Cibele Henriques: 'A di�spora brasileira � embranquecida'
Pesquisadora carioca lan�a livro com estudo sobre o racismo colonial, que impacta no trabalho e forma��o profissional dos jovens negros brasileiros
Cibele Henriques, autora do livro 'Racismo colonial - Trabalho e forma��o profissional' (foto: Arquivo pessoal)
A partir de uma escrita que envolve os “saberes filos�ficos pretos”, a pesquisadora Cibele Henriques revela de que maneira o racismo opera no mercado de trabalho no Brasil. No livro “Racismo colonial – Trabalho e forma��o profissional” (M�rula Editorial), ela estabelece a rela��o entre o sistema escravista brasileiro e o mercado de trabalho contempor�neo. Lan�ada em julho, a obra deriva da tese “A m�scara de Flandres: o racismo estrutural colonialista no processo de trabalho e forma��o profissional negro”, que ela defendeu no programa de p�s-gradua��o em servi�o social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Na pesquisa de doutoramento, ela realizou entrevistas com negros trabalhadores diasp�ricos afro-brasileiros, homens e mulheres, que atuam como servidores p�blicos, tempor�rios, estudantes em treinamento profissional, cotistas e n�o cotistas. “Cibele Henriques, assistente social, mulher negra, filha, esposa e m�e de duas meninas, fez uma pesquisa potente e de f�lego, seja no levantamento e estudo de produ��es te�ricas com presen�a peri�dica na Biblioteca Nacional, seja na pesquisa de campo com toda a complexidade que a abordagem sobre a quest�o racial requer”, aponta Lilia Pougy, professora de servi�o social da UFRJ, na apresenta��o do livro.
“O nosso intuito foi trazer � tona experi�ncias coletivas de racismo que foram silenciadas, ocultadas e n�o publicizadas e que s�o estruturais e reproduzem pr�ticas sociais que se constituem em cargas coloniais pesadas, pois operam opress�es raciais de classe, g�nero, sexualidade, idade, territ�rio e religiosidade, que denominamos de colonialidades”, diz Cibele.
Nesta entrevista, a pesquisadora analisa como o passado colonial do per�odo escravista ainda reflete no mercado de trabalho brasileiro. Cibele prop�e os conceitos “branquidade racista” e a “negritude embranquecida” para pensar a respeito da estrutura��o da sociedade brasileira. Defensora da Lei de Cotas, pondera que a forma��o acad�mica � fundamental para que os negros ocupem postos de trabalhos mais qualificados e mais bem remunerados. No entanto, ela faz a ressalva de que as universidades, nas quais esses profissionais s�o formados, ainda operam a partir de epistemologias do embranquecimento.
Como se expressa o racismo colonial?
Racismo colonial � um termo cunhado pelo pensador martinicano, intelectual, psiquiatra, militante antirracista e anticolonial Franz Fanon, que viveu entre 1925 e 1961 e teceu seus estudos sobre a realidade dos negros na Arg�lia. Fanon foi um homem de Martinica, que passou pelo processo de coloniza��o, mas que, durante a forma��o profissional, vai � Arg�lia e experimenta os aspectos ps�quicos. Para poder entender o processo de forma��o da classe trabalhadora negra brasileira, eu parti dos estudos de Fanon, desse termo racismo colonial, entendendo que, ao me debru�ar sobre uma pesquisa emp�rica de campo, sobre o funcionalismo p�blico brasileiro, numa universidade p�blica federal, eu pude perceber que o processo de trabalho e forma��o profissional dos jovens negros e negras da classe trabalhadora brasileira � estruturado pelo racismo colonial.
O primeiro ponto a esclarecer: o racismo colonial � o racismo que tamb�m � estrutural. Por que � estrutural? O racismo justificou todo o processo de colonialismo, escravid�o, pilhagem, saque, sequestro de africanos e africanas da �frica e seu processo de escraviza��o. Para al�m disso, a gente est� falando de racismo colonial que n�o � s� antinegro, mas ele tamb�m est� na pauta do que atinge popula��es origin�rias, que eram os donos da terra no Brasil, mas tamb�m o racismo colonial que vai atingir povos dominados e colonizados a partir de invas�es territoriais militares, a gente est� falando de �rabes, judeus.
