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Estado de Minas BIOGRAFIAS

Dois livros contam a hist�ria de Guignard

Doutora em hist�ria da arte, Gra�a Ramos analisa as semelhan�as e diferen�as entre as biografias assinadas pelos jornalistas Marcelo Bortoloti e Jo�o Perdig�o


12/11/2021 04:00 - atualizado 12/11/2021 09:17

Guignard trabalhando em um quadro
Nascido em Nova Friburgo (RJ), Alberto da Veiga Guignard se mudou para Belo Horizonte em 1944 para dar aulas de pintura, a convite do ent�o prefeito da cidade Juscelino Kubitschek (foto: Museu Casa Guignard/Divulga��o)

Duas biografias lan�adas este ano refor�am a import�ncia de um dos mais centrais artistas do Modernismo brasileiro: “Guignard: anjo mutilado”, de Marcelo Bortoloti, e “Bal�es, vida e tempo de Guignard”, de Jo�o Perdig�o. A vida do pintor e desenhista � acolhida com empatia pelos bi�grafos, consequ�ncia imposta mais pela at�pica e tr�gica exist�ncia do pintor do que por escolha de estilo dos escritores. Ambos lhe devotam ternura e compaix�o, mas tomam o cuidado de n�o heroicizar a personagem.

Nascido em Nova Friburgo, em 1896, Alberto da Veiga Guignard se mudou para Minas Gerais em 1944, para dar aulas de pintura a convite do ent�o prefeito de Belo Horizonte Juscelino Kubitschek. Enraizou-se na paisagem mineira at� morrer, em 1962, e transformou essa viv�ncia em l�ricas e deslumbrantes paisagens imagin�rias, sua principal contribui��o � arte brasileira. Teve vida atribulada: nasceu com fenda no l�bio, lacuna que o levou a muitas cirurgias que s� agravaram o problema; ficou �rf�o muito cedo, e, adulto, se tornou adicto ao �lcool. 

�nico artista brasileiro a fazer sua forma��o integral na Europa, Guignard estudou na Fran�a, It�lia, Su��a e, em especial, na Real Academia de Arte de Munique (Alemanha), pois a m�e se casou com um alem�o megaloman�aco, que gostava de transitar pelo luxo europeu. Fato que, se por um lado contribuiu para a rigorosa forma��o do pintor e desenhista, tamb�m ajudou a arruinar a fortuna deixada pelo pai dele. Riqueza resultante de um seguro de vida, o maior pago no Brasil at� ent�o, obtido, segundo Bortoloti, ap�s organizado suic�dio. 

Fa�o brev�ssimo resumo da trajet�ria do artista apenas para circunstanciar a quem me l�, pois mais informa��es ser�o encontradas nas duas biografias. N�o darei spoiler das novidades que apresentam, por entender que um dos prazeres de se ler biografias reside no efeito que a descoberta de uma vida provoca em cada pessoa que sobre ela se debru�a. Apenas destaco que Bortoloti comprova que o padrasto de Guignard, que se dizia nobre bar�o, bar�o n�o era e de nobre s� tinha o gosto pela ostenta��o. 

Tratamento editorial diferenciado

As duas biografias receberam tratamento editorial bastante diferenciado. A de Bortoloti, lan�ada pela Companhia das Letras, apresenta poucas imagens em preto e branco, privilegiando o textual, ancorado em minuciosa pesquisa, que traz e trata informa��es preciosas, em especial do per�odo entre o nascimento e a entrada de Guignard na idade adulta. �poca em que, por ser menor de idade, os custos da vida do futuro pintor tinham que ser relatados � Justi�a, documenta��o a que o escritor teve acesso. Como acr�scimo, a edi��o oferta tamb�m um �ndice remissivo.  

J� a de Perdig�o, publicada pela Editora Aut�ntica, mais enxuta na pesquisa, apresenta �lbum em cromo de pinturas e desenhos do artista, al�m de reproduzir extensa entrevista dada pelo artista a Carlos Gast�o Krebs, em 1948. Pingue-pongue que oferece v�vido retrato do artista em suas pr�prias palavras. Apresenta tamb�m um gloss�rio de nomes, com pequena bio para cada uma das personalidades que tiveram envolvimento com Guignard. Torna-se n�tido o sentido educativo na forma como o livro foi concebido, o que pode facilitar a aquisi��es por escolas. 

