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Estado de Minas MUITA HIST�RIA

Livro conta a trajet�ria dos mineiros do Grupo Galp�o

Em artigo, o ator Eduardo Moreira conta como organizou 'Tempos de viver e de contar', com a trajet�ria da companhia mineira de teatro que conquistou o Brasil


09/07/2021 04:00 - atualizado 09/07/2021 09:42

Criação coletiva: livro documenta as quase quatro décadas de trajetória do Grupo Galpão(foto: Mateus Lustosa/Divulgacao)
Cria��o coletiva: livro documenta as quase quatro d�cadas de trajet�ria do Grupo Galp�o (foto: Mateus Lustosa/Divulgacao)
Lembro-me de um coment�rio da Fernanda Montenegro a respeito da edi��o de um livro que estava para ser lan�ado sobre a sua brilhante e querida carreira. Ela dizia que um livro, apesar de seu prop�sito nobre, � algo de in�til, incapaz de reter o instante, o momento fugidio e n�o perene do teatro. 

 

O argumento me parece inquestion�vel, uma vez que traduz com perfei��o o universo incerto e que sempre nos escapa dessa arte t�o ef�mera que � o teatro. Um instante que s� acontece no presente do aqui e do agora. Quem viveu, viveu, quem n�o viveu, n�o viver�. Essa � a ess�ncia de uma apresenta��o de teatro. Cada espet�culo � sempre �nico e nesse frescor fr�gil e misterioso esconde-se o tesouro dessa aventura profunda que � ato teatral.

 

(foto: Clarissa Lambert/Divulgação)
(foto: Clarissa Lambert/Divulga��o)

 

N�o obstante, estamos aqui lan�ando um livro que tenta dar conta, traduzir e interpretar a trajet�ria de quase 40 anos do Galp�o. E fica a pergunta: qual o sentido do registro de um livro?.

 

O primeiro argumento � pol�tico e me parece fundamental. Num momento em que vivemos em nosso pa�s uma esp�cie de encruzilhada civilizat�ria, em que a cultura brasileira vem sendo sistematicamente bombardeada e sufocada por um projeto pol�tico que visa � destrui��o de todo e qualquer pensamento livre e cr�tico, � essencial que o registro e a reflex�o sobre a trajet�ria art�stica do Galp�o sejam muito bem celebrados.   

 

(foto: Clarissa Lambert/Divulgação)
(foto: Clarissa Lambert/Divulga��o)

 

� curioso pensar que o Galp�o tenha sua origem exatamente nos estertores da ditadura militar. Um per�odo em que a desastrosa a��o dos governos ditatoriais (que tristemente nos impuseram a m�o pesada do autoritarismo ao longo de 21 anos) come�ava a mostrar sinais de esgotamento e decad�ncia, dando um respiro para que a sociedade civil come�asse um movimento de rea��o, clamando por reivindica��es como anistia e a volta dos exilados pol�ticos, o fim da censura e as elei��es diretas. 

 

Os primeiros nove anos (1982-1991), que s�o tratados pelo primeiro cap�tulo do livro com o t�tulo de “Anos heroicos”, mostram esse per�odo de �rdua sobreviv�ncia. A luta de uma gera��o que encontra no teatro uma v�lvula de escape para reivindicar e respirar liberdade, fantasia e imagina��o. Reunidos no Festival de Inverno da UFMG, um dos maiores basti�es de resist�ncia em Minas contra a opress�o do regime, o grupo de atores se aglutina e come�a a falar uma linguagem teatral comum conduzidos pelas m�os dos diretores da companhia alem� Teatro Livre, da cidade de Munique. 

 

(foto: Bianca Aun/Divulgação)
(foto: Bianca Aun/Divulga��o)

 

Estavam lan�adas ali as bases de um trabalho que faria da rua seu palco e lugar de maior destaque. At� hoje, a primeira ideia que vem � cabe�a das pessoas quando se fala no nome do Galp�o � a linguagem da rua e seu teatro popular dirigido sempre para seu p�blico �vido e heterog�neo. E foi ali, no in�cio dos anos 80, que aqueles atores, imbu�dos por um desejo incontrol�vel de viver de teatro, partem para a vida mambembe, assumindo plenamente o sentido de risco e rito inerentes � atividade do teatro. Se n�o existia a possibilidade de ocuparmos uma sala de espet�culos, a rua passaria a ser o nosso palco. 