O termo racismo colonial n�o s� engloba o racismo antinegro, vai englobar o racismo, que est� na pauta do dia, para os povos colonizados que experimentam, na atualidade, a experi�ncia de um capitalismo dependente. O racismo colonial � uma viol�ncia estrutural que se d� durante o processo de coloniza��o, invas�o territorial militar e processo de domina��o dos corpos por meio da escraviza��o dos povos origin�rios, africanos sequestrados de seus territ�rios. Fanon vai dizer: ‘N�o � s� voc� sentir os efeitos do racismo colonial no seu corpo’. Ele traz na primeira frase do livro “Peles negras, m�scaras brancas”: ‘Eu queria ser um negro, eu queria ser um homem, eu queria ser um homem em meio a tantos outros homens. Por�m, eu n�o sou visto como homem, eu sou visto como negro”.
Voc� afirma na conclus�o: “At� quando precisaremos nos desterrar de nossas ra�zes africanas para que possamos ser ‘negras/os letradas/os’?” Como essas ra�zes africanas podem modificar as rela��es no mercado de trabalho?
Essa pergunta � muito importante. A todo tempo, a gente tem uma constru��o, isso Fanon traz nos estudos dele, de um processo de latifica��o. Essa latifica��o dos povos colonizados e essa latifica��o, pensando no racismo antinegro, que � voltada para a popula��o negra. Latifica��o � o processo de homogeneiza��o a partir de uma epistemologia euroc�ntrica. Quando falo latifica��o, falo do processo de se tornar embranquecido, tornar-se leite, para entender melhor. Esse processo de latifica��o, embranquecimento, tornar o outro embranquecido, latificado, como se faz com o leite, est� na estrutura das sociedades colonizadas e diasp�ricas e ele est� colado na agenda do dia, estruturado pelo processo educacional.
A gente pode dizer – e n�o sou eu que estou dizendo, a pr�pria L�lia Gonzalez diz nos estudos dela, que as crian�as negras conhecem o racismo a partir de sua inser��o no col�gio. � naquele espa�o que a gente conhece o racismo e ele � naturalizado. A gente n�o pode esquecer que o racismo cient�fico foi gestado e desenvolvido por uma academia. Esse espa�o educacional traz, em si, essa contradi��o de um campo de disputas no qual as disputas por uma linguagem n�o latificada, por uma outra epistemologia tem sido feita a duras penas.
A gente tem todo o embranquecimento da popula��o que est� no processo educacional, a gente pode ver isso pela nossa matriz estruturante e estrutural dos curr�culos educacionais no Brasil. Hoje, podemos recontar a nossa hist�ria. Mas, at� pouco tempo, n�o era assim… Se a gente pegar disciplinas como moral e c�vica e OSPB, a pr�pria hist�ria do Brasil � contada a partir do processo de embranquecimento, da vida dos imigrantes europeus. Para onde foram as pessoas libertas ap�s o per�odo da escravid�o? N�s n�o temos uma historiografia da popula��o negra. Como disse Beatriz Nascimento, a nossa hist�ria foi contada por m�os brancas.
Ent�o, quando eu digo at� quando vamos precisar desterrar de nossas ra�zes africanas para poder ter negros e negras letradas, estou dizendo at� quando a gente vai precisar apagar a nossa hist�ria. A gente n�o reivindica a nossa hist�ria para poder ter acesso a uma educa��o p�blica. As nossas crian�as negras est�o tendo acesso � educa��o p�blica que est� sendo, cada vez mais, subfinanciada, no sentido de n�o permitir criar uma massa cr�tica.
A retomada dessas ra�zes africanas no mercado de trabalho seria uma maneira de reformar o capitalismo ou de erodi-lo? � poss�vel pensar nessas pr�ticas no mundo em que vivemos ou � uma utopia que devemos perseguir?
