
Apple, Amazon, Alphabet (dona da Google), Microsoft e Facebook, big techs norte-americanas, concentram poderio econ�mico que superam n�o apenas o Produto Interno Bruto (PIB) da maioria dos pa�ses. T�m mais for�a de mercado do que as bancas do capital financeiro internacional. E, ainda mais grave, guardam a reserva do controle dos fluxos de informa��o planet�rios, inalcan��veis �s restri��es geogr�ficas e jur�dicas das legisla��es e regula��es nacionais, incapazes de se contrapor a tamanho imp�rio. Para al�m da submiss�o dos estados nacionais, as democracias est�o sob ataque com o patamar da concentra��o e monop�lio de poder alcan�ado pelas corpora��es digitais que mudaram a face do capitalismo.
A reflex�o � de Eug�nio Bucci, professor da Escola de Comunica��es e Artes da Universidade de S�o Paulo e te�rico da comunica��o, em sua mais recente obra, “A superind�stria do imagin�rio – Como o capital transformou o olhar em trabalho e se apropriou de tudo que � vis�vel” (editora Aut�ntica). O livro integra a cole��o Ensaios, coordenada por Ricardo Musse, professor de Sociologia da USP, focada em obras redigidas por especialistas para o p�blico geral e ser� lan�ado virtualmente na pr�xima ter�a-feira, 6 de agosto, no projeto “Sempre um Papo”.
Neste s�culo 21, o capital aprendeu a monetizar a chamada “aten��o”. Deixou de lado os objetos f�sicos e virou narrador, contador de hist�rias, produtor de significa��es, fabricando discursos, que por sua vez, passaram a ter valor de troca no contexto das democracias digitais, assinala Bucci. E o faz a partir das hist�rias de vida, pensamentos, valores que cada um partilha e entrega gratuitamente � superind�stria, que assim constr�i incessantes novos sentidos: dos signos, da imagem e dos discursos visuais, colocando-os em circula��o como mercadoria – fabricando os valores das grifes e das marcas, bem como as reputa��es dos pol�ticos e das empresas. Tal � a ess�ncia da “superind�stria do imagin�rio”, que hoje, na avalia��o de Bucci, mant�m as democracias enclausuradas, � semelhan�a de um estado de s�tio. Se as democracias mais est�veis e fortes n�o reagirem para regulamentar essa atividade, os estados nacionais correm o risco de se tornar “despachantes da superind�stria’”, afirma Bucci.
O professor dedica-se a demonstrar o porte descomunal dessas megaplataformas, explorando o caminho trilhado para o monop�lio da economia da “aten��o”. A come�ar pela captura de dados pessoais, o extrativismo digital virtual ou remoto, o que lhes possibilitou acumular um profundo conhecimento psicossocial de cada indiv�duo, a partir do qual mercadejam o foco de interesse e a curiosidade dos consumidores, ao mesmo tempo, e sobretudo, em que fabricam valor e “narrativas” em escala superindustrial, tornando-se assim o centro do capitalismo, do poder econ�mico e pol�tico nos �ltimos anos, assinala Bucci, em entrevista ao Pensar.
O senhor menciona no livro a tens�o dos estados nacionais tentando regulamentar as megaplataformas digitais. H� interesse em estabelecer essa conten��o?
H� interesse e necessidade por uma raz�o simples: o estado democr�tico est� como que sitiado, � um estado de s�tio, que o capital joga sobre o estado democr�tico. A um ponto que ou a democracia estabelece as leis pelas quais as rela��es de produ��o podem acontecer ou essas rela��es de produ��o superindustriais, que adquiriram grau de acumula��o sem precedentes, estabelecer�o as regras nas quais a democracia pode funcionar. A pergunta posta �: quem regular quem? Se � a democracia que regula a atividade econ�mica, temos esperan�a de que padr�es de humanidade, dignidade e sa�de ser�o considerados no estabelecimento das rela��es de trabalho. Se � o contr�rio, os estados tendem a se tornar um despachante dessa superind�stria, trabalhando para ela. E a� a democracia acabou e a pr�pria pol�tica entra em colapso, porque n�o haver� mais lugar para observ�ncia dos fatos e para a elabora��o coletiva de solu��es para problemas reais, guiada pela raz�o. A democracia acaba e a pr�pria pol�tica, por escassez de raz�o e de lastro nos fatos, vai se inviabilizando. Se virmos o que acontece com a uberiza��o de uma s�rie de trabalhos, esse embate est� posto. Ou a democracia regula esse mercado ou esse mercado vai engolir a democracia. Isso j� aparece claramente em algumas manifesta��es nos Estados Unidos: a senadora Elizabeth Warren, por exemplo, defende a quebra do monop�lio das big techs. Esse debate aparece tamb�m na Europa, em v�rios pa�ses, inclusive come�a a aparecer tens�o espec�fica que � obrigar as plataformas a remunerar os conte�dos jornal�sticos. Isso � obrigat�rio se quisermos financiar as reda��es independentes para fiscalizar o poder. Nesse sentido, sim, existe interesse em regular esse mercado. E mais do que interesse, h� necessidade vital: ou � isso ou o projeto de uma sociedade livre, democr�tica, solid�ria vai para o vinagre.
