Di�rios de Emilio Renzi, alter-ego do escritor argentino, n�o desafiam apenas os enigmas da literatura, mas tamb�m trazem li��es de hist�ria e pol�tica
Escritor argentino Ricardo Piglia, de carne e osso (foto: Jorge Silva/Reprodu��o)
PIGLIA
Muitos anos e um dia
Os tr�s volumes dos di�rios de Emilio Renzi somam mais de mil p�ginas. Anos de forma��o, per�odos felizes e muitos dias na vida de Ricardo Emilio Piglia Renzi (1940-2017). O nome composto se quebra, os sobrenomes se alternam. E os jogos entre verdadeiro e falso s�o disparados em todas as dire��es. Onde come�a o qu�?
N�o se trata do prop�sito de confundir gratuitamente. O escritor argentino Ricardo Piglia, de carne e osso, e o escritor argentino Emilio Renzi, de tinta e papel, s�o duas faces da mesma autoridade. Nos di�rios conferidos a Renzi em cadernos e assinados por Piglia em livro, um autor-narrador se imiscui. Onde come�a quem?
� pr�pria ao autor dos relatos de “Nome falso” (1975) e do romance “Respira��o artificial” (1980) essa investiga��o liter�ria que come�a suspeitando da pr�pria literatura. Falsa? Artificial? Os di�rios de Renzi-Piglia s�o a obra m�xima de uma po�tica calcada entre a experi�ncia vivida e a experi�ncia narrada, entremeadas por linguagem suspensa e suspeita.
Emilio Renzi � o personagem que aparece pela primeira vez, ainda sem prenome, no conto “A invas�o”, do livro hom�nimo, estreia de Ricardo Piglia em 1967. Dali em diante, seria chamado pela cr�tica de alter ego e reapareceria diversas vezes em outros textos curtos e no romance “O caminho de Ida” (2013), por exemplo.
Renzi � o personagem-escritor paranoico sempre em busca de desembara�ar enigmas, para colocar em uma frase temas car�ssimos a Piglia e habituais a quem se debru�a sobre sua fic��o. No registro cotidiano da vida cronol�gica, Renzi se complica ainda mais: pode existir em primeira ou terceira pessoa. Pode ser Piglia ou ele mesmo. Ou vice-versa, tudo misturado.
Dito assim, as tramas da obra de Ricardo Piglia poderiam parecer complexas demais, impenetr�veis. N�o s�o. E esse � apenas um de seus m�ritos, isto �, narrar e teorizar sem causar aquele espanto de ojeriza intelectual, quando o leitor n�o se sente convidado para a festa, a n�o ser que ele tamb�m seja escritor.
Laborat�rio da fic��o
O laborat�rio da fic��o de Piglia, transportado por completo para os di�rios, reserva aos mortais comuns um microsc�pio cativante, adornado por muita intelig�ncia. Uma de suas importantes matrizes � o romance policial, o que nos aponta essa chave de compreens�o comunicativa, um afeto sincero pelo leitor.
Os di�rios est�o repletos de percursos. Urbanos, amorosos e liter�rios. Em mais de uma ocasi�o, Piglia disse que havia se transformado em escritor para que seu registro da vida, iniciado ainda na adolesc�ncia, ganhasse uma justificativa. Os di�rios antes, a literatura depois. Entretanto, quando decide organiz�-los e public�-los, sabia que estava cometendo o crime perfeito.
Em “Anos de forma��o”, o t�tulo explicita qual � a entrega. Como se faz um escritor na Argentina do final dos anos 1950, primeira metade da d�cada de 1960, que livros e autores ele acessa e incorpora a partir do dia em que a fam�lia parte da pequena Adrogu� rumo a Mar del Plata, em ref�gio pol�tico do pai peronista. Na sequ�ncia, a receita b�sica: Jorge Luis Borges e Buenos Aires.
O “romance de forma��o” da teoria da literatura � o registro da palavra no dia a dia do “artista quando jovem”. As aspas sobre o lugar-comum prestam aqui alguma homenagem ao escritor muito consciente dos limites e das possibilidades do uso da linguagem, um homem todo tomado por narrativas ficcionais.
“Os anos felizes” come�am em 1968 e v�o at� 1975. No maior dos tr�s volumes, Piglia-Renzi nos aproxima de uma capital argentina fervilhante, com a cidade sempre impregnada desta atmosfera cultural que tanto atrai o turista, mesmo o mais desavisado. Compreende-se a paix�o do autor tamb�m pelo cinema, que aparecer� como ref�gio em tempos mais tenebrosos, anos depois.