A forma como as duas biografias s�o compostas, ainda que tratem de uma mesma vida e, por isso, informa��es se repitam, tamb�m apresenta diferen�as not�veis. Sinal de que a grafia de uma vida, o mergulho na exist�ncia alheia, se faz exerc�cio hermen�utico dos mais complexos e permite olhares transversais. Na leitura das biografias, podemos perceber como se realizaram mudan�as no vocabul�rio visual do artista, como, por exemplo, o momento em que ele opera a modifica��o da leitura de paisagens e, por consequ�ncia, a materializa��o dessas imagens nas telas (ler trecho).

Para quem tem acesso aos dois livros, eles funcionam de maneira complementar, ampliando a fortuna cr�tica do artista e comprovando aquilo que te�ricos chamam de “a ilus�o biogr�fica”, a certeza de ser forma de quimera pretender esgotar uma exist�ncia em uma narrativa. Demonstra, por outro lado, a import�ncia dos estudos monogr�ficos para a compreens�o de escolhas feitas pela personagem biografada capazes de modificar pr�ticas, no caso de Guignard, em nossa tradi��o pict�rica e no ensino de arte.

Bortoloti: informa��es detalhadas

Primeira a ser lan�ada, mais detalhada em rela��o a informa��es, pois o autor pesquisou acervos particulares e arquivos europeus, quase obsessiva em esmiu�ar a trajet�ria de Guignard, a obra de Bortoloti se aproxima, nesse aspecto, ao modelo das biografias produzidas no mundo norte-americano. Mas, na contram�o dessa corrente que tende a menosprezar a eleg�ncia textual, a forma��o do bi�grafo, doutor em literatura brasileira, o ajudou a construir obra em que o car�ter liter�rio sobressai. 

Na frui��o do texto de Bortoloti, podemos ler Guignard quase como personagem ficcional. Por essa voz l�rica, tomamos conhecimento de suas fragilidades, seus travessos artif�cios para sobreviver, a dor das constantes rejei��es amorosas e a imensa depend�ncia do afeto dos amigos. Adulto que jamais deixou de ser uma crian�a genial ou o “anjo mutilado”, conforme o descreveu o poeta Manoel Bandeira.  

O trabalho de Perdig�o � menos formal em rela��o a modelos de biografias.  Contextualiza a vida do escritor buscando aproxima��o �ntima ao biografado – muitas vezes, o personagem � chamado de “nosso” e o autor se declara “espectador de sua vida”. H� clara �nfase no per�odo de Guignard em Minas Gerais, quando criou a escola de artes que leva seu nome, respons�vel por formar in�meros artistas, hoje parte da Universidade do Estado de Minas Gerais (Uemg). Institui��o que contribuiu para a transforma��o do padr�o educativo de artes e ajudou na forma��o do gosto art�stico da sociedade mineira daquela �poca.

Perdig�o: �nfase na contextualiza��o

Se apresenta menos detalhamentos sobre a vida do artista e estilo mais pr�ximo do jornalismo, inclusive nos divertidos t�tulos dados aos cap�tulos, Perdig�o oferece a quem l� enf�tica contextualiza��o dos movimentos art�sticos transitados por Guignard, o modernista brasileiro de alma cl�ssica. Inclusive, logo na abertura do livro, antes do texto biogr�fico, disponibiliza um gloss�rio de termos utilizados na hist�ria da arte, o que poder� ajudar aos n�o iniciados em arte. 

A leitura das duas biografias deixa n�tida a import�ncia do acervo de documentos – cartas, bilhetes, fotografias – preservados no museu dedicado a Guignard, localizado em Ouro Preto, a cidade que o artista dizia ser seu “amor-inspira��o”, local que inspirou algumas de suas mais c�lebres obras. Inaugurada em 1987 com o objetivo de preservar e difundir a obra do artista, a Casa Guignard tem ajudado a dar suporte �s muitas leituras que surgem sobre a vida e a obra do pintor, que, essencialmente, se dedicou ao retrato e �s paisagens. 