 

Encontro com linguagens � curioso pensar como, desde esses prim�rdios, o Galp�o j� tinha enraizado os princ�pios fundamentais que marcariam as bases de sua estrutura e de seu impulso art�stico: a busca por um teatro constantemente experimental que nos colocasse em risco e longe das certezas; a trilha do encontro com linguagens que nos abrissem novos desafios e perspectivas de alargar nossos limites, sempre nos colocando no lugar de aprendizes; a profissionaliza��o que nos permitisse viver e praticar cotidianamente o of�cio do teatro e o encontro quase despudorado com o p�blico, praticando um teatro que se propunha a ocupar todos os espa�os dispon�veis. Um teatro que tinha e tem como premissa essencial o enraizamento na comunidade.

 

(foto: Clarissa Lambert/Divulgação)
(foto: Clarissa Lambert/Divulga��o)

 

Passado esse primeiro momento em que as fun��es e a organiza��o do trabalho art�stico e de produ��o do grupo ainda s�o muito indefinidos, o Galp�o pouco a pouco vai ganhando o contorno de um grupo de atores sem um diretor definido. A partir das parcerias com diretores como Paulinho Polika e, especialmente Eid Ribeiro, essa tend�ncia se refor�a e, a partir do terceiro cap�tulo – “A explos�o barroca do teatro” –, que contempla o encontro do grupo com o diretor Gabriel Villela, o livro vai esmiu�ando os diferentes encontros do grupo com diretores, cen�grafos, figurinistas, dramaturgos, iluminadores, atores, cr�ticos e t�cnicos que foram fundamentais em nossa forma��o e que moldaram, com suas diferentes vis�es e maneiras de encarar o teatro, a linguagem do Galp�o. 

 

Sem qualquer planejamento pr�vio, o grupo acaba transformando-se num coletivo de atores sem um diretor fixo e isso vai acabar tornando-se determinante na linguagem um tanto h�brida e heterog�nea do teatro do Galp�o. Um grupo que, ainda que mantendo uma acentuada caracter�stica de teatro popular e de rua, � capaz de passear por diferentes estilos e formas de pensar e de fazer o teatro. 

 

(foto: Grupo Galpão/Divulgação)
(foto: Grupo Galp�o/Divulga��o)

 

S�o essas diferentes formas e estilos que as quase 228 fotografias expostas no livro retratam com bastante fidelidade. L� est�o os esquetes de circo, a Commedia dell’Arte, a bufonaria clownesca, a com�dia cl�ssica, Shakespeare, o teatro popular brasileiro, o circo-teatro, a trag�dia expressionista, o teatro musical, as pe�as naturalistas, o teatro �pico de Brecht, o agit-prop, o realismo de Tch�khov, e Stanislavski, o contempor�neo perform�tico e anti-interpreta��o, em imagens que marcaram a vida e as retinas de milhares de espectadores de teatro ao longo de quase quatro d�cadas de hist�ria.

 

A hist�ria em 16 atos


O livro “Grupo Galp�o – Tempos de viver e de contar” abre com um texto de car�ter hist�rico, escrito por mim, que passeia cronologicamente pelas 26 montagens feitas pelo Galp�o entre 1982 e 2018, intitulado “A utopia da poesia no mundo”. Na sequ�ncia, o pesquisador Valmir Santos lan�a um olhar cr�tico sobre essa mesma trajet�ria em seu texto, que ganhou o t�tulo de “A convic��o art�stica da Rua Pitangui”. 

 

(foto: Grupo Galpão/Divulgação)
(foto: Grupo Galp�o/Divulga��o)

 

Da� o livro segue dividido em 16 cap�tulos (“Uma hist�ria em 16 atos”), que mesclam trechos de cr�ticas e mat�rias jornal�sticas com um extenso material fotogr�fico. S�o imagens que revelam as muta��es art�sticas vividas pelo coletivo ao longo de tantos encontros e trocas. Al�m da ampla cobertura dos espet�culos que comp�em o curr�culo do Galp�o, apresentado de forma cronol�gica, o volume conta com mais tr�s adendos que retratam as duas temporadas do espet�culo “Romeu e Julieta”, dirigido por Gabriel Villela no Globe Theatre, em Londres, as filmagens do document�rio “Moscou”, dirigido por Eduardo Coutinho e Enrique Diaz, e a experi�ncia art�stica e pedag�gica do Galp�o Cine Horto. O extenso material fecha com a inclus�o das fichas t�cnicas dos espet�culos e uma vers�o em ingl�s do meu texto e do de Walmir.