Qual o peso pol�tico, na forma��o das opini�es, dessas megaplataformas digitais em processos eleitorais recentes e em outros processos de consulta interna dos pa�ses, como o Brexit?
Precisamos levar em conta que o que aconteceu num ciclo muito r�pido foi a apropria��o de tudo aquilo que chamamos de imagin�rio pelas rela��es superindustriais do capitalismo. Normalmente, se fala em sociedade p�s-industrial, mas o termo obscurece o centro daquilo que considero a atividade presente do capitalismo: a superindustrializa��o. N�o � a p�s-ind�stria. Mas s�o rela��es industriais jogadas no plano da linguagem e da constru��o de imagens como mercadorias. Isso muda todas as coisas: as coisas corp�reas passam a ser ve�culo de transporte de um signo, que � aquilo que o sujeito consome. N�o surpreende, portanto, que os engenhos, os dispositivos especializados de captura do olhar, e acionamento do olhar como for�a produtiva, porque o olhar confecciona a linguagem, tenham se tornado as empresas mais valiosas da hist�ria do capitalismo. Hoje as empresas mais valiosas na economia global s�o aquelas que extraem dados pessoais e praticam o extrativismo do olhar, para canalizar o olhar como for�a de trabalho, como for�a produtiva. Nesse sentido, quem est� no centro dessa atividade tamb�m � o centro do poder. Por isso que ocorre isso que verificamos na observa��o cotidiana, esse enorme poder de influ�ncia dos conglomerados monopolistas globais. Todas as decis�es das sociedades democr�ticas, parecem passar por ali e n�o saem ilesas. Por isso tamb�m que come�a a se esbo�ar cada vez mais claramente um embate entre os esfor�os regulat�rios dos estados democr�ticos e o poder desses conglomerados monopolistas globais. N�o � surpresa que uma plataforma social, atrav�s do incremento de algoritmos, intelig�ncia artificial e machine learning, consigam atingir um grau de manipula��o que n�s sequer �ramos capaz de imaginar h� pouco tempo.
Antes das big techs, as democracias eram pressionadas pelo capital financeiro internacional, que, frequentemente, se posicionava em poder, acima dos estados nacionais. Ainda h� tempo para que as democracias reajam agora ao poder das big techs?
O que a nossa �poca fez foi agravar um quadro que j� era de impasse para as democracias. Por isso, volto aos diagn�sticos de Guy Debord, que, ao final da d�cada de 1960, descreveu a sociedade de espet�culo. Depois tivemos as superfus�es no mercado capitalista nos anos 1980 e 1990. E depois vem a chamada “revolu��o digital” (apesar de eu n�o gostar da express�o). O enclausuramento do estado democr�tico dentro de um estado de s�tio � algo mais antigo e est� posto. Mas agora estamos vivendo uma quest�o agravada desse mesmo problema. Em minha forma de olhar h� uma carga ut�pica: a democracia precisa agir ou ser� atropelada, ser� posta de lado. Pode ser que seja tarde demais, n�o descarto isso. Inclusive, relaciono as distopias totalit�rias, das quais o governo federal � um exemplo, como manifesta��o em perfeita simbiose com os conglomerados monopolistas globais. A coisa foi longe demais, � uma esp�cie de revival do totalitarismo, como se fosse um projeto libertador para as massas fanatizadas. Sim, pode ser que n�o exista mais como fazer. No entanto, acredito que pela pol�tica, pela discuss�o e pela defesa do que temos de democracia e n�o pelo ataque da democracia, temos condi��es melhores de enfrentar esse impasse.
O termo capitalismo � apropriado para o que estamos vivendo? Qual seria o nosso sistema econ�mico hoje, que nome � apropriado para nosso sistema sob as superind�strias?
Essa observa��o � ultrapertinente e toca no nervo do problema. Talvez o termo capitalismo n�o d� conta de descrever isso. O que ocorreu � uma muta��o acelerada do capitalismo, que deixou de fabricar coisas, para fabricar imagens. Deixou de explorar a for�a de trabalho muscular do ser humano, para explorar o olhar. Deixou de se dirigir �s necessidades e passou a se dirigir ao desejo. E, a�, as rela��es informais de contrata��o de m�o de obra explodiram, as jornadas de trabalho desapareceram, boa parte do trabalho � realizado por multid�es que imaginam que est�o se divertindo, quando na verdade est�o trabalhando. O n�vel de entrega de cada pessoa para a produ��o nunca foi t�o alto, porque o chamado tempo do lazer foi ocupado pelo tempo da produ��o superindustrial. E se n�s entendermos como grande muta��o, para usar o termo que o Adauto Novaes (jornalista, professor e pesquisador) sempre prefere usar, se n�s entendermos que se trata de uma muta��o, � um capitalismo mutante que est� em vigor.
Podemos entender que estamos entregando trabalho gratuito, produzindo conte�do numa esp�cie de escravid�o volunt�ria para as megaplataformas?
