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Estado de Minas ENTREVISTA

Uma 'longa conversa' com Carola Saavedra

Conhecida pelos romances, escritora re�ne ensaios informais no livro "O mundo desdobr�vel: ensaios para depois do fim", da editora mineira Relic�rio


20/08/2021 04:00 - atualizado 20/08/2021 07:37

Ao lado de escrever fic��o, que � quase sempre mais divertido, um grande n�mero de escritores sempre se preocupou em produzir tamb�m n�o fic��o, sejam ensaios, estudos, di�rios, como parte de responsabilidade p�blica de intelectual ou esp�cie de dever de casa autoimposto, mas tamb�m como possibilidade de pensar por escrito.

N�o � por ser obrigat�rio que precisa necessariamente se mostrar menos divertido ou envolvente. Que um bom n�mero de escritores brasileiros tenha se contido e ficado apenas com a fic��o ao longo da hist�ria da literatura brasileira parece querer mudar um pouco de figura, quando se veem expoentes das novas gera��es a lan�ar livros de reflex�o liter�ria, casos recentes de Carola Saavedra, que acaba de publicar uma colet�nea de ensaios, “O mundo desdobr�vel” (Relic�rio), e de Juli�n Fuks, que assina estudo a respeito da hist�ria do romance, chamado justamente “Romance” (Companhia das Letras).

O escritor argentino Ricardo Piglia produziu muitos di�rios e depois reuniu o melhor deles, ainda em vida, para serem publicados. Numa das entradas, diz preferir escrever fic��o, “escrita enquanto se escreve”, do que ensaio, onde � preciso “fazer com que a prosa sustente aquilo que veio dizer, ou seja, as hip�teses que tenta apresentar”. Ou seja, implica muita reflex�o pr�via e planejamento. No entanto, � bem poss�vel que o Piglia que vai permanecer para a hist�ria seja mais o das ideias argumentadas em livros como “O �ltimo leitor” e “Formas breves” do que o dos romances “Respira��o artificial” ou “Dinheiro queimado”. � algo a conferir, mas d� o tom a respeito do que vem acontecendo no Brasil, que parece ter despertado com �mpeto renovado para a possibilidade de escrever de formas provocantes e inovadoras n�o s� fic��o.

Uma das curiosas inser��es entre as novas modalidades, por exemplo, foi o ensaio em formato de poesia que Mar�lia Garcia lan�ou h� alguns anos, sob o t�tulo “Parque das ru�nas”. Foi no mesmo ano (2018), ali�s, que o editor da revista Serrote, Paulo Roberto Pires, organizou a colet�nea “Doze ensaios sobre o ensaio”, refer�ncia importante. Iniciativas que deixam claro o movimento que parece se anunciar e aponta para a converg�ncia de escritores rumo a novos e din�micos formatos de texto. Que a iniciativa possa prosperar.

*Paulo Paniago � professor de jornalismo da Universidade de Bras�lia e autor de “Outra viagem: Machado de Assis e a revolu��o da literatura brasileira” (Amavisse)

O lan�amento mais recente de Carola Saavedra mostra que a forma ensaio pode ser t�o estimulante quanto os romances que escreve, at� mais. O livro se chama “O mundo desdobr�vel: ensaios para depois do fim” (Relic�rio). N�o � livro de ensaios “no sentido tradicional do termo”, adverte a autora no pr�logo. Ou seja, com teses e tentativas de convencimento. Est� mais para “uma longa conversa”, com ideias que �s vezes reaparecem, e estimulam o leitor a encontrar por conta pr�pria conex�es poss�veis e plaus�veis. Funciona? Muito bem, na verdade.

