
Professora e pesquisadora do campo da leitura, escritora premiada, integrante do conselho curador do Jabuti, o pr�mio mais importante de literatura do Brasil, Ana Elisa Ribeiro vive rodeada de palavras. E gosta de compartilhar essa conviv�ncia com os alunos do Centro Federal de Educa��o Tecnol�gica de Minas Gerais (Cefet-MG) e com os leitores. � o que ela faz no divertid�ssimo, e nem por isso superficial, “Doida para es- crever” (Moinhos), livro de cr�nicas que ter� lan�amento em Belo Horizonte no pr�ximo dia 20, das 11h �s 14h, na Livraria Quixote.
A cr�nica que d� nome ao livro revela que a escrita, para Ana Elisa, n�o �, nem de longe, tarefa exclusivamente laboral. Ela escreve porque n�o saberia existir de outra forma. E, se escrever � mesmo existir, ela demonstra que a escrita comporta a diversidade que h� no mundo ou, talvez mais que isso, � algo �nico – como cada indiv�duo. Ana Elisa lan�ou outros dois livros de cr�nicas: “Chiclete, lambidinha e outras cr�nicas” (2012) e “Meus segredos com Capitu” (2013), ambos pela Editora Jovens Escribas. “Meus segredos” foi semifinalista do pr�mio Portugal Telecom (hoje Oceanos). Uma das cr�nicas desse livro foi premiada pela Funda��o Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ).
Com ironia e bom humor, sem nenhum pedantismo, Ana Elisa revisita, em “Doida para escrever” o passado de forma inteligente. Ela faz o resgate de Am�lia, a da can��o de M�rio Lago, � luz do feminismo, lembra dispositivos da internet esquecidos que voltaram � moda durante a pandemia e observa a mudan�a de conven��es sociais ao refletir sobre a aceita��o dos cabelos brancos.
Na cr�nica que d� nome ao livro, ela assume o tom cr�tico ao uso da escrita dentro de uma l�gica meritocr�tica de produ��o. A refer�ncia ao Enem n�o � explicitada, mas � imposs�vel n�o lembrar do exame quando se l� o trecho: “Escreva a�, nesta sala bege ou verde-hospital, sem livros nem nada o que consultar, bem rapidamente, sob o olhar lancinante deste fiscal mal pago, sobre um tema que voc� conhecer� neste instante. OK. Est� dada a largada”.
Para Ana Elisa, a escrita � afeto. Na cr�nica “Seu Amadeu”, ela demonstra como escrever � afetar-se pelo outro e ainda meio de compartilhar o sentimento. O texto materializa o pensamento dela sobre a escrita, sobretudo, a liter�ria. E se escrever � existir, e a exist�ncia de cada um � �nica, nessa cr�nica ela nos apresenta seu Amadeu, e, em certa medida, como ela mesmo prop�e em “Doida para escrever”, demonstra que o texto, mesmo quando n�o festejado por cr�ticos ou que n�o tenha conquistado muitos leitores, � maravilhoso nele em si. Pela escrita, conhecemos o seu Amadeu da maneira delicada como Ana Elisa nos apresenta: “Amadeu era discreto, t�mido e quieto” e, nem por isso, deixou de ser “uma lenda”. A escrita de qualquer um pode ser assim tamb�m, singular e, por isso mesmo, extraordin�ria.
“Doida para escrever”

Ana Elisa Ribeiro
Editora Moinhos
R$ 44,20
160 p�ginas
Lan�amento: dia 20/11, das 11h �s 14h, na Livraria Quixote (Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi)
“Doida para escrever”
A cr�nica que d� nome ao livro de Ana Elisa Ribeiro
Tem dia que eu acordo doida pra escrever. N�o serve mais nada. Tem alguma coisa incomodando demais, dando engulhos ou fazendo c�cegas. �s vezes � s� um prazo mesmo, vencido, de prefer�ncia. Outras vezes, n�o. � assim a sensa��o que deve ter um vulc�o ou ent�o uma bomba. Vamos humanizar as coisas, minha gente. � a sensa��o que deve ter o nosso corpo, imagine a� em que circunst�ncias, as mais variadas.
Mas j� ouvi dizer de gente que nunca sente isso. Por outro lado, ouvi falar de m�dico que prescreve escrita pra curar doideira ou algum mal da cabe�a. Talvez cure tamb�m o cora��o e outras v�sceras. Quantas vezes senti os pulm�es mais capazes depois de um belo poema. Pode nem ter sido assim t�o belo, v� l�, mas foi eficaz pra dores diversas.
Em rela��o a essa turma que n�o precisa da escrita pra nada s� sinto duas coisas: ou inveja ou d�. Isso,d�. Desculpem a� minha intoler�ncia. (Neste mundo, � preciso ter cuidado com isso, sen�o d� processo.) Inveja quando penso que algu�m pode conseguir viver agarradinho com seus quiproc�s todos, no maior love, sem precisar tir�-los a f�rceps, com caneta ou um teclado desbotado. Quem me dera essa conviv�ncia toda.