� muito poss�vel. O termo escravid�o, no entanto, tem uma localiza��o hist�rica que carrega uma s�rie de requisitos conceituais, que talvez n�o se aplique hoje. Mas no sentido de que se trata de um trabalho extenuante, que n�o � remunerado e que inclusive compromete a integridade ps�quica das pessoas, e a integridade f�sica tamb�m, porque s�o jornadas intermin�veis – imagina as pessoas que ficam jogando, pessoas que n�o conseguem sair das redes sociais, existem aspectos viciantes nessas engrenagens todas. Ent�o, existem elementos que podem nos levar a dizer que isso � uma esp�cie de regime de escravid�o volunt�ria e festiva. Eu quero dar um exemplo, bem simples. Nessas plataformas sociais a m�o de obra � toda exercida por pessoas que acham que est�o ali se servindo de uma ferramenta para se divertir, ou pesquisar, aprender ou buscar uma informa��o. Est�o achando que se beneficiam de um conjunto de ferramentas para fins l�dicos ou profissionais, tanto faz. Isso vale para as pessoas que postam fotos de gato nas redes sociais e vale tamb�m para as pessoas que trabalham na reda��o e n�o t�m outro caminho a n�o ser postar. Isso � um volume de trabalho n�o remunerado numa escala que nunca se viu; portanto, a m�o de obra � gratuita nesta superind�stria.
O senhor. poderia descrever um pouco mais sobre como esse trabalho gratuito dos usu�rios da superind�stria � transformado em mercadoria?
Numa ind�stria convencional existe uma mat�ria-prima que � transformada pelo trabalho humano, vira mercadoria e vai para o mercado. O trabalho, n�s j� sabemos, da superind�stria � gratuito ou boa parte dele � gratuita. Imagina que um Facebook da vida n�o contrata fot�grafo, redator, editor. Quem faz s�o os chamados usu�rios. O termo ali�s, s� � usado para frequentador de plataforma social e consumidor de drogas submetido a uma rela��o que provoca depend�ncia. Que tipo de coisa esse trabalho est� transformando em mercadoria? Uma mat�ria-prima que n�o � outra que n�o seja a pr�pria vida dos tais usu�rios. A mat�ria-prima s�o as hist�rias deles, as fotografias deles, os v�deos deles, as impress�es deles sobre as coisas, as rela��es pessoais deles. Vamos lembrar que o esc�ndalo da Cambridge Analytica se beneficiou exatamente disso. Atrav�s de um endere�o, uma p�gina, uma pessoa, o algoritmo tinha acesso �s redes de relacionamento dessas pessoas e conseguiam capturar dados de outras pessoas. Essas s�o as mat�rias primas: as redes de cada um de n�s, as fotos de cada um de n�s, as biografias de cada um de n�s. As prefer�ncias de cada um de n�s, que tamb�m v�o todas de gra�a para a superind�stria. S� para ficar claro, o trabalho vai de gra�a; a mat�ria-prima vai de gra�a. O trabalho envolve a digita��o, a fotografia, mas o trabalho � principalmente o olhar, que est� trabalhando e fabricando a linguagem. Uma coisa que meu livro traz, e � um �ngulo novo, � a compreens�o que o olhar confecciona a imagem. N�o apenas recebe a imagem. Ele consubstancia, ele confecciona, ele costura o significante no significado. Ele fabrica signos, identifica��es. Isso � feito atrav�s da energia do olhar que essa superind�stria aprendeu a canalizar como energia produtiva, capaz de fabricar imagem, fabricar imagin�rio. Ent�o, temos o trabalho gratuito dos dedos, da aten��o, do olhar e temos a mat�ria-prima gratuita, sejam as nossas mem�rias, da fotografia do prato que comemos, sejam as nossas rela��es pessoais, os grupos aos quais a gente pertence. E, a�, vem o desfecho dessa f�rmula, completamente in�dita em mat�ria de superexplora��o. Muito mais violenta essa explora��o do que aquela que acontecia na revolu��o industrial ou nas duas revolu��es industriais ou na sequ�ncia de revolu��es industriais que tivemos. No final disso, onde est� a mercadoria? O que � a mercadoria? A mercadoria � justamente aquele que se imagina benefici�rio dessas tecnologias. Quem � vendido � o olhar dessa pessoa, s�o as mem�rias, o desejo dessas pessoas. A mercadoria � a pessoa. Essa forma de explora��o da humanidade para fabrica��o de lucro � uma coisa completamente nova. Isso n�o existia. Isso nem sequer se concebia antes. � um n�vel de explora��o inimagin�vel.

“A superind�stria do imagin�rio – Como o capital transformou o olhar em trabalho e se apropriou de tudo que � vis�vel”
.Eug�nio Bucci
.Editora Aut�ntica
.448 p�ginas
.R$ 74,90
.Lan�amento: Sempre um Papo, ter�a-feira, 3 de agosto, �s 19h, com acesso gratuito, tradu��o simult�nea em Libras e transmiss�o ao vivo pelo YouTube, Instagram e Facebook do projeto.