Professora de literatura e estudos culturais da Universidade de Col�nia, ela se vale de uma vasta experi�ncia com diversidades de toda ordem para convid�-las para a conversa. O fato de que mora perto do Museu do Homem de Neandertal, por exemplo, a leva a refletir a respeito do Homo sapiens neanderthalensis e do surgimento do H. sapiens sapiens h� meros 40 mil anos. A culpa do desaparecimento do primeiro, segundo especialistas, foi a incapacidade de criar fic��o. Ao que ela apresenta a reflex�o de que a capacidade de falar � fazer fic��o, necessariamente.

Pode ser um passeio pelas ruas de Paraty que de repente a levam a refletir a respeito dos sil�ncios familiares em torno da pr�pria origem. Ou, ainda, uma ideia a respeito do inc�modo de chamar Clarice Lispector de uma das melhores escritoras brasileiras, uma vez que n�o se deveria talvez flexionar o g�nero – Clarice � um dos melhores escritores brasileiros, por outra parte, seria visto tamb�m como problema de sintaxe e sem�ntica –, a leva a fazer pondera��es a respeito de mulheres, literatura e qualidade.

Nessa reflex�o em forma de conversa, Carola Saavedra convoca Hilda Hilst, Juana In�s de la Cruz ou Carolina Maria de Jesus, mistura com uma pitada de leitora de folhetim e uma empregada que trabalhou na casa dos pais, Marlene, de in�cio analfabeta, mas que aprendeu a ler por iniciativa e incentivo da autora. Depois ela coloca tudo na roda do grande assunto em pauta: quem l� e de que maneiras se l�. Inclusive com contribui��es de outras ensa�stas, como a de Joanna Russ, autora de “How to supress women’s writing” (em tradu��o livre, “Como suprimir a escrita feminina”). O resultado � instigante.

O que � permaescrita

Um dos ensaios mais provocadores � o que se intitula “Estranhos narradores”, porque � nele que Carola Saavedra (autora dos romances “Toda ter�a” e “Flores azuis”, este �ltimo premiado pela APCA em 2008) desenvolve o conceito de que � poss�vel associar a permacultura – a ideia de uma harmonia entre plantas que considera n�o apenas a planta sozinha, mas a terra, vento, luz e animais que v�o interagir com a planta, ou seja, � uma esp�cie de combo –, com um tipo de escrita ou literatura a que ela chama de maneira criativa de permaescrita, o que faz todo o sentido.

Ao mesmo tempo em que argumenta a respeito do que seria isso, a autora apresenta as demonstra��es, com entradas de texto sob diferentes rubricas, em que menciona escritores, bot�nicos, experimentos com animais, hist�ria, a vida dos fungos, popula��es ind�genas, na Amaz�nia ou na Austr�lia, num resultado que � ao mesmo tempo muito acess�vel e muito provocador.

Imposs�vel permanecer indiferente. “Tudo � colheita”, ela explica um conceito da permacultura. Aplicado no que seria a permaescrita, “podemos aceitar como parte da obra n�o somente tudo aquilo que nela � visto como sucesso: elogios, vendas, eventos, mas tamb�m aquilo que normalmente � interpretado como fracasso: cr�ticas, esquecimentos, injusti�as e at�, podemos pensar, trechos descartados da pr�pria obra, o que n�o se imprimiu, o que ficou de fora do livro. Ou um livro inteiro nunca publicado”.

Nesse sentido, um livro que algum escritor descarta antes mesmo de enviar � editora pode ser a colheita, porque talvez estimule a escrita do pr�ximo, que pode ser a obra de algum tipo de virada. “A permaescrita talvez nos diga que cada livro n�o � um objeto em si, mas que ele tamb�m est� inserido num sistema que inclui muito mais do que um �nico livro, muito mais do que um �nico autor”, ela escreve.

Que o ensaio seguinte a esse seja uma reflex�o a respeito de subjetividades que n�o podem mais ser enunciadas quando se trata de escrever alguns livros � s� a continua��o natural da conversa.

