay, mas naquela �poca, mesmo na Fran�a, n�o existia a cultura para educar as pessoas quanto � diversidade. Mas agora entendo que h� certas quest�es de sobreviv�ncia que os assoberbava e talvez, eles n�o tivessem tempo para os pro- blemas de uma pessoa como eu. E, como uma pessoa gay, a minha inspira��o para a luta vem de minha m�e, que me transmitiu o sentido de sua for�a. Era ela quem negociava com empreiteiros que constru�am a nossa casa, com a administra��o local, fez enormes sacrif�cios para que eu pudesse ir � universidade.

A l�ngua francesa, no Marrocos, est� acess�vel apenas �s elites econ�micas e intelectuais, que a usam para se distinguir do resto de n�s. At� hoje, quando voc� sabe apenas o �rabe no Marrocos, n�o � muito considerado. H� uma discrimina��o social clara em consequ�ncia dessa heran�a do colonialismo franc�s. Mas desde cedo compreendi que precisava aprender a l�ngua francesa, o que fiz na Universidade de Rabat, numa tentativa de alguma forma superar esse bloqueio social, quase tirar da Fran�a um pouco do que nos foi retirado enquanto col�nia. Quando descobri que desejava ser escritor, entendi que deveria escrever sobre todas as viv�ncias que experimentei.

O que vivenciei com a minha m�e, as minhas irm�s, a vizinhan�a, como imigrante em Paris, sobre isso � que deveria escrever. � verdade que n�o me compreenderam como uma pessoa gay, seja porque est�o em um contexto social, religioso que torna isso mais dif�cil. Mas essas pessoas s�o parte de mim, s�o tamb�m um pouco de mim, do que sou. Ent�o, as trouxe para a literatura, em todas as dimens�es, pol�tica, social, existencial, as viv�ncias que partilhei com elas e que est�o em mim.

"Um pa�s para morrer"

De Abdellah Ta�a
Tradu��o de Rachel Camargo
Editora N�s
160 p�ginas
R$ 52


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