
Crescido em um “ambiente medieval”, a 25 quil�metros do mar, muito diferente daquele narrado por Proust e Mauriac, o futuro comerciante � um homem simples, que "n�o pertencia a nenhuma associa��o, apenas pagava uma contribui��o � junta comercial, mas n�o fazia parte do que quer que fosse". Um sujeito criado sob o jugo pesado do av� da escritora, que n�o sabia ler nem escrever, o que nem de longe evitava os momentos sublimes, como se facilitasse a futura arqueologia de Ernaux.
“Ao escrever, caminha-se no limite entre reconstruir um modo de vida em geral tratado como inferior e denunciar a condi��o alienante que o acompanha”, nos diz Annie, vencedora do Pr�mio Marguerite Yourcenar. Essa travessia na corda bamba, de certa forma, � feita sem sustos. “O lugar” � um livro curto, mas poderoso ao servir de teste para os procedimentos adotados em “Os anos”, lan�ado em 2008. Est�o l� os par�grafos em bloco, as descri��es sem pirotecnias, uma objetividade t�o l�mpida que tamb�m n�o poderia ser classificada de jornal�stica.
A todo momento, o que parecemos testemunhar � um obstina��o incorrig�vel: Annie Ernaux precisa nos colocar na Normandia, no cen�rio pr� e p�s-Segunda Guerra, onde vidas mi�das alternam a inflama��o dependendo do contexto em que se est�. O pai, por exemplo, oper�rio que conseguiu montar um pequeno com�rcio, era “tagarela no caf� e com a fam�lia, mas na frente de pessoas que falavam de forma correta [...] se calava, ou parava no meio de uma frase”. Havia, nas palavras da escritora, “sempre uma vontade de demolir e reconstruir”. O que � medida do mundo para um – o corpo como inst�ncia que imp�e os limites – � alien�gena para o outro. Pai e filha acabam por instituir uma din�mica cuja �nica forma de contato pleno, sem arestas, � o lugar em livro e esp�rito.
A todo momento, o que parecemos testemunhar � um obstina��o incorrig�vel: Annie Ernaux precisa nos colocar na Normandia, no cen�rio pr� e p�s-Segunda Guerra, onde vidas mi�das alternam a inflama��o dependendo do contexto em que se est�. O pai, por exemplo, oper�rio que conseguiu montar um pequeno com�rcio, era “tagarela no caf� e com a fam�lia, mas na frente de pessoas que falavam de forma correta [...] se calava, ou parava no meio de uma frase”. Havia, nas palavras da escritora, “sempre uma vontade de demolir e reconstruir”. O que � medida do mundo para um – o corpo como inst�ncia que imp�e os limites – � alien�gena para o outro. Pai e filha acabam por instituir uma din�mica cuja �nica forma de contato pleno, sem arestas, � o lugar em livro e esp�rito.
Relan�amento
Em “Os anos”, que a Editora F�sforo relan�a tamb�m em tradu��o da poeta Mar�lia Garcia, Annie Ernaux escreve que “assim como o desejo sexual, a mem�ria nunca se interrompe”. Aqui, por sua vez, “a mem�ria se mostra resistente”. � interessante justapor ambos os livros ao l�-los em sequ�ncia. No fim das contas, se complementam, apesar de as caracter�sticas do segundo estarem no primeiro. “O lugar” surge como pr�logo de luxo. Suas p�ginas s�o a antecipa��o de um projeto que revitalizou a escrita do eu ao misturar fic��o, sociologia e mem�ria numa interse��o que dispensa classifica��es.
Muito mais que a cr�nica de um luto, hist�ria de juventudes cruzadas – e sacrificadas –, h� aqui um registro muito particular que serve de esteio para que a vida n�o seja apagada. Um livro que n�o seria exagero desejar que fosse mais forte como seu tempor�o, mas nem por isso dispens�vel. Enquanto em “Os anos” “a profundidade do tempo [...] tinha desaparecido”, aqui ela esbanja sua gl�ria. Vivos, mortos: at� o pai comprar um terreno e uma casa, ningu�m na fam�lia tinha sido dono de nada. Por isso, para “salvar alguma coisa deste tempo no qual n�s nunca mais estaremos”, como escreveu em 2008, Ernaux trata de lhes dar uma gl�ria. Uma profunda gl�ria.
*Mateus Baldi, escritor e jornalista, criou a “Resenha de bolso”, voltada para a cr�tica de literatura contempor�nea
Trecho do “O lugar”
“Ao escrever, caminha-se no limite entre reconstruir um modo de vida em geral tratado como inferior e denunciar a condi��o alienante que o acompanha. Afinal, essa maneira de viver constitu�a, para n�s, a pr�pria felicidade, mas era tamb�m a barreira humilhante de nossa condi��o (consci�ncia de que “em casa as coisas n�o est�o l� t�o bem assim”). Eu gostaria de falar ao mesmo tempo dessa felicidade e de sua condi��o alie- nante. Sensa��o de que fico oscilando de um lado para o outro dessa contradi��o.”
Sobre a autora
Annie Ernaux nasceu em 1940, em Lillebonne, pequena cidade no interior da Fran�a. Estudou na Universidade de Rouen e foi professora do Centre National d’Enseignement par Correspondance por mais de 30 anos. Em 2017, Ernaux recebeu o pr�mio Marguerite Yourcenar pelo conjunto da obra. “O lugar”, que ganha agora edi��o brasileira, j� vendeu 950 mil exemplares na Fran�a e foi traduzido para mais de 20 pa�ses.
“O lugar”

Annie Ernaux
Tradu��o de Mar�lia Garcia
Editora F�sforo
72 p�ginas
R$ 49,90
“Os anos”

Annie Ernaux
Tradu��o de Mar�lia Garcia
Editora F�sforo
224 p�ginas
R$ 64,90