 

A divis�o em 16 atos me pareceu, al�m de did�tica, bastante relevante para mostrar ao p�blico leitor como a pr�tica das montagens e cria��es de espet�culos foram determinantes na constru��o desse barro de que � feito o Galp�o. Depois dos chamados “anos heroicos” em que o grupo forma e consolida uma linguagem e uma estrutura m�nima de trabalho, o segundo cap�tulo relata a guinada em busca da realidade brasileira e nossas origens, marcadas pela parceria com o diretor Eid Ribeiro, que redundou em espet�culos fundamentais como “Corra enquanto � tempo”, com dramaturgia do pr�prio Eid, e a montagem da pe�a “�lbum de fam�lia”, de Nelson Rodrigues.

 

(foto: Adalberto Lima/Divulgação)
(foto: Adalberto Lima/Divulga��o)

 

Na sequ�ncia, v�m os trabalhos com Gabriel Villela, que projetaram o teatro do Galp�o no Brasil e no exterior, com encena��es absolutamente marcantes de “Romeu e Julieta”, de Shakespeare, e da Paix�o de Cristo em “A rua da amargura”. O t�tulo do cap�tulo faz refer�ncia � irresist�vel “m�quina de ver” do teatro essencialmente barroco e popular de Gabriel e seu encontro com o Galp�o. Esse mesmo encontro ganha ainda outro cap�tulo posterior, dedicado � nossa leitura da pungente e delirante dramaturgia de Pirandello, na montagem de “Os gigantes da montanha”.

 

Colabora��es externas Os atos essenciais da saga do Galp�o seguem com encontros tamb�m marcantes com Cac� Carvalho na cria��o do espet�culo “Partido”, uma adapta��o do romance “O visconde partido ao meio”, de Italo Calvino; os dois encontros com nosso querido Paulo Jos�, que redundaram nos grandes sucessos que foram “O inspetor geral”, de G�gol, e “Um homem � um homem”, de Brecht. Da�, cronologicamente, a saga segue com a cria��o de “Pequenos milagres”, na parceria com Paulo de Moraes; a viagem ao universo da obra de Tch�khov em “Tio V�nia” e “Eclipse”, que nos deram o privil�gio de trabalhar com Yara de Novaes e Jurij Alschitz. O ciclo com colabora��es externas se completa com os espet�culos “N�s” e “Outros”, trabalhos de dramaturgia pr�pria e que, pelas m�os de Marcio Abreu, nos possibilitaram um mergulho na contemporaneidade da performance.

 

(foto: Gilson Ferreira/Divulgação)
(foto: Gilson Ferreira/Divulga��o)

 

Tamb�m s�o contempladas em cap�tulos distintos as experi�ncias de dire��es internas, em que atores do pr�prio grupo dirigem o Galp�o, em processos que, sem sombra de d�vidas, revelaram-se extremamente vivos e revigorantes. S�o cap�tulos dedicados a “Um Moli�re imagin�rio” (1997, com dire��o minha), “Um trem chamado desejo” (2000), dire��o de Chico Pel�cio, “Till, a saga de um her�i torto” (2011), dire��o de J�lio Maciel, e “De tempo somos” (2014), dire��o de Lydia Del Picchia e Simone Ordones. Todos foram espet�culos de grande sucesso que retrataram a veia popular do teatro do grupo, com utiliza��o da m�sica ao vivo, tocada e cantada pelos atores em cena, outra caracter�stica not�vel da nossa linguagem teatral. 

 

Al�m da g�nese e da cria��o dos espet�culos, “Grupo Galp�o: tempos de viver e de contar” traz tamb�m as diversas experimenta��es de workshops, oficinas, interc�mbios, improvisos, performances e encontros m�ltiplos promovidos pelo grupo e que redundaram num extenso material de teatro que n�o se converteu em espet�culo e que nunca foi mostrado ao p�blico. O conte�do do livro n�o chega aos dias atuais. As atividades do per�odo da pandemia (que, por sinal, n�o t�m sido poucas!) ficaram de fora. Era preciso dar um ponto final. Ponto final que coincidiu com a interrup��o do espet�culo “Quer ver escuta”, dirigido por Marcelo Castro e Vin�cius de Souza. A estreia estava prevista para 3 de abril de 2020, no Festival de Teatro de Curitiba. Nosso �ltimo ensaio presencial aconteceu na sede do Galp�o, em 17 de mar�o de 2020. 