Aqui rendo elogios � sociedade mineira, que soube se dedicar a cuidar da mem�ria de Guignard. Bortoloti aponta as intrigantes circunst�ncias que levaram a elite de Minas Gerais a cuidar da fr�gil (emocional e fisicamente) pessoa de Guignard – o que pode justificar a escolha do pronome possessivo na biografia de Perdig�o –, e com isso possuir pinturas presenteadas, grande parte delas ainda hoje em cole��es particulares. Mas esse mesmo grupo social posteriormente criou a institui��o que preserva parte de seu legado. Se n�o houvesse tal esfor�o coletivo, o precioso acervo poderia ter sido fraccionado e espalhado por outras institui��es, como costuma ocorrer no Brasil.

Ambos mineiros, os dois autores somaram-se agora a esse esfor�o. Nas reflex�es biogr�ficas que produziram, h� preocupa��o em aproximar Guignard do grande p�blico, de torn�-lo ainda mais conhecido, em especial, das novas gera��es. Constroem para isso, cada um ao seu modo, discurso vital que insere o amado pintor em uma rede de prote��o e divulga��o que poucos artistas brasileiros j� receberam. 

Gra�a Ramos � doutora em hist�ria da arte pela Universidade de Barcelona

Capinha do livro Guignard: anjo mutilado
Guignard: anjo mutilado (foto: Companhia das Letras/Reprodu��o)

Trechos de “Guignard: anjo mutilado”, de Marcelo Bortoloti

“O artista captava a luz do crep�sculo e do amanhecer incidindo sobre a cadeia montanhosa, transformando a cena em uma paisagem quase di�fana, impregnada pela sensa��o de cores e demonstrando assim uma maneira muito pr�pria de ver e sentir a natureza. Nos horizontes de Itatiaia, o pintor despertou o gosto pela amplid�o, uma descoberta que desenvolveria depois nas paisagens imagin�rias de Minas, sua contribui��o mais aut�ntica para a arte brasileira.” 

“Deixar a capital do pa�s, cujo ambiente art�stico Guignard j� considerava atrasado em 1929, para ir morar numa cidade com menos de 300 mil habitantes, cat�lica por princ�pio, antirrevolucion�ria por m�todo e infinitamente provinciana, era uma op��o temer�ria. No entanto, a transfer�ncia, que de imediato salvava o pintor dos recorrentes embara�os financeiros no Rio de Janeiro, acabou se revelando um achado do destino. A pintura de Guignard evoluiu, sua fama de professor consolidou-se, e em meio �s montanhas de Minas Gerais ele encontrou um recanto acolhedor.”

“Guignard: anjo mutilado”
• Marcelo Bortoloti
• Companhia das Letras
• 488 p�ginas
• R$ 109,90; e-book: R$ 44,90 

Capinha do livro Balões, vida e tempo de Guignard: novos caminhos para as artes em Minas e no Brasil
Bal�es, vida e tempo de Guignard: novos caminhos para as artes em Minas e no Brasil (foto: Aut�ntica/Reprodu��o)

Trechos de “Bal�es, vida e tempo de Guignard”, de Jo�o Perdig�o

“Estruturas f�sicas � parte, ao analisar o m�todo pedag�gico de Guignard e o caminho seguido por seus alunos no mundo art�stico, a partir de seus par�metros, ele �  constantemente relacionado aos mestres de ateli�s medievais por compartilhar livremente sua t�cnica – que foi �til at� mesmo para aqueles que percorrem caminhos bem distintos dos seus, em �reas afins como design gr�fico ou arquitetura. J� como mentor e diretor da Escola Guignard, sua presen�a pode ser relacionada aos par�metros did�ticos modernos da Escola Bauhaus.”

“L�cia Machado, que escreveu livros que influenciaram – e influenciam – gera��es de adolescentes, era a figura mais pr�xima de Guignard na �ltima fase de sua vida. Ela mesma questionou se sua aproxima��o se dera pelo fato de ele nunca ter sido um adulto completo: de todas as discuss�es que poderia ter comprado em diversas situa��es de sua vida, o pintor fugiu, geralmente fingindo-se de “bobo” – e, para refor�ar sua sensibilidade, possu�a ojeriza a piadas picantes. Gostava do sublime, de agradar, de dan�ar, de comer bem e de se expressar quando achava que valia a pena.”

“Bal�es, vida e tempo de Guignard: novos caminhos para as artes em Minas e no Brasil”
• Jo�o Perdig�o
• Aut�ntica
• 368 p�ginas
• R$ 69,80; e-book: R$ 48,90


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