Mas tudo bem. Pode ser que a pessoa tenha outros expedientes, tipo jogar bola com os amigos, beber bastante, correr (j� vi gente se curar assim), cantar, ah, cantar a beleza de ser... isso. Mas n�o precisar escrever � um mist�rio pra mim.
O outro sentimento � mais delicado. � d�, � pena, � um neg�cio complicado. A gente, c� do alto de nossa implic�ncia, fica pensando “coitado desse pessoal”. Mas � que quem escreve se sente dono de um garimpo inteiro. Uma esp�cie de poder.
Est� na moda a�, ali�s, uma palavra esquisita, traduzida e mal paga, que � “empoderamento”. � mais ou menos quando a gente aprende uma coisa que nos faz ficar mais potentes, mais podendo, com uma esp�cie de “cinto de utilidades” que pode ser usado quando a gente quiser mudar algo. E a� j� li bastante falarem de empoderamento em rela��o � leitura e � escrita. E me senti mais super-hero�na do que todas: a She-Ha, a Mu- lher Maravilha, a... bem, s�o quantas mesmo?
Escrever � um �dio. Mas, depois que acontece, � uma mansid�o geral, at� a pr�xima escala. S� que tem dia que eu acordo – eu e um monte de gente que fez esta descoberta – doida pra escrever.
N�o me vem nem a ideia do caf� da manh�. � que tem bastante gente que precisa tomar caf� primeiro. Mas eu sou uma mineira estranha: n�o curto nem caf�, nem tropeiro, nem praia. Mas a� eu corro pro computador e piro geral. Vai que d� certo? Costuma.
A escrita � uma mistura inexplic�vel de for�a, mem�ria, conex�es, leituras, falat�rios, horas de filmes bons e ruins, uma vida inteira de a��es e rea��es, aten��o, desaten��o, amor e desamor, �mpetos, convic��es, perd�es, conven��es, aulas de tudo quanto h�, escola, muita escola, conten��o, habilidade, um tico de tend�ncias sado-mas�, exibicionismo, em algum grau, experi�ncia em qualquer medida, mas,fundamentalmente, desobedi�ncia.
A escrita nem te suga nem nada. Voc� acorda doid�o, corre pra m�quina que for (pode ser l�pis, pois ela n�o � muito espec�fica), escreve, escreve, escreve, sente que secou, murchou ou brochou, e continua o dia. N�o desgasta, sabe? E enche, enche tudo de novo, que nem caixa d’�gua (quer dizer... a� depende...).
Hoje eu acordei doida pra escrever. Note-se que nem tinha muito o que dizer. Isso tamb�m acontece. No entanto, n�o � bem um problema quando isso rola. Tanta gente n�o tem nada a dizer! Ora, bolas. Nem � preciso ter um ostent�vel conte�do para escrever. Milhares e milhares de estudantes fazem isso, todos os anos, quando escrevem algumas sofridas (e sofr�veis) linhas sobre o que n�o sabem. J� imaginou? Ter de escrever o que nunca foi pensado antes? � a tarefa mais ingrata que h�.
Digo sempre isso aos alunos que passam ali pelo meu quadrado: sua tarefa � a pior que h�, meu caro. Depois desta, qualquer coisa funciona. Imagine o comando: Escreva a�, nesta sala bege ou verde-hospital, sem livros nem nada o que consultar, bem rapidamente, sob o olhar lancinante deste fiscal mal pago, sobre um tema que voc� conhecer� neste instante. OK. Est� dada a largada. Se isso for poss�vel, o resto ser� festa.
N�o. Escritor doido pra escrever tem tempo, tem paix�o, tem uns dias, uns meses, uns anos, uns livros e muita gente com quem conversar. Muitas vezes, escrever sucede � pesquisa. Pesquisa mesmo, com roteiros, leituras, entrevistas, consultas.
Quem � doido por escrever costuma ter uma sala, um quarto, uma estante, uma prateleira, um computador, o que seja... mas cheios de coisas pra ler, pra olhar, pra visitar, pra levar debaixo do bra�o. Pensa, pensa, da� vem um �mpeto. A gente fica fogoso, um dia. N�o pode nem ver uma folha de papel, uma tela em branco, que o fogo acende.
Mas v� l�. � preciso saber ficar doido pra escrever. Ligar a igni��o. T� tudo calmo e quieto, vontade alguma, s� pensando no mato pra capinar ou na graxa do port�o, mas chega uma demanda de escrever. Quem n�o entende do riscado pensa que � assim, �: “Senta e escreve, bora l�”. E a gente faz. Aprende a riscar a faca no ch�o at� dar fa�sca. Pedra com pedra. F�sforo. Lente no sol. Queima at� o que n�o tem. Doidos pra escrever s�o perigosos.
Acordei doida pra escrever. E nem era s� um prazo expirado. Era uma energia transbordando aqui e ali. Calibrada? N�veis normais? Vamos agora ao dia, pra ter mais o que escrever, nas pr�ximas linhas.