 

(foto: Grupo Galpão/Divulgação)
(foto: Grupo Galp�o/Divulga��o)

 

Para que tudo n�o termine de forma melanc�lica e derrotista, � bom lembrar que o patroc�nio e a chancela do Sesc SP, que vem prestando um inestim�vel servi�o � cultura do pa�s, possibilitou a realiza��o deste livro, que � o documento mais completo e abrangente sobre a hist�ria do Galp�o, um coletivo art�stico prestes a completar 40 anos em 2022. 

 

E assim, last but not least, voltemos ao tema do come�o deste texto. Ainda que o tempo do teatro seja ef�mero e fugidio, a resposta do sentido deste livro est� no pr�prio tempo da hist�ria. Quando, daqui a 40 anos, as novas gera��es folhearem estas p�ginas, ter�o a certeza de que o teatro � poss�vel e absolutamente necess�rio. Ter�o tamb�m a exata medida do seu significado para uma comunidade, especialmente na maneira em que ele constr�i e solidifica la�os de afeto e de identidade

 

(foto: Grupo Galpão/Divulgação)
(foto: Grupo Galp�o/Divulga��o)

 

Certamente que n�o existem caminhos estabelecidos, mas a simples experi�ncia do Galp�o n�o deixa de ser um facho de luz que indica perspectivas e possibilidades. Nesse sentido, a longevidade e o reconhecimento do trabalho do grupo simbolizam a viabilidade do teatro como um lugar da utopia nas nossas vidas. Do poder da imagina��o e da reinven��o do mundo como algo que se faz fundamental no horizonte dos homens em todo e qualquer per�odo da hist�ria. Este livro � o testemunho de um ato de f� de que o teatro e seu poder de criatividade sobreviver�o e manter�o sua chama acima de totalitarismos, viol�ncia, intoler�ncias, barb�rie e pandemias. Fica aqui uma chama.


* Ator, diretor art�stico e um dos fundadores do Grupo Galp�o

 

(foto: Grupo Galpão/Divulgação)
(foto: Grupo Galp�o/Divulga��o)

Da tens�o russa � retomada da parceria com Gabriel Villela

“Em julho de 2013, enquanto ‘Tio V�nia’ estava se apresentando em Roma, o elenco de ‘Eclipse’ viajou para Berlim para fazer um trabalho no est�dio de Jurij Alschitz, que tamb�m contou com a diretora lituana Olga Lapina como assistente de dire��o. O foco do diretor russo estava mais no percurso que na chegada. Mais que um espet�culo a ser montado, existia um caminho pedag�gico a ser desenvolvido e exercitado. Depois da leitura de mais de 150 contos do autor russo e uma quantidade grande de improvisos e propostas de cenas elaboradas pelos atores, o roteiro n�o se concretizava e o diretor insistia na tecla do treinamento.

 

J� no Brasil para os acertos finais da montagem, os ensaios transcorreram com uma tens�o entre o grupo de atores, que buscavam uma dramaturgia, e o diretor, que acreditava que o mais importante era “aprimorar uma �tica da pr�tica teatral” a partir de um treinamento, e que a forma de um espet�culo era algo a ser encontrado com certa facilidade, portanto, deixado para a parte final do processo.

 

(foto: Grupo Galpão/Divulgação)
(foto: Grupo Galp�o/Divulga��o)

 

O roteiro foi finalmente amarrado com base na ideia de um grupo de pessoas enclausuradas numa sala num dia em que ocorre um eclipse solar. Confinados, os personagens contam hist�rias e situa��es retiradas de alguns contos de Tch�khov, como ‘A groselheira’, ‘O duelo’, ‘A descoberta’ e o mon�logo de Nina na pe�a ‘A gaivota’. O espet�culo traz em sua est�tica a limpeza e as formas geom�tricas do futurismo russo, inspirado sobretudo na obra de Malevich. O cen�rio era composto apenas por uma enorme parede com uma porta onde se via o nome Checkov grafado.