� uma quest�o central entre reforma ou revolu��o. Ela n�o � nova. V�rios pensadores, Florestan Fernandes, Franz Fanon, Cl�vis Moura, Guerreiro Ramos, pensaram sobre isso. Resgatar as ra�zes africanas – respondo a partir da leitura do Cl�vis Moura – � resgatar a dial�tica radical do negro. E a dial�tica radical do negro n�o � uma dial�tica hegeliana, no sentido de voc� manter uma rela��o entre senhor e escravo numa reciprocidade, em que h� negocia��o e pactua��o.
Acredito que a dial�tica radical do negro tem perspectiva de eros�o, assim como foram as rebeli�es nas senzalas, assim como foram os quilombos do Quariter� ou do Piolho, que foram chefiados por Tereza de Benguela, reivindicava a liberta��o e a alforria dos africanos, mas tamb�m reivindicava outras rela��es comerciais. Ela negociava sementes. Se a gente for falar da dial�tica radical do negro, como Cl�vis Moura faz, n�o estamos falando de reformas. Estamos falando de pr�ticas de transforma��o social. Uma pr�xis negra na qual se instituiu uma eros�o. Enquanto tivermos a produ��o de rela��es sociais que s�o racializadas, constitu�das por diferen�as raciais, dificilmente a gente vai conseguir mudar as rela��es no mercado de trabalho.
“Partimos do pressuposto de que a di�spora afro-brasileira ainda � embranquecida e a universidade p�blica tamb�m.” A respeito dessa afirma��o, um questionamento: � a di�spora brasileira embranquecida ou a di�spora brasileira se caracteriza exatamente pela resist�ncia a essas pol�ticas de embranquecimento?.
A di�spora brasileira � embranquecida, porque ela precisa se ajustar aos crit�rios das pol�ticas sociais que s�o constru�das pelo Estado brasileiro. E as pol�ticas sociais, no sentido de pensar a forma��o do trabalho, a� pensando o processo educacional que latifica, promovem o embranquecimento da classe trabalhadora brasileira.
N�o � porque ela queira. A gente resiste muito. Quando voc� questiona se estou falando do embranquecimento da di�spora brasileira ou se estou falando da di�spora brasileira que resiste a esse processo de embranquecimento, � um processo dial�tico. Um exemplo: a nossa l�ngua. Falar o portugu�s � a express�o m�xima desse processo de latifica��o, embranquecimento. Se voc� for � �frica, eles t�m mais de 450 dialetos, no Benim e na Nig�ria. N�s, no Brasil, todos falamos o portugu�s. Essa � uma express�o do embranquecimento da di�spora brasileira. Todos n�s somos embranquecidos, porque falamos o portugu�s. N�o reivindicamos outras l�nguas.
Quando L�lia Gonzalez fala que dever�amos falar o “guetogu�s”, no sentido de fazer uma transgress�o a esse ensino regular do portugu�s, ela est� falando isso. Falar o ‘pretogu�s’ � promover uma descoloniza��o da l�ngua, uma pr�xis social revolucion�ria. No sentido de n�o ser um negro ou negra letratada por um sistema p�blico de educa��o que n�o permite escolhas. N�o temos possibilidades de romper no sentido de escolher. Para voc� ingressar no mercado de trabalho brasileiro tem que ser um negro ou negra latificado, embranquecido. Tem que falar o portugu�s e falar de forma culta.
Se n�o falar voc� vai conseguir acesso a postos de trabalho n�o qualificados, que v�o reificar o negro ou negra como uma for�a de trabalho que n�o foi capaz de produzir intelectualidade. Eles remuneram mal, no sentido de colocar esses corpos como n�o humanos, como coisas, que na coisifica��o social, t�m a humanidade negada. As pessoas que trabalham em profiss�es que s�o herdeiras de um Brasil colonial como cont�nuos, empregadas dom�sticas, bab�s, auxiliar de servi�os gerais s�o pessoas que est�o denunciando o racismo colonial, seus corpos s�o fixados a partir de uma racializa��o, de mentes e corpos escravizados.