Os di�rios trazem li��es. Sobre a hist�ria e a pol�tica argentinas, bastante. Sobre o fazer liter�rio, sobretudo. N�o � toa muitos resenhistas destacaram essa caracter�stica de “manual” ou de “guia”. Muitas entradas podem ser lidas como verbetes de um dicion�rio de express�es e termos liter�rios ou como gloss�rio de dicas para o aspirante a escritor.
Os textos se fazem de reflex�es e cita��es diretas que indicam percursos do escritor, que � tamb�m cr�tico e que a vida toda se referiu � constru��o biogr�fica como a listagem das obras lidas e comentadas. “Uma autobiografia te�rica. A hist�ria dos pensamentos de um homem, das suas leituras comentadas. Uma vida exemplar.”
Os di�rios s�o tamb�m �ntimos. Dizem dos per�odos de ina��o, de depress�o, da necessidade de aditivos qu�micos para levar tudo adiante. Contam das amizades e das desaven�as com figuras proeminentes � �poca, algumas ainda em atividade na cena cultural argentina contempor�nea, o que proporciona ao leitor quase o prazer da fofoca.
O terceiro volume, “Um dia na vida”, � sobre a �ltima ditadura militar (1976-1983) e, na parte inicial, sobre o processo de escritura do romance que marcou para sempre a carreira de Piglia, “Respira��o artificial”. Ang�stias em torno dos modos de sobreviv�ncia, solu��es para cenas e mergulhos psicol�gicos das personagens. Os artif�cios manejados para segurar a tens�o social e a aten��o art�stica.
Os di�rios s�o tamb�m um mapa de Buenos Aires esparramado no espa�o da frase – e s� isso j� valeria a leitura. Os caf�s s�o nomeados, as ruas em detalhes, os edif�cios destacados da paisagem externa e por dentro. O personagem entra e sai, deambula, perambula, sempre na chave de examinar os acontecimentos do dia, as intera��es com o passado, os desdobramentos no porvir.
Est� todo Ricardo Emilio Piglia Renzi nestas p�ginas, corpo em movimento e pensamento ensa�stico, nos textos mais longos (muitos apresentados em "dias sem data") e nos flashes do dia a dia, como conv�m. N�o poderia estar de fora a no��o proustiana do tempo perdido a ser rememorado e do fracasso como propulsor da arte, � moda Witold Gombrowicz. Est�, sem d�vida, parte expressiva de tr�s d�cadas da literatura argentina. E que del�cia n�o � se deparar com Manuel Puig ou Juan Jos� Saer nestes apontamentos de amizade.
Nota pessoal
Por fim, nessa toada, uma nota pessoal. Em 2006, um dia banal na vida de Ricardo Piglia se transformou em jornada inesquec�vel para este resenhista. Na condi��o de rep�rter e pesquisador, com portas abertas pela generosidade da professora e cr�tica Adriana P�rsico Rodriguez, encontrei Piglia em sua casa, no Bairro de Palermo, na parte que se classifica hoje de Palermo Viejo.
Simp�tico, me deixa muito � vontade. De relance, a certa altura chega a apontar os cadernos intermin�veis de onde saiu este mundo do qual o leitor agora � testemunha. Sua generosidade, de cabe�a levemente inclinada � esquerda, lan�a o convite para prolongar o encontro profissional em jantar naquela mesma noite, ali perto, no restaurante Lo de Jesus.
� mesa, entre outros, o psicanalista e escritor Germ�n Garc�a e a tradutora da obra para o grego, Efi Yanopulu. A fala de Ricardo Piglia tem a mesma tonalidade que domina os di�rios. Seu conhecimento n�o se traduz em qualquer possibilidade de pedantismo. Sua sabedoria est� na abertura para o di�logo.
Quando a m�o do escritor se apoia sobre a do leitor nada imparcial, em momento de argumenta��o e como recurso expressivo, o gesto tem eleg�ncia muito pr�pria e digna, semelhante � que descubro agora ao fechar as p�ginas dos di�rios. A fic��o foi a morada de Piglia, em constante deslocamento, d�vida e sempre a mesma, como as resid�ncias reais do escritor enumeradas ao longo de dias, meses e anos.
Na a��o da escrita di�ria, o “�ltimo leitor” nos deixou a presen�a requerida do nome verdadeiro, a respirar com naturalidade o ar de um dia qualquer na vida de um escritor, vivo, muito vivo entre hist�rias contaminadas pela pr�pria raz�o de existir.
S�rgio de S� � doutor em Estudos Liter�rios pela UFMG e professor da Faculdade de Comunica��o da UnB
“Anos de forma��o - os di�rios de Emilio Renzi”