Os objetos de cena eram cadeiras simples e geom�tricas que eram manipuladas pelos atores ao longo do espet�culo. Nesse sentido, ‘Eclipse’ aposta no teatro sem qualquer resqu�cio de representa��o. Os atores contavam hist�rias como atores e distantes da ideia de personagem. A est�tica do espet�culo se apresentava sem qualquer adorno. As linhas, os quadrados, os tri�ngulos e os c�rculos nos remetiam sempre a uma abstra��o que rejeitava qualquer possibilidade de imita��o da natureza.

 

A proposta inicial de que as duas montagens pudessem promover um interc�mbio entre as distintas partes do grupo dividido acabou n�o se concretizando. Na constru��o de ‘Tio V�nia’, a dire��o de Yara sentiu a necessidade premente de um processo de concentra��o e recolhimento que tendeu mais para um olhar para dentro do que para uma demonstra��o de processo. J� a constru��o de ‘Eclipse’ aconteceu num momento em que o outro elenco estava viajando, cumprindo turn�s em outras cidades. A duras penas, alguns atores do n�cleo de ‘Tio V�nia’ ainda conseguiram acompanhar os exerc�cios e jogos propostos pela pedagogia de Jurij.

 

(foto: Pablo Pinheiro/Divulgação)
(foto: Pablo Pinheiro/Divulga��o)

 

Novo espet�culo de rua Depois de ‘Viagem a Tch�khov’, o mergulho no teatro realista e a busca de uma limpeza de formas e meios, numa interpreta��o mais contida e minimalista, era chegada a hora de apontar a b�ssola para outra dire��o. Para isso, a primeira decis�o foi montar um novo espet�culo de rua. Algo que nos aproximasse mais uma vez da pujan�a de uma representa��o transbordante, voltada para fora. Algo aleg�rico, carnavalesco, impuro, miscigenado e profundamente brasileiro. As coordenadas nos conduziam para uma nova parceria com Gabriel Villela.

 

O reencontro, depois de mais de vinte anos, precisava buscar novas motiva��es, outros desafios e esfinges teatrais. Depois de pensar em ‘Hamlet’ e ‘Doutor Fausto’, Gabriel acabou nos propondo o encontro com a obra de Pirandello em sua �ltima pe�a, a inacabada ‘Os gigantes da montanha’. Na verdade, Pirandello sempre esteve na nossa mira. Quando optamos por Tch�khov, passamos antes por algumas de suas pe�as, especialmente ‘Vestir os nus’, ‘Esta noite se improvisa’ e ‘Seis personagens � procura de um autor’. Sua subvers�o das formas teatrais, sua s�ntese entre popular e erudito, seu permanente questionamento sobre o lugar poss�vel do teatro e sua exist�ncia na sociedade foram e s�o elementos determinantes para o nosso interesse em sua obra.

 

O risco mais instigante foi traduzir a obra mais filos�fica e complexa de Pirandello para o p�blico da rua. Ao mesmo tempo, o resgate da parceria com Gabriel – com quem hav�amos criado os dois maiores sucessos da carreira do grupo, com um material t�o distinto, estranho e provocador – nos pareceu um desafio bem importante. As primeiras leituras, no entanto, revelaram-se um tanto frustrantes para a maioria. Quase todos consideraram imposs�vel levar uma dramaturgia t�o complexa como a dos ‘Gigantes’ para o ambiente disperso e para o p�blico da rua. O texto d� muitas voltas, tem muitas camadas narrativas e vem carregado de uma atmosfera surrealista que assustava todos. Como traduzir esse complexo universo para o homem da rua? Como deixar claro um enredo t�o povoado de digress�es e filosofia para pessoas que talvez nunca tivessem entrado num teatro e n�o tivessem a menor intimidade com as conven��es da arte teatral, elementos que est�o no centro da dramaturgia de Pirandello? 

Viagem lis�rgica


Para come�ar, precis�vamos tornar o percurso do texto claro para n�s mesmos. A primeira impress�o que ficava era de uma viagem lis�rgica empreendida pelo autor na constru��o da f�bula, em que o mundo do teatro (representado pela companhia da condessa Ilse) se encontra com o mundo da magia e da imagina��o (a vila governada pelo mago Cotrone). O enigma de quem seriam esses gigantes, um povo empreendedor que acaba por destruir a arte, era outra charada a ser decifrada. Outro elemento fascinante e, ao mesmo tempo, intrigante da pe�a � seu final em aberto, uma vez que Pirandello, depois de anos escrevendo e reescrevendo a pe�a, n�o conseguiu termin�-la, tendo apenas ditado um final para seu filho Stefano no leito de morte. 