O livro exp�e dois conceitos: “branquidade racista” e “negritude embranquecida”. Pode nos dar alguns exemplos desse conceito no mercado de trabalho?
Quando falo branquidade racista � no sentido de falar de rela��es de poder. Estou falando de sujeitos que sustentam as rela��es sociais de produ��o do Brasil embranquecido. Temos uma constru��o. Quais s�o as 11 fam�lias mais ricas do Brasil? S�o representantes dessa branquidade racista. Elas dominam n�o s� as rela��es econ�micas, mas t�m interfer�ncias nas rela��es pol�ticas e jur�dicas. Quem est� no Parlamento? Olha a cor do Parlamento. S�o representantes dessa branquidade racista. Temos um Parlamento que trabalha em parceria com os interesses de uma burguesia.
Os representantes do agroneg�cio n�o est�o s� nas rela��es comerciais, eles est�o no Parlamento. Temos uma branquidade, representantes no sistema econ�mico e pol�tico, que d� sustentabilidade e refor�a esse estere�tipo do universalismo europeu. A negritude embranquecida � justamente – entendo o embranquecimento como compuls�rio por meio da constru��o das pol�ticas sociais ofertadas para a popula��o negra no Brasil. N�o � uma escolha por ser uma negritude embranquecida, pelo contr�rio, h� muita resist�ncia. H� movimentos negros lutando. Houve muita revolta nas senzalas, guerrilhas e insurrei��es. Ent�o, tem uma negritude que resiste. Mas o embranquecimento � compuls�rio. Para fugir disso, a gente tem que fazer como diz Fanon: erodir com as estruturas coloniais.
“A universidade � a escola do colonizador e que imp�e m�scaras brancas e de Flandres �s/aos negras/os” � outra das senten�as do livro. O que seriam essas m�scaras?
Essa � uma pergunta central. Esse livro tenta responder a isso, mas � uma aproxima��o. Ainda vou desenvolver outros estudos para responder de forma mais completa, tentando trazer a totalidade do que � isso. Quando eu falo que a universidade � a escola do colonizador � porque na universidade h� a afirma��o de uma epistemologia euroc�ntrica de justifica��o da modernidade ocidental. A modernidade ocidental n�o foi constru�da para promover a democratiza��o de direitos nem muito menos uma cidadania compuls�ria para povos dominados.
A gente tem uma constru��o de um episteme no qual a universidade revela a verdade e vai fazer processo de forma��o de trabalhadores especializados, que v�o reproduzir esse mecanismo de um conhecimento universal. Tem a constru��o de uma filosofia na qual S�crates apontava a divis�o do mundo sens�vel e o mundo intelig�vel, onde os povos europeus est�o no mundo sens�vel, da raz�o e do Iluminismo.
O livro aponta a import�ncia da Lei de Cotas, mas diz que essas a��es afirmativas n�o foram suficientes para descolonizar o ensino superior. O que precisa ainda ser feito?
Elas s�o importantes, necess�rias, mas a gente precisa ampliar, ter mais espa�o, renovar as leis de cotas no sentido de assegurar que, realmente, as pessoas declaradas pretas e pardas ingressem sem que haja processo de fraudes nesse acesso. Sou a favor da Lei de Cotas, luto para que sejam ampliadas. A gente precisa enegrecer as estruturas da universidade, a gente precisa desfixar negros e negras em postos de trabalhos menos qualificados e coloc�-los em postos de trabalho mais qualificados, pensando no aumento da renda das fam�lias negras. Quando um jovem negro e negra entra nas universidades e tem acesso a melhores postos de trabalho, melhor remunerados e acesso � p�s-gradua��o, faz o processo de aumentar a renda familiar de sua fam�lia e ele vai ser o esteio de outros familiares, o que vai permitir que outros familiares entrem nessas estruturas t�o embranquecidas.
(foto: M�rula Editorial/Reprodu��o)
Racismo Colonial – trabalho e forma��o profissional