SEM LIMITES

Mais para o fim, quando o leitor, ou leitora, como ela prefere (talvez porque o livro faz parte da cole��o Nosotras, dedicada a mulheres ensa�stas latino-americanas), est� devidamente amaciada, ela apresenta o conceito em torno do qual vinha girando a prosa, numa espiral muito bem definida e que procura aproximar o centro das bordas, qual seja, o de literatura expandida: envolve despir-se de certos preconceitos e repensar alguns valores.

� um livro de ensaios que tem dois m�nimos sen�es, pormenores que em nada prejudicam a grandiosidade e a amplitude do projeto, escorreg�es que ao ser apontados numa resenha n�o querem afrontar a autora.

Num primeiro, ela escreve em duas ocasi�es que Cervantes, ao terminar o seu livro muito conhecido, “n�o estava interessado numa continua��o do ‘Quixote’ – ele tinha outros planos. Alguns anos depois surge, por�m, a segunda parte, escrita n�o por Cervantes, mas por Avellaneda”. Para responder � afronta, segundo a autora, um enfurecido Cervantes come�a a escrever a segunda parte do romance. John Rutherford contesta essa informa��o, se estiver correto, no pref�cio da edi��o do “Quixote” publicada em dois volumes pela Penguin Companhia das Letras.

Segundo Rutherford, Cervantes estava perto de concluir a segunda parte (escrevia o cap�tulo 59) do romance quando aparece a vers�o de Avellaneda, em Tarragona. Cervantes guarda parte da resposta para o pr�logo, escrito por �ltimo. E al�m disso, prossegue Rutherford: “� artista demais para deixar que a raiva o cegue para as possibilidades c�micas abertas pelo surgimento inesperado de outro Dom Quixote e outro Sancho Pan�a; e trata de inclu�-los em sua hist�ria.”

No outro deslize, ela escreve um ensaio em que relata que assiste ao desenho “Rei Le�o” com a filha, “que � para ser uma esp�cie de vers�o de o ‘Rei Lear’”. Um cochilo, claro, porque o desenho em quest�o na verdade adapta o “Hamlet” shakespeariano para crian�as. S�o duas v�rgulas diante da envergadura alcan�ada pelo livro.

O importante, sem d�vida, � a discuss�o que se segue a respeito do poder dos animais e de como esse sistema hier�rquico aparentemente natural � na verdade resultado de um construto cultural, o que se envolve em outro argumento subsequente e assim vai. Mas a filha, impaciente, n�o quer levar adiante a discuss�o que a m�e pensa em organizar. “Mam�e, voc� est� atrapalhando o desenho”, reclama. E esse tom caseiro, em que a vida cotidiana em seus pequenos conflitos tamb�m � parte do pensamento que se articula em forma de ensaio ou conversa, � o melhor resultado que se pode esperar de um grande livro como esse. 

TRECHO
“Marlene alugava um quarto; Marlene era muito pobre, uma mulher pobre e sozinha e analfabeta no Rio de Janeiro. A exist�ncia de Marlene me atravessou e, mais de duas d�cadas depois, ainda reverbera em mim. Eu sugeri a ela que chegasse todos os dias uma hora mais cedo e eu a ajudaria com as letras. Ela aceitou. Eu obviamente n�o imaginava o esfor�o que sair de casa uma hora mais cedo significava para ela. Eu comecei a ler os livros de Paulo Freire e a pesquisar sobre os diversos m�todos de alfabetiza��o. Marlene era inteligent�ssima e aprendeu a ler rapidamente. H� algo estranhamente m�gico na experi�ncia de ensinar algu�m a ler. Ao mesmo tempo, a necessidade de ensinar adultos a ler � reflexo do fracasso de toda uma sociedade. �s vezes Marlene aparece em meus sonhos, como se um fio invis�vel nos ligasse.”

“O mundo desdobr�vel”
Carola Saavedra
Relic�rio Editora
216 p�ginas
 R$ 48

• Lan�amento em 26 de agosto (quinta-feira), �s 19h30, no YouTube da Livraria da Travessa com a autora, Itamar Vieira Junior e Tatiana Salem Levy


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