 

Como primeiro passo, passamos uma semana lendo e tentando decifrar toda a simbologia do texto. Quem nos conduziu nessa fa�anha foi Francesca Della Monica, preparadora vocal, maestrina e fil�sofa que nos acompanhou durante toda a montagem. Seu vigoroso trabalho, em que se busca um treinamento para a espacializa��o tridimensional da voz no espa�o, foi de grande import�ncia na trajet�ria do Galp�o. Paralelamente aos estudos da pe�a, Gabriel – acompanhado de Francesca, Babaya e Ernani Maletta – selecionou um repert�rio de m�sicas italianas que fizeram a amarra��o da dramaturgia do espet�culo. A ideia era eleger alguns hits bem caricatos da m�sica popular italiana, os grandes sucessos da �poca do festival de San Remo, como ‘Il mondo’ e ‘Io che amo solo te’, como uma ponte entre Pirandello e o espectador da rua.

 

(foto: Grupo Galpão/Divulgação)
(foto: Grupo Galp�o/Divulga��o)

 

Os ensaios aconteceram no espa�o do Galp�o, ocupado por v�rias mesas coloniais enormes constru�das na cidade de Passos, no interior de Minas, com madeira de demoli��o. Em meio a uma verdadeira instala��o cenogr�fica, com panos coloridos e figurinos vistosos, o grupo realizava leituras de mesa buscando encontrar a embocadura de cada fala para cada personagem. Num dado momento do processo, cada ator desenvolveu uma oficina de apresenta��o de seu personagem, que deveria conter um mon�logo, uma m�sica de repert�rio j� selecionada e uma proposta de utiliza��o de tr�s dispositivos c�nicos distintos (ita- liano, elisabetano e de arena) criados pela disposi��o das mesas no espa�o c�nico. Durante o processo de cria��o, Gabriel foi compondo com os atores e Jos� Rosa, seu assistente, os figurinos dos personagens e a disposi��o cenogr�fica das mesas no espa�o. Para a cria��o da ilumina��o, Chico Pel�cio assumiu a fun��o com Wladimir Medeiros.

 

Com a gradativa constru��o das cenas, a dramaturgia tamb�m foi sendo adaptada. Foi preciso em alguns momentos reiterar o fio da meada. Para isso, narrativas explicativas foram introduzidas e uma das quest�es fundamentais a serem resolvidas foi a de traduzir cenicamente o final da pe�a, n�o escrito pelo autor. Depois de uma s�rie de tentativas, Gabriel optou pela utiliza��o de uma esp�cie de “gromel�”, em que os personagens falavam uma l�ngua inventada. Os atores realizaram, ent�o, mais uma oficina, em que foi criado um “gromel�” inspirado numa pros�dia grega. 

 

A estreia de ‘Os gigantes da montanha’, em Belo Horizonte, foi um verdadeiro fen�meno na carreira do grupo e um marco cultural na cidade. Em seis apresenta��es, distribu�das em dois fins de semana, na Pra�a do Papa e no Parque Ecol�gico da Pampulha, o espet�culo atingiu um p�blico de aproximadamente 40 mil espectadores, com multid�es espremidas em absoluto sil�ncio. S� na �ltima apresenta��o, realizada num domingo, na Pampulha, foram registrados, nas catracas de entrada do parque, mais de 11 mil espectadores. Seguindo a diretriz de sempre levar o teatro para regi�es que estivessem fora do circuito cultural, o Galp�o foi com ‘Os gigantes’ a cidades do Vale do Jequi- tinhonha, em Minas, e ao Vale do Rio Tocantins, nos estados de Tocantins, Maranh�o e Par�. O encontro com um p�blico que, em sua grande maioria, nunca tinha tido nenhum contato com o teatro comprovou a extraordin�ria magia do texto de Pirandello.”

 

Trecho do livro “Grupo Galp�o: tempos de viver e de contar”

 

“Grupo Galp�o: tempos de viver e de contar”

 

Organiza��o de Eduardo Moreira

Edi��es Sesc SP

351 p�ginas

R$ 88

Lan�amento quinta-feira (15/7), �s 19h, no YouTube do Sesc Pinheiros, com participa��o de Eduardo Moreira e In�s Peixoto, atriz do grupo


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